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Crise, precarização do trabalho e consequências para a saúde

Discutir a crise do capitalismo e as consequências para as políticas sociais em geral, e para a saúde especificamente, dos retrocessos nos direitos trabalhistas foi o objetivo de uma mesa redonda “A crise do capitalismo e os retrocessos no mundo do trabalho: consequências para as políticas sociais e para a saúde”, promovida na manhã de sexta-feira (27) durante o 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o Abrascão. A mesa reuniu os pesquisadores Plínio de Arruda Sampaio Junior, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Ivanete Boschetti, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Vera Navarro, da Universidade de São Paulo (USP) campus Ribeirão Preto.

A arte de “passar o mico”

“O que é a crise capitalista?”, indagou Plínio, ressaltando que a crise atual é a maior da história do sistema. “A crise se configura quando há excedente de capital. Quando o dinheiro do capitalista não tem condições de virar mais dinheiro, há crise. A causa disso é a ruptura na unidade entre produção, distribuição e circulação de mercadorias. Quando essa unidade se rompe, a questão central para o capital é recompor essa unidade, e para isso é preciso destruir o excedente, abrindo novas frentes de expansão da economia”, disse.

Momentos de crise como o que atravessamos na atualidade, continuou Plínio, são de profundas mudanças nas forças produtivas, no padrão de concorrência capitalista e no padrão de intervenção do Estado na economia. “Entender a crise é entender o que está sendo destruído e o que está sendo criado. Como o capital resolve a sua crise? Aumentando taxa de exploração da mais-valia, concentrando e centralizando capital, ampliando o mercado mundial”, enumerou .

Segundo ele, uma das características da crise atual é a dificuldade do capital de “digerir” o excedente de capital, por ele ser parte do patrimônio de conglomerados econômicos e financeiros gigantescos, com uma grande capacidade de suportar a crise e com um poder descomunal sobre os Estados nacionais. “Nos momentos de crise há o acirramento da luta de classes. O capital vai dizer para o trabalho ‘você paga o pato’. E o trabalho vai reagir”, ressaltou.

E dessa forma, de acordo com ele, a crise vem sendo “administrada” pelo grande capital, mediado pelo Estado norte-americano, por meio de dois “movimentos básicos”. O primeiro deles consiste em “ganhar tempo” para que a absorção do excedente de capital se dê sem sobressaltos. “A crise de 1929 só foi resolvida com uma guerra mundial que destruiu duas das maiores economias da época, a Alemanha e o Japão, bem como grande parte das forças produtivas da Europa ocidental. Resolver uma crise desse porte não é um problema pequeno, leva tempo. Enquanto isso, o capital joga a economia mundial em uma estagnação de longa duração”, destacou.

O segundo movimento, continuou Plínio, consiste em “passar o mico” do lado mais forte para o mais fraco: do grande capital para o pequeno, do setor privado para o público, do capital para o trabalho, do centro do capitalismo para a periferia. “Para isso é necessário iniciar uma nova rodada de concentração de riqueza, uma ofensiva sobre os direitos dos trabalhadores, sobre os direitos sociais e sobre a soberania dos Estados periféricos, com uma profunda redefinição da divisão internacional do trabalho. Para a América Latina isso significa priorizar os produtos primários para a exportação, notadamente o agronegócio e a mineração”, explicou o pesquisador da Unicamp.

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Assista ao debate, transmitido e gravado pela Rádio Web Saúde USP

Os efeitos da crise no Brasil, de acordo com o economista, vem aprofundando e acelerando um processo de “reversão neocolonial”. “Este é um processo progressivo de rebaixamento do patamar mínimo de civilidade conquistado a duras penas pela sociedade brasileira”, criticou, lembrando da campanha publicitária “Agro é pop”. “Marchamos para um processo de ajuste cuja essência é transformar a economia em uma mega feitoria moderna”.

Precarização do trabalho, desnacionalização da burguesia e aprofundamento da subordinação do Estado aos interesses do capital são algumas das características deste processo, que vem sendo marcado também por uma crise da democracia em escala mundial, segundo Plínio. “No Brasil a Nova República está em crise terminal. Isso é algo sobre o qual a comunidade do SUS precisa refletir, uma vez que o SUS foi uma das maiores promessas da Constituição de 1988, que inaugurou a Nova República. Esse novo capitalismo vai criar mais doença e menor condição de enfrentá-las. Vamos ter cada vez mais doenças modernas, como depressão, LER [Lesão por Esforço Repetitivo], convivendo com doenças coloniais, como dengue, malária. Esse é o novo país que está surgindo”, denunciou.

Ajuste fiscal permanente

Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, Ivanete Boschetti destacou desde a aprovação da Constituição de 1988 vive-se no Brasil um processo de ajuste fiscal e de contrarreforma permanente, que vem na prática destruindo a possibilidade de implementação do que diz a Carta Magna. “Ela vem sendo sucessivamente desmontada, isso não é recente, vem desde a década de 1990, com a reforma da Previdência de 98, no governo FHC, depois com a do Lula em 2003, a minirreforma da Previdência do governo Dilma, que restringiu o acesso à pensão por morte, ao auxílio-doença, ao seguro-desemprego e ao abono salarial”, enumerou Ivanete, acrescentando que o “apogeu” do ajuste fiscal permanente se deu com a Emenda Constitucional 95. “O teto de gastos representa a destruição bárbara de todas as possibilidades de ampliação e de manutenção dos direitos sociais da Constituição, porque ela, além de congelar gastos por um período de 20 anos, desvincula o orçamento público da União para a saúde e para a educação. Já temos visto o efeito disso do ponto de vista do fundo público”, assinalou a pesquisadora da UFRJ. Segundo ela, o Orçamento da Seguridade Social – que reúne Previdência Social, Saúde e Assistência Social – cresceu 71% de 2002 a 2017, passando de R$ 540 bilhões para R$ 924 bilhões. Entre 2016 e 2017, no entanto, há uma queda de 1,7% no OSS. “A saúde é a mais impactada, com uma queda de 7% em seu orçamento de 2016 para 2017”, destacou Ivanete. “A saúde vai entrar em colapso em brevíssimo tempo se a EC 95 não for revogada”, alertou. Segundo ela, a reforma da Previdência, que deve voltar à pauta após o período eleitoral, deve causar ainda mais estragos. “Daí a importância da gente lutar coletivamente para que isso não aconteça”, ressaltou.

Reforma trabalhista e saúde do trabalhador

A professora Vera Navarro, da USP em Ribeirão Preto, tratou dos efeitos sobre a saúde do trabalhador da reforma trabalhista aprovada pelo Congresso Nacional no ano passado. “É muito preocupante, em pleno século 21, ter que falar sobre trabalho escravo, trabalho infantil, aumento de jornada de trabalho, redução de intervalo de almoço, trabalho de gestantes e lactantes. Deveríamos estar pensando em ampliação de direitos, em redução da jornada de trabalho. Vivemos um quadro muito grave”, destacou.

Segundo Vera, a reforma trabalhista aprovada em 2017 representa o desmonte dos direitos trabalhistas, a destruição dos direitos do trabalho e da Justiça do Trabalho. “Ela alterou profundamente a CLT, abrange 121 dispositivos. Tem vários pontos da reforma que foram considerados inconstitucionais pelo Ministério Público do Trabalho”, destacou. “É bastante grave”, alertou Vera.

A possibilidade de que o negociado prevaleça sobre o legislado, uma das mudanças centrais promovida pela reforma na legislação trabalhista, traz consequências graves para a saúde do trabalhador, segundo a pesquisadora da USP. “O que pode ser negociado? Férias, 13º, jornada de trabalho, por exemplo. Ora, férias são um direito, não podem ser negociadas, e além disso possuem uma característica terapêutica, a possibilidade do trabalhador descansar, de conviver socialmente com amigos e família. Há ainda a possibilidade de redução do intervalo de almoço de uma hora para meia hora. Intervalo de almoço é um período que se descansa, não é só pra comer”, apontou Vera. O trabalho intermitente, com a possibilidade de que sejam firmados contratos por hora trabalhada, foi outro aspecto nefasto da reforma trabalhista. “O trabalhador precisa ficar à disposição do empregador e só ganha pelas horas em que efetivamente trabalha. Além de não saber que horários terá que cumprir, não ter como planejar seus gastos, o trabalhador ainda tem que pagar multa de 50% do que iria ganhar caso não compareça para o trabalho. É um absurdo”, destacou a professora da USP, que lembrou ainda da possibilidade aberta pela reforma de que gestantes e lactantes trabalhem em locais insalubres e a autorização para a terceirização de forma irrestrita. “Os efeitos disto serão nefastos. Todo o sistema trabalhista como a gente o conhece será desconstruído”, pontuou.

 

 

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