A Abrasco comunica com imenso pesar o falecimento de Antonio Lancetti, personagem emblemático da luta antimanicomial no Brasil. Psicanalista nascido na Argentina, exilado político no Brasil desde 1979, Lancetti faleceu na tarde desta quarta-feira, 14 de dezembro, em decorrência de um câncer de pâncreas diagnosticado há pouco mais de 3 anos. Apesar de doença agressiva, Antonio trabalhou, viveu, lutou, participando de inúmeras atividades até poucos dias atrás, tamanha sua força de vontade, motivada pelo compromisso com os debaixo, com as causas sociais, com sua família e amigos. Consultor do Ministério da Saúde, trabalhava com a problemática das drogas e do crack — o grande desafio para as cidades e para a saúde pública em São Paulo e no Brasil.
Sua significativa contribuição inclui também a direção da coleção SaúdeLoucura, hoje com 50 títulos, publicada pela editora Hucitec. É autor de “Clínica Peripatética” e “Contrafissura e plasticidade psíquica” Recentemente foi o primeiro entrevistado da série intitulada Psicanalistas Que Falam, idealizada pela psicanalista Heide Tabacof, sua companheira, o projeto reuni registros com profissionais notórios por levar os conceitos da psicanálise ao campo social e humanitário.
O médico e professor da USP, Ubiratan de Paula Santos homenageou o amigo Lancetti – “Argentino de nascimento e brasileiro-argentino de coração, Antonio Lancetti deixará saudades nos que o conheceram e aprendizado para novas gerações e outros que não tiveram o prazer de com ele conviver, através de seus livros e escritos outros. Comunista, psicólogo, homem do pensamento, de ação e de posições claras, formado desde a juventude na Argentina na luta pela democracia, o socialismo e contra a ditadura, e depois no Brasil, onde se filiou ao Partido dos Trabalhadores.
Destacou-se como psicanalista e como organizador de programas e serviços de atenção à população de rua, aos acometidos de doenças mentais, aos drogados. Teve papel central na concepção e desenvolvimento do programa de saúde mental em Santos e em diversos outros municípios, com participação destacada no programa Braços Abertos implantado pela PMSP. Lembro-me dele em Santos quando foi secretário de ação comunitária em Santos, na gestão David Capistrano, amparando a população de rua, cuidando e acolhendo jovens noites afora. Lembro-me dele nas eleições para presidente e prefeitos fazendo boca de urna e fiscalização na PUC, onde bravamente temos garantido 15% dos votos. Lembro-me dele adentrando favela na Brasilândia no final dos anos 90, no programa Qualis, atendendo vitimas de violência e doentes mentais. Lembro-me dele em todas as recentes manifestações pela democracia, contra o golpe. Lembro-me dele nos primeiros de maio. Lembro-me dele ligando toda semana para apreciação da situação política. Vai ser difícil deixar de contar com sua energia contagiante, suas iniciativas mil, sua mente aberta ao contraditório, sua contribuição intelectual e sua ação e de seu jeito combativo e polêmico porque não deixava de expressar seu pensamento em quaisquer circustâncias. Não só falava, fazia, amassava barro. Sua luta será continuada”.
A professora Rosana Onocko Campos, da Universidade Estadual de Campinas e membro do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco, escreveu nas redes sociais – “Meu conterrâneo, guerreiro, coerente, lutador que jamais se traiu nem traiu movimento algum, foi descansar… Antonio Lancetti deixas bons exemplos e uma rede de afetos que sei muito bem que te encheria de orgulho. Sentiremos tua falta, mas nos agarraremos ao teu exemplo. E teu amor pela VIDA (nome do último vinho que bebemos juntos!) Saravá Antonio Lancetti!”
O coordenador do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco, professor Paulo Amarante está hoje em Aracaju para a palestra Fora, Manicômio – Um ano da ocupação da Coordenação Nacional de Saúde Mental: os caminhos da luta antimanicomial. Paulo fará uma homenagem ao amigo Lancetti – “Estou muito emocionado e sentido. Além da grande figura e militante antimanicomial que era, Lancetti era um querido amigo especial”.
Pensamentos de Lancetti
“Quando vim para o Brasil eu tinha que viver de alguma coisa. Então eu vivia do consultório, mas trabalhava dando formação para outros trabalhadores de saúde mental. Eu estava com o drama de toda essa geração, que é ter um pé na saúde pública e outro na saúde particular. Como eu, havia vários. Principalmente aqueles analistas de esquerda. Para nós era mais valioso o serviço público. Eu me criei como psicólogo, num ‘fermento’ onde o público era teoricamente mais interessante em todos os aspectos”
“A Casa de Saúde Anchieta era um campo de concentração atípico, porque geralmente os campos ficam afastados e esse ficava no centro da cidade. Não havia jurisprudência para uma intervenção. O professor Sérgio da Cunha, que é um grande jurista, dizia que não havia embasamento legal e que existiam apenas os princípios da Constituição de 1988. Ou seja, não existia uma regulamentação para fazer a intervenção e nós dependeríamos do apoio que conseguíssemos”
“Nós tínhamos um paciente com Síndrome de Down que estava lá internado desde os 8 anos. Ele se chamava Manequinho. Faleceu com 38 anos. Ele só batia tampinhas de desodorante. Não fazia outra coisa. E aí os meninos entraram numa relação com ele e, um dia, eu encontrei o Manequinho dançando twist. Uma vez, o psiquiatra levou o Manequinho numa assembléia que eu coordenava uma vez por semana. Eu achei muito sensível e adequado da parte dele. Só que ele me disse que não havia sido ideia dele levar o Manequinho, mas de um outro menino, que o havia levado”
“Precisamos ser humildes. Nós temos muito a aprender com os pedagogos. Por exemplo, no caso dos meninos de rua, há uma preponderância da pedagogia, mas não é uma pedagogia cognitiva. Os processos mais duros, mais rigorosos que nós podemos chamar de produção de subjetividade com seus acoplamentos, seus agenciamentos, enfim todo esse campo que é o do inconsciente produtivo e não representativo, todo esse campo não é reduzido ao psicólogo, mas nós não devemos desprezá-lo”
“O Programa De Braços Abertos foi iniciado com três dispositivos: dormida, comida e trabalho, que no começo era só varrição. Mas ele foi se tornando mais complexo e rico: agora, os hotéis que atendem os usuários estão localizados em ruas mais distantes do chamado fluxo, monitorados por técnicos do Programa. Os trabalhos foram se ampliando, com oficinas de bicicletas, distribuição preventiva de preservativos em casas de sexo, produção artística, etc. As crianças estão em creches ou escolas. O DBA está cada vez mais integrado com a rede de saúde, de saúde mental, da assistência e do trabalho da Prefeitura e acaba de ser inaugurada a Inspetoria de Redução de Danos da Guarda Civil Metropolitana, primeira do tipo no mundo. O Programa de Braços Abertos é a única experiência inteligente que se criou para enfrentar um problema tão complexo”
“O que seria uma cidade que pretende acabar com os territórios marginais? Não seria um delírio?”