O Brasil e o mundo acompanham preocupados as condições de potabilidade e salubridade da água distribuída pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. A Abrasco, por meio de seus associados integrantes do Grupo Temático Saúde e Ambiente e demais pesquisadores inseridos em outras redes, universidades e institutos de pesquisa, também observa de perto essa nova faceta da crise de saúde pública fluminense, motivada pela falta de transparência nas informações, ausência de planejamento urbano e descrédito nos investimentos em saneamento público.
Desde os últimos dias de 2019, um crescente número de moradores da cidade do Rio de Janeiro e Grande Rio tem relatado episódios de diarreia e náusea, entre outros sintomas. A Secretaria Estadual de Saúde chegou a informar que o número de registros dessas complicações dobrou em duas unidades de pronto atendimento da zona oeste, saltando de 660 ocorrências no ano anterior para 1.371 neste ano, no período de 20 de dezembro a 5 de janeiro. A pasta, porém, não declarou uma associação direta entre o aumento de pacientes com esses sintomas a uma suposta água contaminada.Em simultâneo, multiplicaram-se na internet e nos grupos de mensagens instantâneas relatos da oferta de uma água turva, entre o tom acinzentado e amarronzado, além de apresentar mau odor e gosto.
A primeira nota de esclarecimento foi divulgada pela Cedae em 7 de janeiro, quando a companhia afirmou que foi detectada a presença de geosmina, substância orgânica produzida por algas, que não representaria nenhum risco à saúde dos consumidores, mantendo a indicação de consumo da água fornecida. Dois dias depois (9/01) a Cedae manteve a posição de potabilidade da água, informando que adotou, em caráter permanente, a aplicação de carvão ativado pulverizado no início do tratamento como estratégia de retenção da Geosmina. A empresa pública afirmou também que seguiria com o monitoramento do sistema de abastecimento amiúde.
Cientista pede transparência à Cedae
Apesar dos informes da Companhia, cientistas declararam à imprensa que a água – marrom e com mau cheiro – poderia ser perigosa, divergindo das informações apresentadas. Em paralelo, correntes de WhatsApp disseminavam notícias falsas ou inconsistentes, muitas vezes utilizando nomes de pesquisadores e /ou instituições – como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – para alarmar ainda mais a população. O tráfego de dados conflitantes disseminou o caos, levando uma corrida ao varejo atrás de garrafas de água industrializada.
Em entrevista à Comunicação da Abrasco, Gandhi Giordano, professor do departamento de Engenharia Sanitária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), afirma que as informações imprecisas afetam o trabalho dos pesquisadores e técnicos, dificultando a resolução do problema. A estatal não divulgou publicamente os laudos: “A Cedae tem que nos dizer qual foi o laboratório que analisou a água, como foi feita a análise, há quanto tempo estão monitorando e quais os resultados encontrados. Assim, nós podemos avaliar se o método de coleta foi correto, se a análise está adequada. A Cedae está escondendo as informações de pessoas altamente qualificadas, que poderiam ajudar. Precisamos de transparência, sobretudo porque é um órgão público – e porque estamos falando sobre a saúde da população”.
O docente não precisa de laudos, entretanto, para dizer que a qualidade da água no Rio Guandu – manancial que abastece o Rio de Janeiro e municípios vizinhos – não está cumprindo a legislação brasileira, que exige qualidade na água fornecida para a população, já que é nítida a existência de poluentes – o que explica, por exemplo, o aumento da Geosmina. Segundo Giordano, o padrão de potabilidade da água no Brasil é arcaico: “Em relação aos Estados Unidos ou a países da Europa, nós somos muito permissivos. Os índices de tolerância [ de substâncias na água] foram reduzidos para atender à realidade brasileira, são muito mais baixos que em outros países”.
Acesso à água e ao saneamento básico é um direito humano, mas, no Brasil, menos de 50 % dos habitantes são contemplados, num problema que se arrasta por muito tempo e envolve os três níveis dos entes federados. “Não há clareza, de maneira geral, sobre a importância do saneamento básico. Diminuiríamos muito os gastos com a saúde se as pessoas tivessem água de qualidade, se o esgoto fosse tratado. Precisamos conscientizar a população, os políticos” reforça Gandhi Giordano. O Sistema Único de Saúde gasta aproximadamente R$ 217 milhões por ano no tratamento de doenças relacionadas à falta de saneamento.
Giordano foi um dos pesquisadores presentes em uma vistoria na Estação de Tratamento de Águas do Guandu, na segunda-feira (13/01), a convite do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Além do docente da UERJ e do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente (Gaema) do MPRJ, participaram da vistoria técnicos de órgãos ambientais e especialistas da Fiocruz, do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), da Vigilância Sanitária do município e do estado do Rio de Janeiro e da própria Cedae. O grupo coletou amostras desde a captação ao pós-tratamento para análises. Em nota técnica, pesquisadores diferentes unidades da UFRJ alertam para uma ameaça real à segurança hídrica da Região Metropolitana do Rio de Janeiro
Grupo Temático Saúde e Ambiente da Abrasco critica falta de recursos para o saneamento
Coordenador do GTSA/Abrasco e assessor da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, Guilherme Franco Netto está em contato com os pesquisadores de laboratórios da UERJ, UFRJ e Fiocruz que estiveram na vistoria realizada na segunda, e estarão em reunião na sexta-feira, 17.
Além de referendar os posicionamentos produzidos por essas instituições, o abrasquiano ressalta a baixíssima e progressiva regressão dos investimentos em saneamento no Brasil. “Apesar de termos firmado como nação o compromisso com a Agenda dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável de promover acesso ao saneamento adequado população brasileira possa ter até 2030, o que estamos observando um processo ao revés dessa meta”.
O abrasquiano diz que os investimentos nos reservatórios hídricos no Rio de Janeiro e, especialmente no Guandu, têm sido reduzidos, ao invés de terem sido mantidos os investimentos planejados até 2025. Reportagem do site especializado O Eco corrobora a informação e aponta perdas na ordem de R$ 11 bilhões decorrentes do fim do Fundo Estadual de Conservação Ambiental (Fecam), e do arresto determinado pela Justiça de um montante de R$ 200 milhões do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FUNDRHI).
“Não há dúvida de que esta situação é produto de um complexo conjunto de fatores que passam pela carga de poluição que esses rios e mananciais recebem, associado ao processo de deterioração das nossas matas, parques e toda a estrutura de sustentação da biodiversidade e somada à completa ausência de planejamento urbano e desinvestimento público no setor” reforça Franco Netto. O resultado está no copo e no que o falta: um intenso processo de perda da qualidade da água bem como redução da sua oferta, quadro que se repete no estado do São Paulo desde 2014.
“Esse pano de fundo torna-se mais crítico ainda quando vemos o processo acelerado de votação na Câmara e já aprovado no Senado o processo de mudança das regras do saneamento. Não só inverte percentuais de investimento, onerando ainda mais municípios e estados e reduzindo a responsabilidade do governo federal em investimento, como também abre as portas para o processo de privatização das companhias existentes, o que inclusive pode ser uma das questões que estejam envolvidas na situação concreta da Cedae” conclui o coordenador do GTSA/Abrasco.
Fake news são um risco à saúde da população
“Oi gente, então, é o seguinte, eu moro aqui em Copacabana […] meu marido é biólogo da Fiocruz, a Fiocruz foi proibida de falar o risco que tá acontecendo na água do Rio de Janeiro […] a água está com um vírus muito forte, e eles estão colocando uma composição que é mais forte que o vírus e pode dar uma parada cardíaca em qualquer criança ou pessoas que tem arritmia”, dizia a voz de uma mulher em um áudio que corria por grupos de WhatsApp, ao longo desta semana. Sem identificação da mulher, ou do suposto biólogo, o alarme sobre o “vírus que pode causar parada cardíaca” é um exemplo caricato de uma notícia falsa.
A Fiocruz manifestou-se sobre a declaração, mas, uma vez que o conteúdo tenha viralizado nos celulares, é difícil levar a informação correta a todos que receberam o áudio. Quando o assunto é saúde, é ainda mais importante investigar a veracidade dos dados recebidos pela internet: pesquisar no Google ou em outros buscadores pode resolver o impasse – neste caso da Fiocruz, por exemplo, o jornal O Globo logo denunciou a mensagem como falsa, checando os fatos.
Sobre a crise de água no Rio de Janeiro, a população deve estar atenta às recomendações dos especialistas avalizados pela ciência e pelas universidades públicas e associações cientificas de credibilidade. Não consumir, em hipótese alguma, água turva, com mau odor e sabor; privilegiar a água industrializada em lugares desconhecidos e/ou suspeitos; fazer a limpeza constante nos reservatórios de água e nos filtros, com a troca de velas de carvão e, principalmente, buscar e valorizar uma maior educação ambiental, maior consciência sanitária e mais participação da sociedade na cobrança de investimentos públicos em saúde e saneamento.