O nome da mesa foi um tanto quanto empolado: “Direitos Humanos como construção cultural: implicações para a emancipação dos sujeitos de direito”. Mas, passados os primeiros minutos formais, Sidnei Dantas, Babilak Bah e Patrícia Dornelles soltaram o verbo e, num vai e vem entre teoria, histórias e experiências, abordaram como a cultura pode transformar pessoas e a própria sociedade pelo convívio e reconhecimento dos usuários da Saúde Mental, numa das mesas redondas do 2º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental, realizado entre os dias 4 e 6 de junho, em João Pessoa, pela Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). A mediação foi de Walter Oliveira, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e do Grupo Temático Saúde Mental, da Abrasco.
+ Saiba como foi o 2º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental
O binômio arte-loucura no percurso de dois artistas brasileiros -Machado de Assis e José Joaquim Campos Leão, mais conhecido como Qorpo Santo -foram o ponto de partida para psicólogo e músico Sidinei Dantas contar um pouco da sua própria trajetória no trabalho com o grupo Harmonia Enlouquece.
Apesar da distância geográfica e dos diferentes alcances entre as trajetórias desses dois homens do século XIX, Dantas recupera estratégias por eles utilizadas e vividas como as primeiras afirmações do discurso da loucura nas artes nacionais. Enquanto o reverenciado autor que se dedicou e viveu a glória da cultura da elite de seu tempo no Rio de Janeiro, capital do Império, o também jornalista e escritor que ousou os limites em sua Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade foi interditado inúmeras vezes, sendo condenado ao ostracismo e todo o tipo de dificuldade até seu falecimento, em 1883, em Porto Alegre.
Para Sidnei, cada um a sua parte colocou em debate a loucura. “Machado soube como ninguém tocar o assunto da loucura de maneira irônica, em inúmeros textos e, em especial, em O Alienista, no qual ele utiliza constrói um universo ficcional narrado por um ethos irônico. Se para os românticos, essa ironia era a únicas estratégia possível para dar voz aos sentidos da loucura, quem a viveu diretamente a usa da mesma forma, como é o caso de Qorpo Santo. Ele que teve sua voz interditada e vivenciou a clausura, tirou dela a energia para os seus trabalhos, cheios também de ironia” explicou Dantas, marcando como os autores vivenciaram e refletiram em suas vidas e obras o momento do nascimento dos hospitais psiquiátricos no Brasil. “Foram artistas que se encontraram e colocaram na prática o que sabiam fazer”, vaticinou o pesquisador.
Interdição, ironia, aceitação, circulação e estratégias também compõem o percurso do Harmonia Enlouquece, fruto das oficinas formado em 2001 nas oficinas do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro e por onde já passaram mais de 50 músicos, entre usuários e voluntários. Das primeiras atividades, ensaios e formações ao momento atual, tendo alcançado visibilidade no horário nobre da teledramaturgia “global” e se apresentado com grandes nome do cenário musical brasileiro, o olhar e lugar destinado ao Harmonia pela mídia mudou. “Ao longo do tempo e da nossa circulação, foi mudando a abordagem feita sobre nós, do ethos do doente para o do artista. Isso faz uma diferença no imaginário e um efeito enorme numa identidade que já é negligenciada”, frisou Dantas.
+ Conheça o som do Harmonia Enlouquece
Nesse mesmo tempo, o psicólogo e musicoterapeuta também se transformou. “Hoje já não tenho nem como acompanhar e discutir o acompanhamento, e sim pensar harmônicos, arranjos. Nesse percurso, o psicólogo resgatou o músico e esse tomou a dianteira”, brincou Dantas, que não perdeu, por isso, o centro e o foco do trabalho de unir música e atenção psicossocial. “Sabemos que uma oficina em si mesmo não transforma ninguém em artista, e nem a arte cura ninguém. Temos uma preocupação em desconstruir esse lugar do show business quando participamos de projetos grandes. O sucesso é bom, mas não buscamos isso. Separar e entender essas dimensões são fundamentais, e sabemos que nosso trabalho é ferramenta importantíssima, pois damos condições de falar em estados diferentes de ser”.
Vozes, sons e artes em rede: As vozes dos usuários dos Centros de convivência Venda Nova e Providência, na periferia de Belo Horizonte (MG), serviram de ponte para as primeiras interações de músico Babilak Bah com a Saúde Mental. Mas seus primeiros contatos com a loucura vêm da infância, ao cruzar pelas rugas dessa mesma João Pessoa com p-pessoas como Maria Isabel Candeia, a “Vassoura” e João Rasga Rua, considerados como folclóricos loucos da capital paraibana.
É o ruído, seja na musicoterapia e outras experiências com poesia, pintura, colagem e culinária e musicais, que ele busca amplificar e dar sentido ao longo de seu trabalho de mais dez anos em Saúde Mental. Para Babilak Bah, essa é uma das principais funções da arte. “Buscamos trabalhar com ruídos, pois nessa senda o artista tem ainda mais possibilidade de reinventar ”.
+ Conheça o som do Trem Tan Tan
O mesmo trabalho de significação e protagonismo comentado por Dantas é uma preocupação no Trem Tan tan. “Quando produzimos nosso primeiro DVD, o “trem abilolado e outros tan tans, preparamos os usuários para serem os porta-vozes da divulgação. Foi sensível o grande despreparo da imprensa ao se deparar com um artista empreendedor e louco”, riu Babilak, que organiza a Mostra de Artes Insensatas, em Belo Horizonte, na qual aconteceram encontros do Trem Tan Tan com artistas como Chico César e outros
O fortalecimento dessa senda artística no trabalho da Saúde Mental, com a qualificação dos usuários como músicos protagonistas precisa ganhar maior espaço e visibilidade, na visão do diretor musical, num processo de retroalimentação e constituição de redes de troca. “É urgente e necessário se criar uma cartografia do que é produzido por usuários para que a gente consiga recursos públicos, cursos, palestras. Temos uma potencialidade desperdiçada, precisamos de residências artísticas para que eles possam transitar e que componham a agenda das cidades, e não apenas da saúde”, reforçou Babilak Bah.
A arte como elemento da cidadania e da vida: A compreensão do direito à experiência estética como uma das formas de assegurar e vivenciar os Direitos Humanos foi o recorte apresentado pela professora da UFRJ Patrícia Dornelles. Para ela, esse direito sempre foi negado porque “carrega potencialidades que nos torna mais críticos, o que faz desse direito uma questão extremamente política”.
Patrícia coordenou o programa Cultura Viva no Estado do no Rio Grande do Sul e pesquisou diretamente o envolvimento dos jovens que participaram dos Ponto de Cultura TV Ovo, da cidade de Santa Maria (RS) e do Centro de Produtores Independentes de Arte e Cultura – CEPIAC, de Londrina (PR).
Em suas investigações, a pesquisadora buscou identificar como a experiência estética potencializa o contato com o território e das sociabilidades, permitindo um aprofundamento no plano das trocas entre o local e o global como formas de resistência. Junto, são desenvolvidos relações caras ao trabalho de atenção psicossocial, como os sentidos de cuidado, acolhimento e proteção, proporcionando a renovação das hermenêuticas instauradoras do campo da Saúde Mental. “Apesar de nesse estudo não ter trabalhado diretamente com as produções deste campo, é evidente que a descoberta e o mergulho da experiência estética possibilitaram uma criticidade frente à cultura de massas e uma abertura a mundos novos. Os jovens apontaram que essas experiências como capazes de mudar o lugar em que estavam”, reforçou ela, que abraçou a proposta de Babilak na busca começar uma movimentação política para retomar projetos em Saúde Mental pelo Ministério da Cultura, como o Loucos pela Diversidade, realizado em 2008.
+ Confira a matéria sobre a mesa-redonda Militância, passado ou presente?
“É fundamental criarmos movimentos e ações para a mobilização da cultura em Saúde Mental num estímulo de sensibilização das ações locais e pela ampliação desse debate e gerador de agenciamentos de para novos e futuros projetos. Vimos o quanto avançamos com o Loucos pela Diversidade e depois demos um freada. As políticas culturais deveriam ser medidas pelos projetos que vêm depois, não pelas pessoas que assistiram ou passaram num espaço”, conceituou Patrícia, mostrando que, mais do que uma troca de experiências, o 2º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental serviu como laboratório para novos projetos.