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Cortes no Censo 2020: pesquisadores debatem impacto nas políticas públicas de saúde

Assessoria de Comunicação do Icict/Fiocruz e Vilma Reis

A direção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE anunciou, no fim de maio, uma redução de 30% no questionário do Censo 2020, que passou das 112 perguntas planejadas para 78. Os técnicos do órgão discordam da decisão e afirmam que o corte vai acarretar sérios prejuízos para o mapeamento de informações imprescindíveis para a formulação de políticas públicas. O enxugamento impactará tanto o questionário mais extenso, aplicado em 10% das residências, quanto o formulário básico do Censo.

Mas, o que os cortes no Censo 2020 realmente significam para a elaboração de políticas públicas? Um dos maiores prejudicados pelas mudanças no levantamento será a saúde dos brasileiros. É o que afirmam pesquisadores de diferentes áreas, dentre eles Gulnar Azevedo, presidente da Abrasco, que se reuniram na terça-feira, 4 de junho, no Instituto de Comunicação e Informação em Saúde – Icict/Fiocruz, para o debate “Censo 2020 e saúde – Importância para evidências científicas e políticas públicas”, organizado pela pesquisadora Dalia Romero, do Laboratório de Informação em Saúde e do GT Informação e Saúde da Abrasco.

“Nós epidemiologistas sabemos como é fundamental ter bons denominadores populacionais, para fazer todos os cálculos e pesquisas de que precisamos”, definiu Gulnar Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, destacando que os efeitos do corte, porém, vão muito além do campo da epidemiologia. “Na saúde pública, se não temos uma estimativa populacional eficaz, não conseguimos planejar, saber o que vai ser feito. E não conseguimos de fato atuar nas nossas desigualdades em saúde.”

O censo demográfico, realizado a cada 10 anos, é o levantamento mais abrangente de quantos são, quem são e como vivem os brasileiros. Os métodos, questionários e estratégias usados na sua realização exigem um trabalho técnico construído ao longo dos anos e pautado em critérios científicos, debates e muitas etapas de preparação. Por isso, os profissionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) foram pegos de surpresa quando, em maio deste ano, a nova presidência da instituição anunciou cortes no orçamento e nos questionários do Censo 2020. O formato do levantamento, afinal, já havia passado por quase todas as etapas de validação, incluindo dois testes-piloto. São os dados do censo demográfico que servem como base a inúmeros inquéritos, pesquisas e sistemas de avaliação e monitoramento das condições de saúde da população brasileira. Por isso, a diminuição no número de perguntas é vista por especialistas como um prejuízo incalculável à ciência e à saúde pública nacional.

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Leia ainda entrevista com Paulo de Martino Jannuzzi.

Célia Landmann, pesquisadora do Icict, lembrou que as perguntas envolvendo a emigração internacional foram totalmente excluídas no Censo 2020, o que pode comprometer estimativas de população e o monitoramento da situação de saúde dos brasileiros. “As informações sobre os movimentos migratórios são fundamentais para que possamos mapear surtos e indicadores de doenças infecciosas e contagiosas. Além disso, vivemos um momento de forte emigração de brasileiros. O país está perdendo jovens com capacidade produtiva, o que vai interferir em todos os nossos componentes demográficos. É fundamental termos informações sobre esse processo, porque ele interfere diretamente no planejamento de ações de saúde e de políticas socioeconômicas. Não consigo entender o motivo para esse corte”, lamentou a especialista, que foi coordenadora técnica da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), um dos mais importantes inquéritos já realizados sobre a situação de saúde e os estilos de vida da população brasileira. Um levantamento que só foi possível graças, aliás, aos dados do IBGE, um dos parceiros da pesquisa.

Atualmente, Célia coordena uma pesquisa sobre tracoma, doença inflamatória causada pela bactéria chlamydia trachomatis, que pode causar cegueira e que ocorre em áreas de maior concentração de pobreza. “É uma doença que já está sendo extinta no mundo. Mas não no Brasil. Em nosso país os casos estão concentrados principalmente nas populações indígenas. Constatamos que em lugares como o sertão pernambucano, onde houve melhora na situação do saneamento, o tracoma já está perto de desaparecer. Mas não em pontos de extrema pobreza, em outros lugares do país. Para investigar a permanência de doenças como essas não bastam dados macro. Para eliminar certas doenças infecciosas precisamos conhecer nossas populações em seu aspecto micro, em detalhes de seus modos de vida”. Informações às quais apenas o censo demográfico, em sua abrangência e capacidade de alcançar mesmo regiões remotas, consegue ter acesso.

Determinações sociais

O que os cortes no censo devem afetar, afinal, é justamente a tentativa por desenhar um retrato mais nítido sobre as desigualdades no país. E a saúde, como se sabe, é uma das áreas em que o impacto das desigualdades é mais evidente.

Um dos cortes mais criticados pelos pesquisadores, por exemplo, é com relação à renda. No Censo 2020, não será mais apurada toda a renda familiar, mas só a do “chefe do domicílio”. O que, na palavra dos especialistas, deve acarretar a perda de informações cruciais para os programas de combate à pobreza. “Se só soubermos a renda do responsável pelo domicílio, não teremos como avaliar, por exemplo, a contribuição dos idosos no orçamento da família. Especialmente em lugares mais pobres, essa lacuna pode ser determinante para o avanço da miséria, já que políticas públicas são criadas tendo esse tipo de informação como base. E em casos como esses não adiantam as informações da Amostra, já que programas e políticas de atuação mais direta se amparam nos dados municipais”, explicou Dalia Romero.

A redução nas perguntas diminui também a gama de informações que podem ser usadas para avaliar iniquidades e os chamados “determinantes sociais” em saúde. Ou seja, as condições em que cada pessoa vive e trabalha, e que são cruciais para o seu bem-estar. “Com os cortes, temos o risco de perder as séries históricas de dados fundamentais que têm sido gerados pelo IBGE, a respeito de renda, instrução, migração e saneamento. E lembro que saneamento não deve ser encarado apenas como o acesso a água e esgoto nos domicílios, mas sim com questões que dizem respeito ao entorno das moradias, e que estavam abarcadas pelo último censo. Existe esgoto correndo a céu aberto? Detalhes como esses são muito importantes para tentarmos entender o quebra-cabeças que são as determinações sociais da saúde. Sem eles, não podemos atuar de forma efetiva em áreas de maior risco e foco de doenças”, lamentou Christovam Barcellos, Vice-Diretor de Pesquisa do Icict.

O pesquisador também citou sistemas de informação do próprio Icict, cuja missão é avaliar e monitorar as condições de saúde, e dependem dos dados do IBGE. É o caso do Projeto Avaliação do Desempenho do Sistema Saúde (Proadess), que produz subsídios para o planejamento de gestores da saúde em todas as esferas administrativas, o Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso (SISAP-Idoso), que acompanha a implementação de políticas e programas voltados para a saúde da pessoa idosa, e o Observatório de Clima e Saúde, que reúne informações sobre os impactos das mudanças ambientais e climáticas na saúde da população brasileira.

Barcellos chama atenção também para outra dimensão prejudicada pelos cortes no censo brasileiro: o controle social. “Dados dos levantamentos censitários, dos inquéritos em saúde e de sistemas de avaliação em saúde são instrumentos fundamentais para que o movimento social seja informado sobre o que está acontecendo no país, e possa cobrar medidas necessárias à redução das desigualdades.”

Assista aqui a íntegra do debate do YouTube

Luanda Chaves Botelho, analista do próprio IBGE, citou como os cortes no censo podem afetar as políticas públicas para pessoas com deficiência, por exemplo. “De quê adianta contar as pessoas com deficiência no país e não sabermos quais são suas características? Não saber se têm acesso a bens como computador e celular, que são instrumentos para a sua autonomia? De quê adianta saber quantos são, mas não saber como estão distribuídos pelos municípios, para poder pensar políticas públicas urbanas? Não saber quais os municípios mais defasados com relação a rampas para cadeirantes? Não saber se as pessoas com deficiência enfrentam problemas de moradia, como ônus excessivo com aluguel? Há muitas informações sobre esses grupos populacionais que podemos perder com os cortes.”

Luanda relembra que, quando começaram as discussões sobre o enxugamento das perguntas, já havia sido concluída uma prova-piloto do questionário até então aprovado, e já estava sendo conduzida a segunda. Das dez etapas de trabalho anteriores à realização do censo em si, nove já haviam sido cumpridas integralmente, como a consulta pública, a consulta aos usuários e à comissão consultiva, testes e provas-piloto. A mudança abrupta no questionário só vai ser aplicada na última etapa desse processo, que é o Censo Experimental, a ser realizado daqui a alguns meses. E que, segundo Luana, não pode ser usado como um teste para o questionário em si. “O Censo Experimental não é um teste. É uma simulação da operação como um todo. Não é o momento de ver se o questionário está funcionando. É o momento de levar esse questionário já testado a um município e simular o censo”, argumentou, enfatizando que o novo questionário não sofreu apenas a redução de perguntas, mas também alteração de conceitos.

“A determinação de um corte no questionário, a essa altura, afronta todas as discussões anteriores, todo o trabalho que foi minuciosamente planejado pelo corpo técnico do IBGE. Como podemos garantir que essas mudanças vão tornar os questionários melhores, se eles não passaram pelos testes-piloto? Se não foram submetidos à prova de que funcionam, de fato?”, indagou.

Uma das questões eliminadas na versão atual é sobre o valor do aluguel. “O corte dessa pergunta faz com que não seja possível gerar indicadores de ônus excessivo com o aluguel, ou seja, que sejam quantificados os domicílios em que pelo menos 30% da renda domiciliar é gasta com essa despesa. Com isso, não poderemos atualizar os indicadores de déficit habitacional e, consequentemente, não conseguiremos orientar da maneira mais eficiente as políticas de moradia”, explicou Luanda.

Saúde indígena

Dentre as áreas que podem ser afetadas pelas mudanças, a saúde indígena é uma das que mais preocupam os pesquisadores. Isso porque o levantamento censitário teve papel crucial no processo de dar visibilidade aos povos indígenas, a partir da luta política dos anos 70 e 80. É o que explicou Ricardo Ventura, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz).

A classificação de “indígena” como cor/raça no questionário só entrou no censo em 1991. Mas foi o levantamento censitário de 2010, com uma abordagem mais aprofundada dos modos de vida dos diferentes povos indígenas, que possibilitou uma expansão vigorosa de pesquisas e estudos sobre a saúde indígena.

Em 1991, o censo registrou cerca de 294 mil indígenas no Brasil. Em 2010, foram 817 mil. “Isso não significa que houve crescimento demográfico, mas sim a transformação de identidades sociais. Reconhecimento. Isso não aconteceu só com os indígenas, mas com os pretos e pardos no Brasil. São números que têm força simbólica e política. Revelam não um crescimento populacional: revelam mais visibilidade”, descreveu.

Mas revelam, também, enormes desigualdades. É o caso da mortalidade infantil. Estudos amparados nos dados do censo, afinal, puderam comprovar que a mortalidade infantil nos povos indígenas é ainda maior que os índices dos grupos que se autodeclaram pretos. “Esse é um cenário triste, mas que precisamos conhecer”, completou Ventura. Com os novos métodos, porém, talvez não seja possível conhecer a fundo esse cenário.

Compromissos internacionais

Os cortes no censo também podem impedir o processo de implementação do programa de ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD), lembrou Richarlls Martins, pesquisador da Rede Brasileira de População e Desenvolvimento (Rebrapd). Realizada no Cairo, em 1994, a conferência representou um pacto entre nações para que as políticas e os programas de população deixassem de ter como foco o controle do crescimento populacional, como condição para a melhoria da situação econômica e social dos países, e passassem a reconhecer o pleno exercício dos direitos humanos e a ampliação dos meios de ação da mulher como fatores determinantes da qualidade de vida.

“Uma das coisas importantes na Conferência do Cairo foi fortalecer o lema de ‘cada pessoa conta’. Se entendemos que cada pessoa conta, precisamos que essas pessoas estejam visibilizadas na nossa produção de dados e de materiais científicos. Um país que não visibiliza seus sujeitos está dizendo que não quer suas populações na produção da ciência e das políticas públicas”, destacou.

Francisco Menezes, da ActionAid e do Ibase, acrescentou que as mudanças no censo atingem fortemente determinados compromissos internacionais que o país já havia assumido, para a prestação de contas e a garantia do monitoramento de suas políticas e resultados. “Cito por exemplo a questão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Quando tivermos que prestar contas sobre esse pacto, será que teremos condições? De que dados poderemos dispor?”, indagou.

Sabotagem

“O censo é a mais importante pesquisa social feita no Brasil. Pela sua abrangência, pelo seu conteúdo e pelo fato de permitir uma observação histórica de como o Brasil tem se desenvolvido. É um acervo excepcional e, ao mesmo tempo, definidor tanto para a constituição das políticas sociais quanto nosso conhecimento sobre a sociedade brasileira”, definiu Rômulo Paes Souza, da Fiocruz Minas, lembrando que o primeiro censo foi realizado em 1872.

Não há, no entanto, ciência sem método, diz o pesquisador. “E o risco de se alterar o método é, também, o risco de se alterar a institucionalidade. É desprezar o que acumulamos até agora, do ponto de vista do conhecimento e também das regras de construção desse conhecimento. E das próprias regras de consolidação de nossas instituições. Estamos andando rapidamente para trás, porque o modelo que se apresenta [de questionário] não é contemporâneo, não é moderno, não é democrático e não é transparente.”

Rômulo afirmou que há países que, já há muitas décadas, não realizam o censo. São, no entanto, países em que o Estado tem informações permanentes sobre as condições socioeconômicas. “Há a capacidade do Estado de ter o domínio sobre as informações. No caso brasileiro, existem áreas onde o Estado não chega na porta da casa das pessoas. Porque o tráfico ou a milícia não permitem, por exemplo. Precisamos discutir o Brasil real”, conclamou.

A interferência no censo, como tem se apresentado hoje, seria uma ameaça não só ao saber científico, mas à própria ideia de institucionalidade, defendeu o pesquisador. “Institucionalidade é como um país constrói sua dinâmica política e social, como determina o sentido de seu funcionamento. Como busca o respeito à diversidade, o respeito aos outros, o respeito à história, o respeito ao trabalho de muitos. Se um país não faz isso, ele está se sabotando. Não se trata apenas de sabotar uma instituição ou outra, mas sim de se sabotar como um todo. Ameaçar a institucionalidade é criar um país que não vai funcionar. Que não vai aproveitar os legados que tem. Um legado como por exemplo o censo populacional, de quase 150 anos.”

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