A 27ª Cúpula Ibero-americana, realizada em Andorra, dia 21 de abril, tratou centralmente da pandemia no conjunto de países que conformam aquele espaço político, que reúne cerca de 20% da população mundial, mas detém nada menos do que 70% das mortes por Covid-19. Chefes de Estado e de governo e vice-presidentes de 18 países participaram do evento, este ano dedicado ao tema “Inovação para o desenvolvimento sustentável – Objetivo 2030: Ibero-américa frente ao desafio do coronavírus”.
A cúpula foi oportunidade para passar em revista a devastação causada pela Covid-19. Inequidades, injustiças, desigualdades, tragédia humana e desastre foram algumas das palavras mais ouvidas, como se as realidades que designam houvessem sido desveladas recentemente para escândalo de todos e não estivessem presentes desde tempo imemorável, cobertas por espessa camada de indiferença.
Como técnicos chamados a socorrer falhas, mau funcionamento e eventuais entupimentos, os participantes criticaram o Regulamento Sanitário Internacional, o principal algoritmo vigente para avisar que algo está errado e que são necessárias medidas específicas para consertar o problema. Queixaram-se da falta de coordenação internacional e da falta de robustez de colunas principais da arquitetura multilateral, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), que deveria se adaptar face aos novos desafios sanitários globais. Fizeram menção à necessidade de fortalecer os sistemas nacionais de saúde e torná-los mais resilientes, essa palavra tão na moda que parece expressar o que é necessário fazer nesta terrível crise.
Também foram debatidas iniciativas conjuntas que podem contribuir para reverter as consequências desta e de outras pandemias, pois é certo que esta é uma espécie de ensaio para as outras que virão. Entre estas, a mais nova é a proposta para alcançar um tratado multilateral sobre preparação para crises sanitárias. Foram muitos os que valorizaram a importância do conceito Uma Saúde, que reúne em um feixe a saúde humana, animal e vegetal, as formas de vida que compõem a mãe Terra. Alguns propuseram a cooperação vacinal, estimulados pelo desequilíbrio obsceno no acesso ao principal instrumento de interrupção em massa da cadeia de contágio e, sonhadores, avançaram a hipótese de vacinação econômica extensiva para contribuir nos esforços de recuperação e retomada na pós-pandemia.
Para ter uma impressão mais precisa sobre os resultados desta 27ª Cúpula Ibero-americana é preciso voltar atrás e fixar a atenção no próprio tema que inspirou os debates: “Inovação para o desenvolvimento sustentável – Objetivo 2030: Ibero-américa frente ao desafio do coronavírus”. Inovação, Agenda 2030 e Covid-19, portanto, atravessaram o ideário das mentes dos líderes, conscientes de que a pandemia registrou significativos retrocessos na execução dos ODS e para revertê-los será preciso contar com os avanços da inovação. Há, nesse contexto, grande esperança na adoção do tratado sobre pandemias, que será, à semelhança do Regulamento Sanitário Internacional, um algoritmo para orientar o que deve ser feito em caso de crise, proteger os ODS e contribuir para a sua realização.
Em artigo recente no Foreign Affairs intitulado Por que mesmo os países bem preparados foram reprovados no teste da pandemia?1 recorda-se o mecanismo de avaliação externa conjunta (JEE, sigla em inglês) elaborado para medir o grau de preparação dos países ante uma eventual crise sanitária grave. O JEE tem a característica de um algoritmo, com 19 ramas na árvore de decisões. As 19 ramas são as competências em áreas técnicas cruciais, de que seriam exemplo a robustez dos sistemas laboratoriais e a força da capacidade técnica do pessoal de saúde. Os países fizeram o exercício proposto pelo exercício JEE após o brote epidêmico do Ebola. Segundo os autores daquele artigo, países que obtiveram excelente resultado naquele exercício, como os EUA e o Reino Unido, falharam na resposta à Covid-19. Como explicar tão pífia performance durante a pandemia? Segundo os autores, a explicação residiria na própria métrica utilizada. O JEE mede indicadores importantes para a resposta técnica de uma eventual pandemia, mas não o apoio político necessário para levar adiante as recomendações de natureza técnica e científica.
Nós – sobreviventes do maior desastre humanitário de que se tem notícia neste admirável mundo novo, que sabemos, ao escrever, que nesta quinta-feira, dia 22 de abril, já morreram de Covid-19 mais de 3 milhões de pessoas, muitos por incompetência criminal política-administrativa – sabemos o quanto é importante poder contar com políticas boas. Nós, os ainda sobreviventes, não compreendemos como fomos deixados à deriva por capitães de água-doce num mar de incertezas tão terríveis que empalideceriam ao próprio Adamastor, que tanto pavor causou ao ilustre Gama e aos seus valentes companheiros no Cabo das Tormentas. Sabemos todos que não é uma coisinha o que nos atrapalha. Os líderes da Cúpula foram unânimes em reafirmar que ninguém estará a salvo se todos não estiverem a salvo e que para tanto será crucial fortalecer a arquitetura multilateral e as boas políticas, tanto no plano interno quanto no externo, pois frente a problemas globais, como a pandemia da Covid-19, as respostas têm que ser coordenadas sob o signo da solidariedade.
A Cúpula adotou a Declaração de Andorra, o Compromisso, o Plano de Ação e 16 comunicados especiais. Entre estes últimos caberia destacar os seguintes: i) garantia ao direito à saúde por meio do acesso equitativo, transparente, oportuno e universal às vacinas na resposta a pandemias e outras emergências sanitárias; ii) pandemias; iii) acesso ao financiamento externo para a recuperação da pandemia da Covid-19; iv) desenvolvimento de iniciativas para a recuperação econômica pós-Covid-19: v) mudança climática e meio ambiente.
Enquanto a Declaração, o Compromisso e o Plano de Ação apresentam o produto acabado, limpo e pronto para consumo, os comunicados especiais deixam à mostra o caminho percorrido nesse espaço de diálogo político, que completou trinta anos desde a primeira Cúpula realizada na cidade de Guadalajara, no México. É a esse caminho, percorrido em tempos de pandemia, que interessa voltar, identificar as angústias e tensões, resolvidas ou não nos documentos finais.
Os títulos dos comunicados especiais são eloquentes, e como no roteiro de um filme parecem contar a nossa história, a dos sobreviventes. Primeiro, vacinas para todos, que não há tempo a perder. Em seguida, a expressão de um desejo manifestado na proposta de um tratado que nos dirá o que fazer em casos semelhantes. Antes, no entanto, procurar financiamento externos para evitar o naufrágio. Depois, se conseguimos chegar à praia, medidas econômicas para a recuperação. E finalmente, ao refletir sobre o que nos trouxe aqui, reorientar nossos passos para o cuidado com o meio ambiente.
É animador que a Cúpula tenha adotado por consenso o comunicado especial sobre a garantia ao direito à saúde por meio do acesso equitativo, transparente, oportuno e universal às vacinas na resposta a pandemias e outras emergências sanitárias. O comunicado recorda os instrumentos principais da complexa e rica arquitetura de direitos humanos, a Agenda 2030, aprovada por resolução com o significativo título de transformar o nosso mundo, bem como as resoluções adotadas na Assembleia Geral das Nações Unidas e a Assembleia Mundial da Saúde. Recorda, de modo especial, o Acelerador de Ferramentas para a Covid-19 (ACT-C) e reafirma o papel central dos Estados na resposta à pandemia. Faz um chamamento aos fabricantes e provedores de vacinas para que as destinem ao mecanismo Covax. Por último, reconhece que a Covid-19 reclama resposta mundial baseada na unidade, na solidariedade, na transparência e na cooperação multilateral, com vistas a tornar o acesso universal a vacinas uma realidade concreta e urgente.
Nada a objetar, mas o fato é que a pandemia e as suas mais cruéis consequências se fizeram presentes não obstante o impressionante edifício de direitos humanos e de compromissos assumidos para transformar esse nosso mundo tão carregado de inequidades e injustiças. O desastre humanitário não se deu porque não havia a sólida construção de direitos humanos, de compromissos e de promessas. O desastre se deu porque a política, que deveria orientar a economia a ela se submeteu, invertendo a ordem natural das coisas, como num algoritmo voltado para o absurdo. Por isso coube uma interjeição seguida da expressão do desejo de um tratado que nos salvasse no futuro.
O comunicado especial sobre pandemias é a expressão daquele desejo. O documento ressalta a alta probabilidade de que fenômenos como este voltem a ocorrer. Nesse contexto enfatiza que somente o trabalho conjunto e coordenado pelos princípios do multilateralismo constitui resposta adequada à pandemia. Sublinha a necessidade de aperfeiçoar o Regulamento Sanitário Internacional, como parte do exercício de fortalecimento de todo o sistema multilateral e faz um apelo para que seja adotada na próxima Assembleia Mundial da Saúde projeto de resolução para alcançar um tratado internacional sobre pandemias. Antes, no entanto, era preciso evitar o naufrágio e vislumbrar os esforços para continuar vivos.
Por isso foi adotado o comunicado especial sobre acesso ao financiamento externo para a recuperação da pandemia da Covid-19, pelo qual são consideradas propostas de modalidades de financiamento compatíveis com as necessidades dos países, assimetricamente afetados pela pandemia. Entre as medidas propostas destacam-se a suspensão da dívida e a facilitação de financiamento com vistas a reforçar as redes de proteção social e assim evitar a cruel situação de não poder auxiliar, principalmente, trabalhadores informais, bem como pequenos e microempresários, responsáveis por empregar significativa parte da força laboral. Caberia notar que o documento faz registro do agravamento da situação de insegurança alimentar, do aumento dos níveis de pobreza, acentuando ainda mais as inequidades e injustiças sociais, já inaceitáveis antes, no quadro pré-pandemia. Se essa esperança se tornasse realidade talvez fosse possível chegar à praia e dedicar esforços ao pós-pandemia.
Nesse contexto, a Cúpula adotou o comunicado especial sobre o desenvolvimento de iniciativas para a recuperação econômica pós-Covid-19. Fizeram bem os líderes, pois é preciso pensar no dia de amanhã, quando teremos deixado para trás a pandemia num quadro de desolação geral. Os líderes reconhecem, com efeito, a necessidade do compromisso de todos os governo e de toda a sociedade para transformar o mundo. Para tanto apoiam duas estratégias de iniciativa da Costa Rica: i) estabelecimento de um repositório de conhecimentos, dados e estatísticas com vistas a facilitar a replicação equitativa de produtos de saúde para a Covid-19. Essa iniciativa fora lançada durante a Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2020, quando ainda não se conheciam os horrores que estariam por vir, nem o grau de egoísmos que se testemunharia na espera por vacinas ou no gesto de solidariedade por parte das empresas farmacêuticas que nunca veio; ii) criação de um Fundo de meio trilhão de dólares norte-americanos, financiado com a alocação de 0,7% do PIB das economias avançadas (que representariam 80% da economia mundial) para agencias financeiras, que por sua vez facilitariam empréstimos para a consecução dos ODS. Proposta razoável, tímida, porém, diante do compromisso de todos com a necessidade inscrita da Agenda 2030 e nos ODS de transformar o mundo. Não há por que imaginar que o egoísmo presente na distribuição de vacinas não se espraie com a mesma sans-façon para esta proposta. O Brasil não acompanhou o consenso deste comunicado especial e tampouco do anterior. Nem naufrágio, nem chegada à praia, portanto.
O consenso seria total, contudo, no comunicado especial sobre mudança climática e meio ambiente, alcançado dois dias antes da Cúpula de Líderes pelo Clima, promovida pelo Presidente Joe Biden que, por sua vez, é uma prévia da Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 26, que deverá realizar-se em novembro, em Glasgow.
O primeiro parágrafo do comunicado especial, reproduzido a seguir na integra, revela a situação a que nos devemos ater, nós os sobreviventes: o aumento do incremento da intensidade, a frequência dos fenômenos climáticos extremos e o alarmante avanço dos fenômenos de evolução lenta, representam uma ameaça para nossas sociedades, para biodiversidade, para a coexistência de todas as formas de vida de nosso planeta, bem como para os ecossistemas e o nosso habitat – obstaculizando desse modo a consecução dos ODS. À luz desse quadro preocupante, todos os participantes acordaram na necessidade de aumentar a ambição para alcançar os ODS e os objetivos do Acordo de Paris, em especial os esforços para limitar o aumento de temperatura global em 1,5 graus centígrados com respeito à média pré-industrial. Nesse contexto, acordaram metas mais ambiciosas com respeito às Contribuições Determinadas Nacionalmente (NDCs, nas siglas em inglês) e a acelerar as negociações relativas à Convenção-Quadro sobre Biodiversidade pós-2020.
A Declaração de Andorra, o Compromisso e o Plano de Ação reiteram o contido nos comunicados especiais, mas de maneira limpa, sem as cicatrizes deixadas no processo. Talvez mais importante do que está nos comunicados seja o que não está. É significativo que o destaque conferido ao acesso universal às vacinas tenha deixado de mencionar o clamor quase ensurdecedor pela suspenção dos direitos de propriedade intelectual relativos a todos os produtos de saúde necessários para o combate à Covid-19. Com efeito, ex-líderes mundiais, Prêmios Nobel, congressistas norte-americanos e o Papa Francisco, que encaminhou carta à SEGIB, pedem que a distribuição de vacinas obedeça à necessidade humana e não ao ganho comercial. É obsceno que as empresas farmacêuticas se fechem em considerações de lucro quando se sabe que todas as vacinas no mercado foram objeto de pesquisa e desenvolvimento realizados com amplos recursos públicos, ou seja recursos obtidos por meio do pagamento de impostos. A Cúpula poderia ter avançado nessa área, uma vez que o espaço ibero-americano, que reúne 20% da população mundial, tem 70% das mortes por Covid-19, como reconhecido pela própria Diretora-Geral, Rebeca Grynspan.
Assim como a utilização de algoritmos, como aquele que habilita os países a realizarem auto avaliação do grau de preparação diante de uma pandemia, de nada serve se não vier acompanhada de boas políticas, estas tampouco servem se não estiverem apoiadas na ética dos executores daquelas políticas. Toda a arquitetura de direitos humanos deveria ser suficiente para garantir que o mundo fosse mais justo e equitativo. O fato que não, que parece necessário criar mais um instrumento internacional para garantir que a próxima pandemia seja menos terrível, diz muito sobre o fracasso de conferir prioridade à vida sobre o comércio. Não são as flexibilidades de TRIPS ou a Declaração de Doha sobre Propriedade Intelectual e Saúde Pública, que no próprio título confere prioridade ao comércio, que precisamos nestes tempos pandêmicos que já levaram mais de três milhões de vidas.
O significado mais antigo do vocábulo ethos é o de morada, o lugar mais recôndito onde nos encontramos com a plena realidade humana. A falta de ética é assim a recusa daquele encontro. Nada impede, portanto, que a realidade humana seja ultrajada, ainda se levantem impressionantes edifícios de direitos humanos e se acertem compromissos por um mundo melhor.
Mas é preciso viver, ainda que de forma precária.
1 – Why Even Well-Prepared Countries Failed the Pandemic Test, que pode ser acessado em: https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2021-03-29/why-even-well-prepared-countries-failed-pandemic-test
*Santiago Alcázar e Paulo M. Buss integram o Centro de Relações Internacionais em Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz e o Centro Colaborador em Saúde Global e Diplomacia da Saúde, OMS/OPS