Realizada entre 02 e 06 de dezembro último em Brasília, a 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (5ªCNSI) tinha tudo para ser um importante espaço para debater as reais condições e necessidades da saúde indígena e dos direitos dos povos originais do território brasileiro. No entanto, para os delegados representantes da Abrasco, o evento ficou aquém desses desafios, principalmente na compreensão e efetivação das redes de atenção.
Com atraso de pelo menos três anos (a anterior foi em 2006), a 5ª CNSI foi a primeira conferência organizada após a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) na estrutura do Ministério da Saúde, e reuniu cerca de 1.200 delegados indígenas e não indígenas, entre gestores, usuários e profissionais de saúde. As etapas distritais e regionais elaboraram duas centenas de propostas. No entanto, por conta do regimento da etapa nacional, só foram permitidas a aprovação total ou a exclusão parcial ou total dos textos, sem espaço para melhoria e rediscussão das redações. Mesmo com os debates nos grupos de trabalho, apenas 25 textos foram levados à plenária final para uma discussão mais ampla, com aclamação de muitas contradições por consenso. “Existe tanto a demanda de que a SESAI assuma a integralidade da atenção secundária e terciária quanto a perspectiva de fortalecer a articulação com o restante do SUS.”, diz Ana Lucia Pontes, professora da EPSJV/Fiocruz.
Além de Ana Lucia, a Abrasco contou com outros dois delegados: o pesquisador Paulo Basta, da ENSP/Fiocruz, e o professor Maurício Leite, da UFSC. Na opinião deles, um conjunto importante de propostas já havia sido tratado em conferências anteriores, sobretudo no eixo relativo à estruturação da atenção primária. Repetiram-se assim debates sobre aspectos logísticos, estruturais e assistenciais em detrimento das dimensões de promoção e prevenção. “Não houve tempo, tampouco orientação, aos delegados das etapas locais e distritais para discutir as atribuições das equipes de atenção básica e o que se pode fazer para aprimorar a articulação com o SUS para a prestação de cuidados no nível da atenção de média e alta complexidade”, explica Paulo Basta.
Ao invés disso, há propostas da absorção de serviços como hemodiálise e tratamentos quimioterápicos nas Casas do Índio (CASAI) e nas próprias aldeias. “O debate nos grupos mostrou que o preconceito, a discriminação e a violência contra usuários indígenas na rede de serviços do SUS perpassa a atenção secundária e terciária. Essa questão deve ser enfrentada seriamente, pois uma impressão geral dessa Conferência foi que muitos delegados passam a considerar incompatível a saúde indígena com o SUS, surgindo propostas para a criação de redes de assistência específicas”. Na visão da professora, a relação dos povos indígenas com a sociedade brasileira influencia a forma como os serviços são ofertados e a satisfação com os mesmos. “Esse ponto é crucial para avançarmos na estruturação do SUS e consolidarmos uma democracia no país que respeite as diferenças e especificidades da população”.
Temas espinhosos
A apresentação e discussão de indicadores epidemiológicos, um dos papeis principais das conferências, ocorreu como se não houvesse parâmetros ou dados mínimos para avaliação. “Para nossa surpresa, ao invés da SESAI exibir levantamentos existentes e pesquisas, as perguntas sobre condições de saúde foram feitas aos delegados na forma de rodas de conversa, gerando um debate limitado às dificuldades e aos problemas conhecidos de todos”, explica Paulo Basta.
Outros pontos negligenciados foram as formas de contratação e formação de recursos humanos. A larga utilização de organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs) para a obtenção de mão de obra sequer foi questionada. “Para nossa surpresa, a maioria dos indígenas e profissionais de saúde tinham um posicionamento contrário à realização de concursos públicos, com argumentos de que os profissionais atualmente nos DSEIs não teriam condições de concorrer com ‘concurseiros’ ”, conta Maurício Leite. No eixo da formação, a SESAI defendeu o treinamento inicial dado pelas Escolas Técnicas do SUS (ETSUS) sem abordar mecanismos de contratação, regulamentação, piso salarial e definição de atribuições. Os delegados da Abrasco elaboraram uma moção, aprovada na plenária final, que aborda iniciativas de formação profissional, elevação de escolaridade e regulamentação profissional dos agentes de indígenas de saúde e de saneamento no contexto do subsistema.
Infelizmente, na observação dos três entrevistados, o tema da saúde ainda não é um assunto que mobilize e unifique as lideranças de diferentes tribos e povos. Um dos motivos que contribui para a manutenção desse quadro é a progressiva contratação dos líderes para cargos de mediação da SESAI com os DSEIs. “Esse cargos parecem servir para o ‘apaziguamento’ das tensões existentes na relação dos indígenas, confundindo dessa maneira os papéis de gestão e controle social”, conclui Ana.