Criado em 1981 para marcar a fundação da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em 1945, a celebração do Dia Mundial da Alimentação, acontecida no último dia 16, abre oportunidade para um importante debate: o que pode – e deve – ser celebrado e o que deve – e precisa – ser modificado em prol da vida das coletividades e do planeta quando o assunto é consumo, produção e distribuição de alimentos.
Se a queda constante do preço dos alimentos em geral no mercado internacional e a produção continuada de alimentos – cerca de 2,5 bilhões de toneladas/ano – são dados a serem comemorados, demonstrando que é possível sim alimentar a população mundial de maneira não inflacionária, a extrema concentração da cadeia global da indústria alimentícia impõe a todo o planeta um pobre e nocivo padrão alimentar.
“Quando falamos em alimentação, é importante lembrar que não falamos só do consumo e da dieta, mas também da oferta e do abastecimento. Na verdade, falamos de todo um sistema alimentar, cada vez mais tomado pela industria dos alimentos ultraprocessados e com larga utilização de agrotóxicos, e em todas as suas implicações”, ressalta Anelise Rizzolo, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília (DN/FS/UnB), pesquisadora associada do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (OPSAN/UnB) e integrante do Grupo Temático Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva (GT ANSC/Abrasco).
De Hipócrates à Estratégia Global: Apesar da força inconteste da alimentação sobre o equilíbrio fisiológico, metabólico e, por que não, mental, social e espiritual de homens e mulheres, algo compreendido desde os mais remotos tempos por algumas tribos, povos e civilizações, o debate da alimentação e da nutrição no universo da saúde e da medicina, para Anelise, ainda tem pouca visibilidade, sendo mais lembrado na prática da clínica médica nos processos de acompanhamento e de desfecho de doenças do que nas ações de promoção da saúde.
A partir dos anos 2000, as relações, causalidades e decorrências da alimentação em doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) foram fonte de investigação e de validação de evidências em pesquisas e publicações científicas de grandes centros internacionais, organizadas e sistematizadas pelo Relatório 196, da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O relatório foi base para uma das primeiras políticas globais da OMS a dar destaque para a alimentação no rol das ações de promoção da saúde – a Estratégia Global em Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde. Os acordos entre OMS e FAO foram iniciados em 2002 e finalizados dois anos depois, com a aprovação do documento final na 57ª Assembleia Mundial de Saúde, em 2004. À época integrante do Ministério da Saúde na Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), Anelise destaca que a Saúde brasileira teve forte protagonismo no processo de debate e de formulação da Estratégia, com grande debate interno entre os diversos atores envolvidos, como os ministérios da Agricultura e das Relações Exteriores.
Passados dez anos, a Estratégia ainda é um marco nas políticas públicas internacionais em saúde e alimentação, mas infelizmente, muitas de suas propostas não foram de fato incorporadas. “Em alguns momentos, tentou-se incluir a Estratégia Global como uma ferramenta no cotidiano das políticas do Ministério, mas isso não aconteceu. Ela continua sendo citada na maioria dos relatórios. No entanto, é o Plano de Ações Estratégicas para o enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis o documento-guia atual que deveria contemplar esse debate e essas ações em promoção da alimentação saudável e adequada. Na minha avaliação, ele não consegue avançar com o potencial que a temática poderia ter e pode proporcionar”, argumenta a docente.
Comida de verdade: Mesmo com adversidades, a celebração do dia 16 é válida. A temática ganha mais espaços de debate e tem tocado mais a consciência da sociedade, como provam os debates municipais e estaduais preparatórios para a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (5ªCNSAN), que será realizada de 03 a 06 de novembro, em Brasília. A expectativa é reunir cerca de dois mil participantes, entre representantes do governo federal, titulares e suplentes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e 1400 delegados delegado e delegadas escolhidos nas conferências estaduais e do Distrito Federal, sendo 2/3 de representantes da sociedade civil – entre associações, sindicatos, entidades sociais e de classe – e 1/3 de representantes das demais esferas federativas.
Para Anelise, que também representa a Abrasco no Consea, a Conferência será o momento para a sociedade ampliar suas concepções sobre a alimentação, comprometendo-se não apenas com aspectos técnico-científicos, mas sim com visões de saúde e de sociedade que passam diretamente pela alimentação. “Para o alimento chegar ao prato há muitos processos, muitas vezes encobertos. Nós precisamos debatê-los a fundo e entender que falar de alimentação saudável é falar de agrotóxicos, de agricultura familiar, de modelos de concentração de renda e de distribuição. Estamos num momento relevante para ressignificar o papel da Alimentação Adequada e Saudável no contexto da vida e da saúde”, explica Anelise Rizzolo. Com a saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO no ano passado, a responsabilidade dos movimentos sociais e civis e dos órgãos e gestões da saúde aumentam rumo ao direito e à soberania alimentar.