Nesta primeira edição de 2018, a revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação publicou em seu Editorial um artigo do professor Gastão Wagner, presidente da Abrasco, intitulado A defesa do SUS depende do avanço da reforma sanitária. No texto, Gastão argumenta que esta defesa do SUS passa pela luta contra a desigualdade “por alterarmos a política econômica e social vigente, impondo intervenções públicas voltadas para a promoção da igualdade e do bem-estar”, reforça.
A revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação on-line, em acesso aberto, interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Comunicação e Educação em Saúde – Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu)
Confira o texto na íntegra:
Com o passar dos anos, vem se reforçando minha impressão de que o Sistema Único de Saúde (SUS), aquele previsto na Constituição, é melhor e mais generoso do que o Brasil.
Sem dúvida, trata-se de uma dedução paradoxal, já que o SUS foi idealizado e vem sendo implementado nesse mesmo contraditório, velho e eterno país do futuro e que, aparentemente, nunca se atualiza. Tanto é assim que o SUS concreto – aquele realmente existente – está ainda distante de garantir o direito universal à saúde e a atenção integral conforme as necessidades de saúde individuais e coletivas, mesmo considerando que muito tenha sido realizado e que o impacto do SUS sobre a saúde e esperança de vida do povo brasileiro é positivo.
Entretanto, ao mesmo tempo que se avançou, o SUS que vem sendo construído é cada vez mais assemelhado com as precárias condições de existência dos 70% da população brasileira que o utiliza regularmente. No SUS, como nos bairros periféricos, há descuido com ambiência, com a eficiência da gestão pública e, o mais grave, com as pessoas que usam e trabalham no sistema. O SUS vem se transformando, gradualmente, em mais um espaço dominado pela racionalidade da velha e tradicional promiscuidade da política brasileira. Em síntese, o SUS vem conformando uma ética, uma estética e um padrão de funcionamento em correspondência com o modo de vida da maioria; em muitos aspectos e situações, confirmando um padrão de descaso e de desrespeito à dignidade humana.
No Brasil há uma profunda desigualdade econômica, social e política. Há como que dois mundos coexistindo no mesmo território. Apesar da redução da pobreza ocorrida nos últimos anos, ainda dois terços da população têm renda igual ou menor do que dois salários mínimos. Há também profundas desigualdades em relação ao poder: a composição do Congresso Nacional confirma o desequilíbrio da representação política: maioria formada por empresários, homens e brancos. O machismo ainda é cultura dominante; nas organizações públicas e privadas impera o terror e o arbítrio do gerencialismo. As cidades são sempre duas, dois pedaços com diferenças abismais em relação ao saneamento básico, ao transporte, à habitação, à urbanização, ao lazer e à segurança pública. Basta consultar o Mapa da Violência para nos assaltar a certeza de que há dois Brasis. Os governos têm cuidado mais do crescimento econômico e da manutenção do poder da elite do que de estratégias de desenvolvimento social e humano.
O SUS “a quem é que se destina”? – Caetano Veloso perguntaria. O SUS concreto é, de fato, um sistema de todos e para todos?
A defesa do SUS passa pela luta contra a desigualdade, por alterarmos a política econômica e social vigente, impondo intervenções públicas voltadas para a promoção da igualdade e do bem-estar.
A frase que venho empregando “A esperança somos nós… e os outros” é uma metáfora para expressar a certeza de que a defesa do SUS, da democracia e dos direitos sociais, nesse momento em particular, depende da sociedade civil mais do que do Estado e dos políticos profissionais. Depende da revitalização do movimento sanitário e de sua articulação com amplos setores da sociedade – movimentos de luta por direitos, como o das mulheres, dos idosos, das populações indígenas e negra, dos portadores de patologias, das várias crenças religiosas que participam também da vida social, dos sindicatos, enfim, temos que verbalizar um projeto inclusivo de sociedade e, especificamente, de direito à saúde.
Em grande medida, o SUS é a expressão concreta de uma história de luta pelo direito à saúde. É necessário falar sobre o SUS, comentar sobre essa utopia e sonhar com a possibilidade concreta de que isto seja possível, algo que depende da defesa do que foi construído, mas também de mudanças que superem inúmeros impasses que separam o SUS da lei daquele SUS real vivenciado no dia a dia.
Comentarei algumas estratégias que poderão recompor nossa capacidade de resistir ao desvario elitista dos atuais dirigentes do país.
1- Promover ações simbólicas e práticas para reforçar o SUS como sendo um sistema de todos e para todos. A fuga do terço mais rico da população para os planos privados é mais um sintoma da construção de um país para os ricos e poderosos e de outro para o povo.
Com esse objetivo, iniciar uma campanha nacional para aprovação de lei proibindo a utilização de recursos públicos para pagar planos privados de saúde para servidores públicos e trabalhadores de estatais: parlamentares, do poder judiciário, administração direta, estatais, etc.
Organizar movimento para aprovação de lei que termine com a isenção de imposto de renda para contribuintes que utilizaram serviços privados de saúde.
E, ainda, alterar cultura e política dos sindicatos de trabalhadores para que realizem ações em defesa do SUS, particularmente em regiões onde vivem seus associados e que, ao mesmo tempo, lutem pela incorporação dos recursos gastos pelas empresas com planos coletivos aos salários e rendimentos dos trabalhadores.
2- A obtenção de um financiamento adequado para o SUS dependerá da mudança da matriz econômica vigente e da adoção de ações voltadas para o crescimento econômico, ou seja, um novo desenvolvimentismo, com utilização do orçamento público não para desoneração fiscal – bolsa empresário –, mas para investimento em políticas sociais e de infraestrutura: saneamento básico, reforma urbana, transporte público, habitação, saúde, educação, segurança pública e promoção social.
O obstáculo principal a ser enfrentado no momento é a revogação da Emenda Constitucional 95 (teto de gastos), já que, a curto prazo, promoverá brutal redução de investimentos e de gastos com custeios das políticas sociais e de infraestrutura. Na saúde, trata-se da ocorrência de milhares de mortes evitáveis por políticas e programas sanitários e sociais reduzidos ainda mais.
Defendo, ainda, que todo pedido de ampliação de financiamento na saúde deve ser acompanhado por um projeto que defina sua aplicação, tais como recursos para dobrar cobertura da Atenção Primária, elaboração de mapa com dificuldades de acesso à média e alta complexidade por região de saúde, construção de Política de Pessoal para o SUS, ampliação da política de controle das arboviroses mediante ações sobre determinação social da epidemia: degradação urbana, entre outras prioridades.
3 – Reforma do Estado e da gestão do SUS, objetivando reduzir drasticamente a fragmentação do sistema e a dependência do SUS da política partidária e do poder executivo.
Apesar do termo “único” na denominação de nosso sistema, não há como desconhecer as dificuldades de constituição e de gestão das redes sanitárias, de realização de planejamento e avaliação integradas e do uso racional de recursos. O caminho factível para ampliar a integração entre entes federados, entre atenção primária, média e alta complexidade, urgência e vigilância, é o fortalecimento das regiões de saúde.
Acredito que as regiões de saúde deveriam ampliar o escopo de suas responsabilidades e de sua atuação, assumindo o caráter de instância de gestão operacional de parte da rede, no caso, da média e alta complexidade, da regulação, de parte da urgência – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) – e de parte da vigilância. Para isso, as regiões de saúde deveriam contar com Fundo Regional de Saúde, ou seja, com orçamento próprio, conforme o volume de suas responsabilidades e com contribuições da União e dos estados. O comando da região será, conforme previsto em lei, das Comissões Intergestoras Regionais (CIR), que deveriam indicar, inclusive, um secretário regional de saúde mediante critérios técnicos e de experiência no SUS. Os municípios, além de participarem da gestão das regiões, deverão realizar a gestão de serviços e programas sob sua responsabilidade.
Para se lograr uma autonomia sanitária relativa para o SUS, poderíamos lutar pela aprovação de uma lei que determinasse que as funções de gestão de programas e de serviços do SUS não sejam mais cargos de confiança ou de livre provimento, mas ocupados mediante processos seletivos internos aos profissionais do SUS.
4 – Política de pessoal única para o SUS
Constata-se que há uma multiplicidade de políticas e de modalidades de gestão de pessoal no SUS. A União, cada município, estado, organização social, fundação de saúde e prestador filantrópico ou privado contratado têm regras próprias, bem como mecanismos diferentes de contratação e de pagamento aos trabalhadores de saúde. Tendo em vista restrições orçamentárias, dificuldades jurídicas e gerenciais para a gestão do trabalho no Brasil, reproduziu-se, na administração pública sanitária, a cultura de improvisação e de precarização das relações de trabalho.
A existência de um novo tipo de profissional de saúde depende da constituição de uma política de pessoal única para o SUS que contemple diversidades das várias profissões e especialidades e também a diversidade sanitária e de contexto das várias regiões brasileiras.
Imagino que devêssemos romper com a tradição de organizar carreiras com base nas categorias profissionais.
Imagino um novo tipo de política organizada segundo a lógica das principais áreas dos sistemas de saúde. Identifico no SUS cinco áreas: atenção básica; atenção de média e alta complexidade (rede secundária e terciária – ambulatórios, centros de referência, serviços de atenção domiciliar e hospitais); rede de urgência e emergência; vigilância à saúde; e apoio à gestão do SUS (setor administrativo, manutenção e financeiro).
A gestão dessa nova política seria necessariamente compartilhada entre União, estados e municípios, ficaria a cargo da Comissão Tripartite do SUS, mediante a criação de um órgão público (autarquia ou fundação pública) e de um fundo orçamentário para política de pessoal.
5 – O SUS precisa ser reconhecido como um espaço público. A experiência dos sistemas universais e públicos de saúde indicam a incompatibilidade entre essa alternativa e o funcionamento do mercado. Caso avance a redefinição do papel e a organização das regiões de saúde e caso se efetive a política de pessoal única para o SUS, não haverá mais necessidade da terceirização da gestão do SUS para a modalidade de organizações sociais. Elas poderão ser totalmente substituídas pela rede pública recém-especificada, viabilizando dessa maneira condições propícias para o funcionamento do SUS segundo nossos princípios e diretrizes legais.