Nota em defesa da atenção primária e do direito universal à saúde: pela revogação da Portaria nº 2979/19 do Ministério da Saúde
Historicamente, no processo de construção do Sistema Único de Saúde – SUS, seu desenvolvimento institucional sempre envolveu a participação das diversas instâncias do controle social, além daquelas previstas legalmente, como as conferências e conselhos de saúde.
Nesse sentido, o Conselho Nacional de Saúde – CNS sempre gozou de natural protagonismo, por ser a instância máxima de deliberação das decisões pactuadas na Comissão Intergestora Tripartite – CIT, como dispõe a Constituição Federal, a Lei 8080/90, a Lei 8142/90 e a Lei Complementar 141/2012.
Não foi por outro motivo que o movimento da reforma sanitária brasileira já expressou sua indignação com o modo pelo qual o novo modelo de financiamento da atenção primária foi pactuado na CIT, sem interlocução com o CNS e a própria comunidade científica, especialmente quando impôs novos critérios de rateio dos recursos destinados aos municípios, chancelados pelo Banco Mundial.
No que tange a descaracterização da Estratégia de Saúde da Família – ESF, eixo norteador da atenção primária no Brasil, nos causa estranheza propor uma nova forma de repasse, que acaba com Piso da Atenção Básica – PAB fixo, sem estudos robustos que evidenciem, objetivamente, seus impactos sobre a condição de saúde da população, a desigualdade de acesso nas regiões metropolitanas e a sustentabilidade econômica dos municípios.
Em particular, dado o ajuste fiscal, os(as) secretários(as) de saúde municipais não têm como por dinheiro novo para repor os(as) médicos(as) e enfermeiros(as) perdidos nos últimos anos, cujas consequências sociais podem ser desastrosas.
Além do mais, o fim do pagamento destinado às equipes em funcionamento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF repercutirá negativamente sobre a qualidade da assistência à saúde, dificultando o acesso da população ao cuidado integral realizado por nutricionistas, fonoaudiólogos(as), fisioterapeutas, psicólogos(as), entre outros.
Visando anular essa medida, o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) e o senador Humberto Costa (PT-PE) apresentaram Projetos de Decreto Legislativo, que pretendem sustar a Portaria nº 2979/19 do Ministério da Saúde, cujo objetivo é substituir o atual modelo de financiamento da atenção primária por outro baseado na capitação ponderada e no pagamento por desempenho, a partir da experiência de países com território, população, renda média e modelo de provimento diferentes do caso brasileiro.
Tais Projetos alertam que esse novo modelo não foi elaborado de forma transparente, tampouco assegura a redução das desigualdades regionais, ao adotar o número de pessoas cadastradas como critério para focalização do repasse dos recursos, desconsiderando as necessidades de saúde da população, as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de oferta de ações e de serviços públicos de saúde em linha com o disposto no art. 35 da Lei 8.080 e o art. 198 da Constituição Federal.
Para piorar, essa proposta está alinhada com a política de austeridade fiscal, que, a partir de 2016, introduziu um teto para as despesas primárias, por meio da Emenda Constitucional 95, que vem reduzindo o piso do governo federal em termos reais per capita. Essa restrição orçamentária se torna mais grave com as recentes Propostas de Emenda Constitucional apresentadas pelo Ministério da Economia, que visam, a um só tempo, reduzir o teto dos gastos, eliminar o mínimo da saúde na união, estados e municípios e colocar a saúde e a educação numa disputa fratricida – que certamente agravarão as condições epidemiológicas e os vazios assistenciais.
Nessa perspectiva, as entidades signatárias deste documento, reafirmando seus compromissos éticos com a democracia e os direitos sociais, vêm conclamar os parlamentares a aprovarem as propostas de Decreto Legislativo, anulando da Portaria nº 2979/19 do Ministério da Saúde e permitindo a reabertura do diálogo com a comunidade científica, os movimentos sociais e, especialmente, os conselhos de saúde – composto por usuários, trabalhadores, prestadores e gestores.
(Acesse aqui a versão em PDF desta Nota)
Assinam:
ABEn – Associação Brasileira de Enfermagem
ABENFISIO – Associação Brasileira de Ensino em Fisioterapia
ABMMD – Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia
ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva
ABRASME – Associação Brasileira de Saúde Mental
ABRATO – Associação Brasileira dos Terapeutas Ocupacionais
ABRES – Associação Brasileira de Economia da Saúde
ANPG – Associação Nacional de Pós-graduandos
APSP – Associação Paulista de Saúde Pública
ASBRAN – Associação Brasileira de Nutrição
ASFOC – Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz
CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
CFN – Conselho Federal de Nutricionistas
CFP – Conselho Federal de Psicologia
CNTSS – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social
FENAFAR – Federação Nacional dos Farmacêuticos
FENAPSI – Federação Nacional dos Psicólogos
FENAS – Federação Nacional dos Assistentes Sociais
FENASPS – Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social
FNE – Federação Nacional dos Enfermeiros
FNO – Federação Nacional dos Odontologistas
REDE UNIDA – Associação Brasileira da Rede Unida
RNMMP – Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares
SBB – Sociedade Brasileira de Bioética