Reunidos em João Pessoa, durante o 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, pesquisadores da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde, desenvolvida pela Abrasco, redigiram um documento a ser considerado no debate sobre as recentes mudanças propostas pelo Ministério da Saúde divulgadas em 26 de setembro através da Portaria Nº 2.539 que “Altera as Portarias de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para instituir a equipe de Atenção Primária – eAP e dispor sobre o financiamento de equipe de Saúde Bucal – eSB com carga horária diferenciada.”
No documento, que foi concebido na 2ª Oficina 2019 do Comitê Gestor da Rede APS – Inovações para APS FORTE a “conjuntura brasileira atual, com um governo de extrema direita, ultra-neoliberal e retrógrado, caracteriza-se como o período de maiores ameaças à democracia e à garantia dos direitos sociais desde a ditadura militar. As medidas governamentais, que aprofundaram os retrocessos iniciados em 2016, com o Golpe parlamentar, têm como principal propósito o desmonte do Estado brasileiro, mediante a retirada de direitos, a exemplo das reformas trabalhista e previdenciária; redução de gastos públicos com políticas sociais, aprofundando os efeitos deletérios da Emenda Constitucional 95 (EC 95); sucateamento das empresas estatais e privatização da gestão pública, em especial dos serviços de saúde e educação.”
Confira o documento na íntegra:
A conjuntura brasileira atual, com um governo de extrema direita, ultra-neoliberal e retrógrado, caracteriza-se como o período de maiores ameaças à democracia e à garantia dos direitos sociais desde a ditadura militar. As medidas governamentais, que aprofundaram os retrocessos iniciados em 2016, com o Golpe parlamentar, têm como principal propósito o desmonte do Estado brasileiro, mediante a retirada de direitos, a exemplo das reformas trabalhista e previdenciária; redução de gastos públicos com políticas sociais, aprofundando os efeitos deletérios da Emenda Constitucional 95 (EC 95); sucateamento das empresas estatais e privatização da gestão pública, em especial dos serviços de saúde e educação.
Em todo o mundo, os efeitos negativos das medidas de austeridade fiscal sobre a vida e a saúde das populações têm sido evidenciados, sendo destacada a ineficácia do receituário neoliberal até mesmo no combate à crise econômica. Aliado a estas medidas, destacam-se um conjunto de políticas e propostas do governo que conformam o que tem sido denominado de “Necropolítica” ou “Políticas da Morte”, que envolvem questões cruciais como a crise climática e o meio ambiente, as políticas de segurança pública e os cortes de recursos em programas essenciais.
Apenas para ilustrar podemos citar, no âmbito do meio ambiente, a liberação de agrotóxicos proibidos em diversos países, as propostas que visam aumentar a exploração desenfreada das nossas riquezas nacionais e dos lucros do agronegócio e que põem em riscos o desenvolvimento sustentável da região amazônica e a vida dos povos indígenas e da floresta; no âmbito da segurança, o Pacote Anticrime, com medidas que irão contribuir com o aumento da violência policial sobre as populações mais pobres e vulneráveis; e o corte de recursos em políticas de saúde consolidadas como a política de saúde mental, o Programa de combate à Aids e o Programa Nacional de Imunização. Todas estas medidas, aliadas aos reflexos da crise econômica sobre o desemprego e o aumento das desigualdades sociais e da pobreza têm impactos profundos sobre a vida e a saúde da população brasileira.
Neste cenário de restrição de direitos, a EC 95 constitui barreira intransponível ao crescimento dos recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS), agravando o crônico subfinanciamento do sistema e reduzindo as possibilidades de ampliação dos investimentos na Atenção Primária à Saúde (APS) sem que outras ações e serviços públicos de saúde percam recursos. Paralelamente, o aumento da execução de emendas parlamentares ao orçamento do Ministério da Saúde, cujas despesas são contabilizadas para a aplicação mínima federal, impõe ao SUS dificuldades adicionais, pois os critérios de alocação dos escassos recursos via emendas não respeitam, necessariamente, os princípios constitucionais de universalidade, equidade e necessidades em saúde.
Nesse avassalador cenário de desmonte do frágil Estado de bem-estar social brasileiro, a Atenção Básica ou Atenção Primária à Saúde vem sendo alvo de um conjunto de mudanças que, em sinergia, apresenta grande potencial de alteração de alguns pilares que vinham favorecendo a estabilidade institucional e o alcance de bons resultados sanitários, sobretudo, via Estratégia Saúde da Família (ESF), principal modelagem da APS no país. Às alterações na Política Nacional de Atenção Básica em 2017 (Brasil, 2007) que colocou em xeque a prioridade dada à ESF; desmonte do Programa Mais Médicos (Brasil, 2013), bem sucedida política de provimento de médicos na APS (Santos et al, 2015; Oliveira et al 2016); à proposta de Carteira de Serviços para a APS (Brasil, 2019b) e criação da Agência de Desenvolvimento da APS (ADAPS), por meio da Medida Provisória 890/2019 (Brasil, 2019a), soma-se, mais recentemente, uma nova proposição de financiamento.
Em relação à Carteira de Serviços para a APS, colocada em consulta pública pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS) em setembro de 2019, observa-se redução do escopo da APS para um modelo clínico e individual, desaparecendo a dimensão familiar e comunitária.
Carteira de serviços é um instrumento essencial para a precificação. Dois instrumentos são cruciais para estabelecer contratos com qualquer prestador (público ou privado): saber o número de pessoas a cobrir (lista ou cadastro para pagamento por capitação) e definir um rol de procedimentos, que hoje se expressa na proposta da carteira de serviços colocada em consulta pública.
Uma carteira de serviços reflete o modelo assistencial de APS que se deseja implementar. Nosso modelo de Saúde da Família com equipe multiprofissional e abordagem territorial e comunitária tem tido impactos positivos na saúde da população evidenciados em diversas pesquisas (Rede APS, 2018).
O modelo expressado na carteira é de primeiro nível centrado no cuidado individual oportuno, referindo-se somente aos chamados atributos essenciais da APS. Nega a abordagem coletiva, o necessário balanço, entre o cuidado individual, e a abordagem populacional territorial, nega o planejamento de base populacional, aspectos cruciais para a efetivação em uma APS de fato forte, integral e ordenadora da rede. Não cumpre com o princípio de integralidade do SUS. Expressa-se em resumido rol de ações individuais sem considerar a abordagem biopsicossocial, a ênfase na promoção da saúde, as ações de saúde coletiva e a garantia de acesso à atenção especializada conforme necessidades, com integração da rede assistencial para a continuidade do cuidado no SUS.
A aversão aos programas explicitada na carteira proposta, chegou ao cúmulo de listar o rol de ações em ordem alfabética, de forma desarticulada. A especialidade em medicina de família e comunidade parece ter sido abolida na carteira de serviços proposta. O termo utilizado é médico de família, sem comunidade. Não se trata apenas de desconsiderar o atributo de orientação comunitária, mas também de mudar o foco desta especialidade médica que é crucial para a APS integral de qualidade, de fato robusta.
Não reconhece o trabalho dos profissionais de enfermagem que já é muito avançado em muitos casos. Literalmente afirma: ”…realizar uma definição clara do papel … do enfermeiro… historicamente focado na realização de atividades repetitivas e pouco eficazes centradas na promoção e prevenção em detrimento das atividades assistenciais …”
Na carteira, há ausência completa de menção à ação dos Agente Comunitário de Saúde (ACS), elo crucial da articulação das equipes com as populações, na busca ativa, na facilitação do acesso para famílias vulneráveis, nas ações de saúde coletiva, na educação em saúde, na promoção da participação social.
A concepção da APS explícita na carteira de serviços é sinérgica à PNAB 2017 que torna possível a diminuição do número mínimo de Agentes Comunitários por equipe e prevê financiamento para outros formatos de equipe de AP sem ACS (regulamentados pela portaria 2.539 de 26/09/2019). A possibilidade de relativizar a presença do ACS, principal vínculo dos serviços de saúde com a comunidade, com potencialidade para contribuir fortemente na identificação de demandas do território e estimular a participação social, enfraquece um dos pilares básicos de nossa proposição de APS, modelo, inclusive, para diversos países da região das Américas. O ACS, ator político e técnico, com destaque nos territórios de difícil acesso, muitas vezes é o único representante do Estado para aquela população. Nesse sentido, não existe Atenção Básica sem centralidade nas famílias e no território e que prescinda dos ACS como membros efetivos das equipes Saúde da Família, em número suficiente, com contratos e condições de trabalho adequados, e apoio da gestão municipal.
Outra proposta, com grande potencial para imprimir mudanças nos rumos da organização da APS no país é a edição da Medida Provisória Nº 890 de 2019 (Brasil, 2019a) que instituiu o Programa Médicos pelo Brasil (PMB) e anunciou a criação de uma Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS). O PMB que objetiva “incrementar a prestação de serviços médicos em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade” (Brasil, 2019a) será executado pela ADAPS que, para tal, firmará contrato de gestão com o Ministério da Saúde. No entanto, as competências da ADAPS, previstas pela MP, são amplas e vão além da execução do PMB, incluindo: a execução da política e a prestação de serviços de APS; o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão; e o desenvolvimento e incorporação de tecnologias assistenciais e de gestão, entre outras (Brasil, 2019a).
As novas decisões para a APS são apresentadas estrategicamente de forma fragmentada. Ao anunciar a ADAPS associada ao programa Médicos pelo Brasil, que com seu título sensibiliza o olhar para a ampliação do direito ao acesso, na verdade, junto a outras proposições como a Carteira de Serviços da APS, delineia caminhos que podem facilitar a privatização da APS no SUS. Há riscos iminentes desta legislação favorecer a transformação da APS em um espaço mercantil da assistência, além de se observar indicativos de retrocessos para a formação de médicos para a APS.
A APS tem sido considerada a parte mais estatal da rede de serviços do SUS, com forma de organização e prestação da atenção com traços não mercantis. A proposta da ADAPS abre uma imensa cunha para a entrada do setor privado e com ele o estabelecimento de uma lógica mercantil, rompendo com a concepção da saúde como direito e criando um importante mercado para este setor. Mesmo em período de corte nos gastos sociais, o volume de recursos que pode ser apropriado pelo setor privado é imenso. Cabe ressaltar que, para que esta proposta seja viável economicamente para o setor privado, ela necessariamente se constrói com formato focalizado, uma AP seletiva. No entanto, não é a seleção de mínimas ações, que vimos no século XX e, no Brasil, antes do SUS. Para garantir ganho de escala, esta AP seletiva toma novo contorno no século XXI, necessitando ampliar sua base social para outras parcelas da população, além dos extremamente pobres, podendo ser caracterizada como uma APS neoseletiva.
Além disso, a previsão de prestação de serviços de APS por meio da ADAPS, em caráter complementar à atuação dos entes federativos, abre a possibilidade de recolocação do governo federal como prestador de serviços de saúde em âmbito local, desconsiderando o processo de descentralização do SUS, que vem sendo construído desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. A MP não explicita de que forma os serviços eventualmente contratados serão integrados à rede assistencial do SUS; tampouco como a inserção da Agência, que é um órgão do governo federal, ocorrerá, tendo em vista a organização do SUS com comando único em cada esfera de governo; nem como a integralidade do cuidado será garantida. É inaceitável que o governo federal venha prover serviços de APS, especialmente se a via eleita for por meio da contratação de serviços privados, em grave afronta ao princípio de descentralização das ações e serviços de saúde no SUS.
Em tempos nos quais as novas proposições para a Atenção Básica objetivam o apagamento de sua dimensão comunitária e territorial, a participação social também é seriamente ameaçada. No plano mais geral, destaca-se o Decreto n° 9759/2019 (Brasil, 2019b) que extinguiu diversos conselhos, na perspectiva de redução de 700 para 50 Conselhos de direitos e políticas, necessários para o exercício do controle democrático. A atual Secretaria de Atenção Primária à Saúde, tanto na proposição da Carteira Nacional de Serviços para a APS, que não menciona em nenhum momento a participação e/ou controle social na AB, quanto na instituição do conselho deliberativo da ADAPS, que também não prevê a participação do Conselho Nacional de Saúde, alia-se e amplifica o objetivo de silenciamento da população e dos movimentos sociais. Com isso a principal intencionalidade dessas medidas parece ser calar os povos e territórios, e assim aprofundar os processos de adoecimento individuais e coletivos, rompendo com a perspectiva de direitos de cidadania e sobretudo do direito à vida.
No que se refere ao financiamento, embora não tenha sido apresentada por meio de documentos oficiais pelo Ministério da Saúde, a nova proposta aponta mudanças estruturais no padrão vigente, afetando profundamente o desenho da APS, sem garantias de aumento efetivo e sustentável no aporte de recursos federais de modo consistente e coerente com os princípios do SUS. Nesse sentido, seria imprudente e insensato esperar “mágicas” a partir de uma nova proposta sem a revogação da EC 95, revisão da forma atual de alocação de recursos ao SUS por meio de emendas parlamentares e sem a garantia de vinculação orçamentária do gasto em saúde que possibilite o aumento dos recursos em consonância com o crescimento econômico do país.
A nova proposta de financiamento é falaciosa em sua argumentação, que diz tomar como exemplo o financiamento de APS em sistemas nacionais de saúde públicos e universais como o National Health Service (NHS) inglês ou o Sistema Nacional de Salud (SNS) espanhol. Confunde remuneração individual de médicos de APS (general practitioners-GP) com transferências intergovernamentais e ou territoriais para financiamento do sistema de saúde. GPs no NHS são remunerados por capitação ponderada (a maior parte), mais desempenho, mais incentivo para algumas ações. As transferências para as regiões / territórios (atualmente para os clinical commissioning groups-CCG) baseia-se em complicada fórmula que considera inúmeros indicadores para aproximar-se às necessidades de saúde populacionais e reduzir desigualdades regionais (Boyle, 2011).
Um primeiro ponto a ser destacado pela nova proposição de financiamento prevê o fim do Piso da Atenção Básica (PAB) fixo (transferência federal per capita para todos os municípios considerando suas populações e características socioeconômicas) e da dimensão do PAB variável relativa à implantação de equipes de Saúde da Família, que gera valores de repasse mensais segundo tipos, números de equipes implantadas e composições profissionais previstas.
Propõe que parte expressiva do financiamento federal se dê por meio de um componente de capitação, com base em pessoas inscritas/cadastradas e utilizando serviços, e a um componente progressivamente maior de avaliação de desempenho com base em indicadores.
A nova proposta de financiamento da APS, ao substituir o PAB (fixo e variável) e os incentivos ao Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e gerentes por um pagamento por capitação ponderada, calculada pelo número de pessoas cadastradas, tem consequências drásticas para os municípios. Significa, em primeiro lugar, que os municípios terão que renunciar à única transferência governamental em saúde de base populacional atualmente existente, que é o PAB fixo. O que certamente é um risco para a sustentabilidade financeira do SUS municipal.
Ao eliminar incentivos para o NASF e ESF significará a abolição dos NASF e a extinção da prioridade para a Estratégia Saúde da Família. Ao prescindir de um modelo assistencial, o resultado será qualquer atenção básica de qualquer jeito. Nada garante que a “nova APS” cumpra, nem com os atributos essenciais da APS forte, supostamente preconizados pela SAPS, e muito menos com os atributos derivativos abolidos nessa proposta. Ainda teremos equipes multiprofissionais?
Embora sinalize critérios de ponderação do financiamento a partir de indicadores de vulnerabilidade socioeconômica, demográficos e ajustes pelo tamanho e distância dos grandes centros, a proposta apresenta metas de cadastro que parecem incompatíveis com a prestação do cuidado integral, com base comunitária, previstas pela ESF. Aliás, não menos importante é destacar que a apresentação da proposta menciona que a população deve ser cadastrada por “equipe de saúde da família e atenção primária”, o que sugere não haver diferença entre o cuidado prestado pelas duas modalidades, cujos parâmetros populacionais para cobertura são os mesmos. Para municípios urbanos estima-se meta de equipes de Saúde da Família com 4.000 pessoas e para municípios rurais remotos, segundo classificação do IBGE (2017), 2.000 pessoas, parâmetro que parece ser inadequado para municípios com extrema dispersão territorial.
Também não estão explicitados os mecanismos de aferição do cadastramento (ou lista de pacientes?), o que dependerá da universalização da informatização e acesso à internet no conjunto das UBSs de todos os municípios brasileiros e da implementação definitiva do e-SUS. Atualmente, existem reais dificuldades de cadastramento. Os municípios ainda se encontram em processo de transição para o sistema de informação do e-SUS e não conseguiram atualizar todos os cadastros. Atendem mais pessoas do que aquelas que estão cadastradas. Há dificuldades para inserção de dados no novo sistema e o prontuário eletrônico do cidadão (PEC) encontra-se em aprimoramento. Relatórios de produção e referentes aos indicadores ainda apresentam erros e estão sendo revisados gradualmente.
A proposta inclui também uma dimensão de provimento como parte do financiamento federal, relativa a médicos e ACS e prevê a manutenção de algumas equipes e programas (como saúde bucal, consultório na rua, informatização, dentre outros), mas não a continuidade do financiamento dos NASF.
Além disso, modifica a dimensão do PAB Variável relativa ao desempenho, atualmente representada pelo Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), substituída por um conjunto de indicadores “selecionados com base na relevância clínica e epidemiológica”, processos, resultados e indicadores “globais” em APS, sem, no entanto, indicar quais as metas a serem alcançadas e de que forma seriam contempladas as imensas diversidades que caracterizam nosso território.
Os riscos de desfinanciamento dos municípios, já sobrecarregados, são elevados. Os municípios assumiram progressivamente a efetivação do SUS e são responsáveis por importante proporção dos gastos públicos em saúde. Estão em importante crise financeira e a partir da nova proposta de financiamento, parte deles sofrerá diminuição de repasses financeiros. Há elevada probabilidade de redução de recursos transferidos aos municípios, já em curto prazo, por redução do número de cadastrados, e pela elevada participação do incentivo por desempenho no conjunto do financiamento AB, que passará de cerca de 10% para 17%. Diferente dos incentivos do PMAQ-AB que somaram recursos ao montante de transferências financeiras para AB aos municípios, o novo componente de desempenho redistribuirá os recursos já existentes, e, seja, por dificuldades de cumprimento dos critérios ou por dificuldade de prestar as informações adequadamente, implicará em redução dos repasses federais, o que ampliará a desassistência. É inadmissível reduzir recursos AB de qualquer município, ainda mais em uma situação de grave crise e de subfinanciamento crônico da AB e do SUS.
A proposta de financiamento explicita novos padrões e instrumentos para a avaliação de desempenho na APS, ignorando o imenso esforço representado pelo Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ -AB), extinto de forma unilateral pela atual gestão do Ministério da Saúde. Desde a criação da Coordenação Geral de Acompanhamento e Avaliação da Atenção Básica, no MS, foi constituída cooperação tecno-científica entre o Ministério da Saúde e Universidades Federais/e Instituições de Ensino e Pesquisa, voltada para a melhoria do acesso e da qualidade da Atenção Básica e consolidação da ESF no Brasil.
Entre 2002 e 2009, o Projeto de Expansão e Consolidação do Saúde da Família (PROESF), que contou também com cooperação internacional, significou um esforço de criação de metodologias de avaliação da AB em cidades de mais de 100.000 habitantes. O PMAQ criado em 2011 realizou três ciclos de avaliações até 2018, alcançando cerca de 40.000 equipes de atenção básica. Contou com oito instituições de ensino superior públicas na coordenação, chegando a envolver mais 32 universidades federais e estaduais, totalizando 40 instituições. Os três ciclos mostraram a possibilidade da cooperação entre gestão e academia inclusive com informações sobre evolução da qualidade na APS permitindo intervenções baseadas em evidências, além de um amplo leque de investigações e publicações. A abolição do PMAQ significou a ruptura da coalizão de 40 Instituições de Ensino e Pesquisa em defesa e a serviço da qualidade da APS no Brasil.
Embora o tempo das conquistas pareça lento, o tempo dos retrocessos é bastante célere. Em 26/09/2019, foi publicada a Portaria Nº 2.539, que instituiu a equipe de Atenção Primária – eAP e dispôs sobre o financiamento de equipe de Saúde Bucal – eSB com carga horária diferenciada (Brasil, 2019c). A estratégia de adotar conformações diferenciadas de equipes na APS afeta fortemente o processo de trabalho, particularmente dos trabalhadores de saúde bucal. Ao formalizar também na Atenção Básica tradicional equipes com incentivo previsto na referida Portaria e com flexibilização de carga horária, há ameaça de rápido retrocesso.
Com a pletora de dentistas no mercado, será ainda mais fácil precarizar os contratos trabalhistas, atendendo às inúmeras demandas por emprego e retomando radicalmente a antiga e tradicional forma de organização da assistência. A política de saúde bucal do atual governo acarretará grave retrocesso ao incipiente avanço do modelo de saúde bucal na APS – baseado na vigilância em saúde, com território definido, população adscrita e trabalho em equipe, que tem sido centro permanente de tensão e disputa com o modelo biomédico tradicional, expresso no cotidiano do funcionamento das equipes.
Corre-se o risco de reafirmação do modelo procedimento centrado, de livre demanda e isolado. As mudanças no serviço trarão também prejuízos ao ensino tanto pela indisponibilidade de cirurgiões-dentistas 20h ou 30h atuarem como preceptores de estudantes de Odontologia como pela impossibilidade de desenvolver atividades junto à equipe de saúde e as competências gerais e específicas previstas nas Diretrizes Curriculares do Curso.
Em cenário que prevê a extinção do NASF, conformações diferenciadas das equipes eAP instituídas na Portaria Nº 2.539/2019 (Brasil, 2019c), mudanças no acesso por meio de listas de pacientes para atendimento de medicina e enfermagem, aliados à carteira de serviços voltada ao procedimento individual, torna ainda mais urgente alertar que o trabalho e a educação interprofissional, um dos pilares da ESF, também estão sendo ameaçados pela política do atual governo.
As equipes multiprofissionais na APS têm atuado em um duplo movimento: na construção de um modelo assistencial que visa a integralidade do cuidado por meio da articulação de diferentes categorias profissionais trabalhando em equipe; e no tensionamento da formação, tanto de futuros profissionais quanto de profissionais já atuantes. No contexto específico de formação “no” SUS e “para” o SUS, é possível vislumbrar a iniciativa da orientação para a educação e o trabalho interprofissional que, a partir da existência já consolidada da equipe multiprofissional, pretende desenvolver a colaboração e a integração entre diversos núcleos de saberes e práticas profissionais.
Esta aposta se assenta na perspectiva interprofissional como atual indutora da formação, buscando o fortalecimento das equipes e a formação de futuros profissionais que sejam capazes de atuar colaborativa e interprofissionalmente, a fim de garantir que os atributos essenciais e derivados da APS sejam efetivados no cotidiano dos serviços. As Práticas Integrativas e Complementares (PIC) são, nesse sentido, um bom exemplo do processo de trabalho em saúde na APS que estimula o trabalho interprofissional, uma vez que articula desafios cotidianos das equipes multiprofissionais com o desenvolvimento de trabalhos prazerosos para os profissionais e para as populações atendidas, situando a comunidade e os usuários na centralidade do da produção dos serviços de saúde.
O princípio da integralidade no SUS supõe, dentre outros elementos, a necessidade de conformação de Redes de Atenção à Saúde regionalizadas, compostas por serviços de diferentes densidades tecnológicas, tendo a APS como um dos seus pilares, capaz de operar com resolutividade e capacidade de coordenação do cuidado. É notório o apagamento da APS como parte e “coração” da rede de serviços e ações de saúde que compõem o SUS em todas as novas proposições das políticas federais recentes. Parece haver um deslocamento do debate do direito universal à saúde e da integralidade do cuidado em redes regionalizadas, ordenadas pela APS, para uma nova perspectiva de APS, neoseletiva, focalizada, descurada do SUS e de sua potência para incidir sobre os determinantes sociais da saúde.
A medicina de família e comunidade tem enriquecido os debates relacionados à APS com diversos elementos e características próprias de sua identidade em formação no campo da saúde. É notório o compromisso ético, político e operativo das médicas e médicos de família e comunidade no sentido de acolher as necessidades de saúde da população que chegam à unidade de saúde como sofrimento. Esta atitude se expressa no desenvolvimento de ferramentas e modelos de ampliação do acesso aos serviços e de resolutividade clínica pela especialidade. É necessário e urgente desenvolvermos estratégias que vão ao encontro desta necessidade, assim como é também prioritário que se ampliem a compreensão sobre saúde e seus determinantes, o trabalho em equipe, a abordagem comunitária e a autonomia dos usuários, temas omissos nas recentes proposições para a APS, frente à ênfase na abordagem clínica individual, ou centrada na pessoa, em detrimento de seus territórios e coletividades.
Neste sentido, as diversas especialidades, saberes e práticas que cresceram e se fortaleceram entrelaçadas à própria trajetória da ESF no país, ao longo de seus 25 anos, têm um papel fundamental na defesa de uma APS integral, que para além de ordenadora do Sistema Único de Saúde, esteja no território, local de maior potência para a efetivação de um sistema de saúde que se propõe considerar as pessoas sujeitos produtores de seu bem viver, o que só é possível entendendo-nos em comunidade, exercendo o controle social. Aliar a boa prática clínica, o compromisso com a promoção de saúde, o amplo acesso aos serviços, a vinculação aos territórios, a participação da comunidade, o cuidado multiprofissional e a defesa da saúde como direito universal e público, são desafios importantes para todas e todos que formulam políticas e apostam em uma APS forte que cumpra os atributos essenciais e derivados.
Mas, não tenhamos dúvidas. As metas para cadastramento explicitadas na apresentação da proposta de financiamento somada à cesta de serviços proposta na carteira definem os limites da focalização e seletividade. Há um claro direcionamento do conjunto de medidas para uma APS neoseletiva, mercantilizada, respondendo às propostas de cobertura universal!
A Rede de Pesquisa APS convida ao debate e à mobilização pela vida.
Por uma Atenção Primária à Saúde forte e abrangente, coração do Sistema Único de Saúde, público, universal, de qualidade.
Referências
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Brasil. Medida Provisória Nº 890, de 1º de agosto de 2019, que institui o Programa Médicos pelo Brasil. Diário Oficial da União 2019a; 01 ago.
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IBGE. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação / IBGE, Coordenação de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, 2017
Oliveira JPA, Sanchez MN, Santos LMP. O Programa Mais Médicos: provimento de médicos em municípios brasileiros prioritários entre 2013 e 2014. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2016 Sep [cited 2019 Aug 05]; 21(9): 2719-2727. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000902719&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015219.17702016.
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Santos LMP, Costa AM, Girardi SN. Programa Mais Médicos: uma ação efetiva para reduzir iniquidades em saúde. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2015/Ago). [Citado em 02/10/2019]. Está disponível em:http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/programa-mais-medicos-uma-acao-efetiva-para-reduzir-iniquidades.