O estado de emergência sanitária estimula a geração de boas alternativas, como atesta a revolução na fabricação de vacinas contra a Covid. Mas pode também produzir decisões ruins, algumas movidas até por boas intenções. Em face da incompetência do governo federal na organização da vacinação, autoridades subnacionais cogitaram, elas mesmas, a adquirir imunizantes, fato original em campanhas nacionais. Em 2020 empresários já haviam tentado fazê-lo e a iniciativa foi abortada, inclusive porque os fabricantes não quiseram se comprometer com a aventura. Em ação protocolada pela OAB, em 23/2/2021, o STF aprovou que entes subnacionais poderiam adquirir vacinas aprovadas pela Anvisa, caso a campanha nacional não estivesse funcionando a contento ou faltasse vacinas no país.
Em seguida (2/3), a Câmara aprovou projeto de lei que permitia a compra de vacinas pelos entes subnacionais e pela iniciativa privada, desde que registrados na Anvisa. A compra pelos privados implicaria em doação integral à campanha nacional até que todas as prioridades fossem vacinadas (cerca de 75 milhões de pessoas). Depois disso, a doação seria de 50% das doses compradas e o restante ficaria ao alvitre dos compradores. Após a aprovação no Senado, e com um veto do presidente da república, a agora Lei 14.125/2021 passou a viger.
Alguns dias após, um empresário (Carlos Wizard) se pronunciou no sentido de que as prioridades na vacinação não mais fossem respeitadas no que toca às vacinas compradas pelos privados e afirmou também que não via racionalidade em ter que entregar vacinas ao PNI/MS. O empresário mencionou decisões judiciais de primeira instância já tomadas. Na primeira, motoristas de aplicativos conseguiram a liberação de comprar, distribuir e aplicar a vacina para os membros de seu sindicato. Em seguida, associações de magistrados entraram com ação pedindo também essa liberação e, novamente, a Justiça teria concedido. Em 25/3 essa tendência foi acentuada com a decisão do juiz-substituto da 21ª Vara Federal de Brasília ao considerar inconstitucional o dispositivo da Lei 14.125/2021 que obriga que as vacinas adquiridas pelos entes privados devessem ser entregues ao SUS.
Finalmente, agora ao arrepio de qualquer decisão judicial, a imprensa noticia que empresários do setor de transportes de Minas Gerais decidiram adquirir algumas doses de vacinas que foram imediatamente aplicadas nos mesmos e em seus familiares, de modo semiclandestino. Neste caso, trata-se de um fato a ser investigado na esfera policial, haja vista a empresa fabricante da suposta vacina utilizada ter declarado não estar envolvida no fornecimento da mesma.
Entendemos que, caso não haja uma reação à altura, esses fatos podem se transformar em tendência capaz de destruir a já complexa e vacilante campanha nacional de vacinação contra a Covid-19, com prejuízos imediatos no controle da epidemia e com prejuízos duradouros referentes à capacidade do SUS de proteger a saúde de todos e à possibilidade da sociedade preservar padrões civilizatórios mínimos.
Quanto aos governadores e prefeitos, individualmente ou consorciados, é indispensável pactuar, em nome de uma isonomia federativa, que todas as vacinas compradas sejam entregues e gerenciadas pelo Programa Nacional de Imunizações. Frente a iniciativas políticas e econômicas de âmbito nacional, as prerrogativas das unidades da federação são idênticas, ressalvadas apenas regras de proporcionalidade. No caso das vacinas contra a Covid, o tamanho da população e graves diferenciais de risco como o que destinou ao Amazonas um número maior de doses.
Aos empresários, é necessário que se faça cumprir em sua integridade a Lei 14.125/2021, fortalecendo o Programa Nacional de Imunizações, interditando um processo de sua destruição, que poderá vir a ocorrer caso o acesso a vacinas torne-se dependente da capacidade de pagamento de cada grupo de interesse.
Neste contexto, conclamamos os tribunais superiores, mediante pronunciamento de repercussão geral, que impeçam iniciativas promotoras de mais desigualdades na já imensa iniquidade existente na sociedade brasileira, em vários aspectos já exacerbados nessa pandemia. Todas as vacinas contra a Covid-19, seja quem for que as adquira, devem ser destinadas ao Programa Nacional de Imunizações.
Mais Vacinas, já!
Todo o apoio ao Programa Nacional de Imunizações!
Vacinas, direito de todos e dever do Estado!