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Crise sanitária aprofunda vulnerabilização de trabalhadoras domésticas

Hara Flaeschen

Foto: Unsplash

A pandemia de Covid-19 é trágica em muitos aspectos: as mortes – quatro em cada cinco evitáveis, no Brasil – , a omissão das principais autoridades políticas e sanitárias diante da crise, o aprofundamento das desigualdades. Ainda não é possível dimensionar as perdas e retrocessos nos direitos fundamentais, como acesso à alimentação, moradia, educação e saúde. Mas já é possível entender que há intensificação das vulnerabilidades. Quando há um olhar recortado por classe, gênero e raça/cor, percebe-se que os abismos estão maiores. A base da pirâmide esmaga, cada vez mais, mulheres, pobres e não-brancos. 

Em julho de 2020, a Ágora Abrasco debateu como o trabalho remoto se impôs ao cotidiano dos indivíduos, diante do distanciamento social. A educação passou a ser à distância, trabalhos considerados não essenciais foram transferidos para dentro das casas. O acúmulo de funções atingiu, sobretudo, mulheres. O painel frutificou no artigo  O trabalho mudou-se para casa: trabalho remoto no contexto da pandemia de Covid-19, de Tânia Araújo e Iracema Lua. As pesquisadoras partiram do princípio de que cuidado com crianças, idosos, manutenção da casa e preparo dos alimentos deve ser considerado trabalho, e analisaram como essas atividades, que já eram majoritariamente realizadas por mulheres, ficaram ainda mais relacionadas ao gênero.

Segundo o estudo, é possível que a prática do home office, atravessada pelo trabalho não remunerado doméstico, reduza a produtividade entre as mulheres, o que pode interferir negativamente em suas carreiras. As cientistas, por exemplo, já expressam baixa no rendimento acadêmico: “Os dados mostram que COVID-19 afeta sobremaneira a publicação das pesquisadoras. Atividades de leitura, análise de textos, levantamento e tratamento de dados, redação e correção de artigos científicos exigem concentração duradoura, o que é dificultado em situações de sobreposição de atividades produtivas e domésticas em um mesmo espaço. A redução na produção científica atesta o problema e fortalece a urgência de seu enfrentamento”, escreveram Araújo e Lua. 

Não é possível falar da realidade das trabalhadoras brasileiras de forma hegemônica, no entanto. A discussão sobre trabalho remoto e trabalho doméstico encontra limites: como vivem, no contexto pandêmico, as mulheres que realizam trabalho doméstico remunerado? Em março de 2020 a Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro anunciou a primeira morte por Covid-19 no estado: uma trabalhadora doméstica de 63 anos foi contaminada pelos patrões, que voltavam da Itália, e não resistiu à doença. O fato marca a história como um retrato da desigualdade no Brasil, e das condições precárias de trabalho em que parte significativa da população está inserida. Em 2018 o PNAD indicou que o Brasil possuía aproximadamente 5,7 milhões de mulheres exercendo o papel de cuidadoras da casa de outras pessoas, e, neste quantitativo, 3,8 milhões eram mulheres negras.

Segundo a Nota Técnica Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de Covid-19 No Brasil, do IPEA,  “as trabalhadoras domésticas representam, hoje, quase 15% das trabalhadoras ocupadas (10% das brancas e 18,6% das negras)”. O documento ressalta que o emprego doméstico, para além de ser a única forma de renda dessas mulheres, é parte estrutural da sociedade brasileira: “Ainda que o trabalho de cuidados e de reprodução da vida seja de responsabilidade ampla – de famílias, do Estado e do mercado –, é forçoso reconhecer que, no Brasil, retirando-se um insuficiente esforço de oferta de creches públicas, praticamente inexistem políticas públicas ou iniciativas empresariais destinadas a compartilhar os cuidados e torná-los uma responsabilidade social”. 

Para Diana Anunciação Santos, vice-presidente da Abrasco, integrante do GT Racismo e Saúde/Abrasco e professora da UFRB, a pandemia aprofundou o contexto de alta vulnerabilização das domésticas no Brasil. A atividade não foi considerada essencial – e tampouco foi paralisada – as trabalhadoras não receberam apoio institucional, não foram incluídas como grupo prioritário para vacinação, por exemplo. “Os patrões não fornecem EPIs de qualidade, e essas trabalhadoras também não têm condições financeiras para adquirir o material. Muitas perderam emprego, outras foram dispensadas, porém sem salário, e aquelas que continuaram deslocam-se com risco até o trabalho”. 

A pesquisadora Vivian Pizzinga também aborda as contradições, no artigo Vulnerabilidade e atividades essenciais no contexto da COVID-19: reflexões sobre a categoria de trabalhadoras domésticas . Por um lado, não terem incluído trabalhadoras domésticas como serviço essencial, garantiria sua permanência em casa, o que diminuiria a exposição à doença. Porém, como o Estado não promoveu renda suficiente para manter as famílias – com um auxílio emergencial compatível com os custos de vida – essas mulheres ficaram duplamente expostas, “de um lado, sanitariamente, já que não terão meios de cumprir a quarentena, e de outro, economicamente”. 

Diana Anunciação destacou que é preciso fazer um recorte racial: mesmo que essas mulheres ocupem a mesma classe social, o mesmo território e exerçam a mesma atividade, as brancas são melhores remuneradas que as negras, e têm mais direitos garantidos, de forma geral. A docente afirma que mulheres negras muitas vezes vivenciam uma “escravidão contemporânea”, já que há relatos de trabalhadoras coibidas a permanecerem na residência de seus empregadores, para não terem contato com outras pessoas durante o deslocamento, ou com suas famílias, a fim de proteger os patrões do coronavírus: “Esse nível de precarização corresponde a um imaginário escravagista, que ainda permanece na branquitude brasileira. Vêem essas mulheres como objetos das famílias”.

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