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Uma mesa musical, sob os auspícios de Tom & Vinícius; do jazz e de Hamilton de Jesus, para conversar sobre os desafios da política de Saúde Mental no Brasil atual. Loucura? Só, somente só que não pode ser que não é, como só poderia acontecer nos encontros da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e que aconteceu na manhã de 27 de maio, num lotado Teatro da Unip – Indianápolis, em São Paulo, onde se reuniram Ernesto Venturini, Paulo Amarante, Sérgio Pinho, Walter Ferreira e uma plateia atenta e participativa para o primeiro grande debate do 5º Congresso Brasileiro de Saúde Mental.

Uma leitura viva que amarrou das concepções sobre o cuidado da antiga sociedade grega até provocações sobre a real dimensão e o papel dos diferentes espaços da política de atenção foi o caminho explorado por Ernesto Venturini, figura de proa da Psiquiatria Democrática italiana. Ele foi buscar no cotidiano daquela sociedade descrita por Heródoto, o primeiro historiador da civilização ocidental, para nos lembrar que as pessoas consideradas desajustadas eram assistidas nas praças públicas e locais de concentração e de comércio onde se faziam remédios e processos diversos de cura, marcas de uma formação social que compreendia a doença e a diferença como parte da vida em comunidade.

“Hoje, a sociedade contemporânea, que tem como marca a dissolução desses laços familiares e comunitários, entende a assistência somente como um campo de consumo, uma visão de uma sociedade de serviços, e que teve esse processo instrumentalizado pela instituição hospitalar”, pontuou Venturini, relacionando os efeitos do neoliberalismo econômico sobre o campo da saúde, transformando toda e qualquer forma de cuidado em mercadoria, conceito no qual incluiu outras instituições de controle, como os disfarces das instituições manicomiais, menos violentas, mas tão manicomiais quanto; a prisão e o próprio mercado das drogas, “o lado underground dessa mesma história”, em suas palavras.

Contemplar outras estratégias de afecção na vida e nas ações do cuidado que questionem, desmontem e esvaziem as atuais concepções vigentes da saúde e da atenção é e sempre será o desafio central da Reforma Psiquiátrica na visão exposta por Venturini, um processo que passa também pela refundação das práticas a partir do conceito de liberdade. “Ao contrário do mote consagrado, de que a liberdade assim como o direito de um começa quando acaba o dever, precisamos entender que a minha liberdade só poderá começar com a libertação do outro, e a possibilidade de efetuá-la, de discuti-la e de pensar como essa liberdade é de fato constituída mostra que estamos conscientes desse desafio”, argumentou ele.

O desafio dessa liberdade, para ele, passa pela necessidade das atuais estratégias de intervenção e de práticas de cuidado, como recovery, open dialogue e outras,  terem a humildade de não se reconhecerem como formas de poder, de se adaptarem em prol da sua efetuação no SUS e nos sistemas de saúde balizados pela universalidade e pela solidariedade.  Isso exige um outro olhar sobre os CAPS e demais pontos da RAPS. “Temos de querer entender os CAPS como locais de crise. Isso não pode ser um problema para nós. Não podemos querer ser os solucionadores das crises. Esse papel é dos atores sociais e das comunidades. O papel do profissional é ser potente para poder auxiliar nesse processo, às vezes carregado, mas que precisa ser alegre para ser efetivo, pois é melhor ser alegre do que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe, é o que a gente traz no coração”, encerrou ele com os versos do Samba da Benção.

Na vez de Sergio Pinho, diretor da Associação Metamorfose Ambulante de Usuários e Familiares do Serviço de Saúde Mental (AMEA, instalada na Bahia), um fluxo que juntou poesia, a ferramenta de expressão do usuário Sergio, com conceitos teóricos e projeções de slides eletrônicos, ferramenta do profissional Sergio, técnico habilitado em redução de danos fez ecoar as ideias desse baiano, que descobriu as intercessões da prática política como ponto para repensar a dimensão clínica.

“Vem a pessoa no tempo/ construindo-se com o que é vivido à cada instante/ brincando com a história/como se fizesse bolinha de papel/bolha de sabão” declamou ele, relacionando as diversas formas de ser e estar no mundo a partir dessas imagens, como bolinhas das mais variadas formas, tamanhos, umas mais leves que voam, outras que pesam e afundam. Para Pinho, o legado que a Reforma Psiquiátrica deixou foi a possibilidade de “se encarar o sujeito doido como sujeito, pois ele é apenas mais um tipo de sujeito. Daí vem a luta antimanicomial que sustenta politicamente a subjetividade desse sujeito doido”.

O papel social e político já alcançado pelas ideias, lutas e legislações construídas a partir da luta antimanicomial foi apontado por Pinho como elemento central para que ele pudesse estar em um congresso científico. “A gente precisa perceber as conquistas que tivemos. Só pude me organizar como sujeito, ser técnico e aqui estar, pois já encontrei uma Reforma em prática”, ressaltou ele, que atualmente já aprendeu a lidar com a sua própria complexidade, o qual adjetiva de “anfíbia”. “No início eu não gostava, mas hoje sim que posso ser um sapo a ser beijado para virar príncipe”, brincou.

Esse vir a ser, carregado de história pessoal, é o que permite que qualquer usuário parpasse a coisa pública e coloque sua voz e construa sua memória, o que se dá também por meio da militância, “essa vida entre a espada e a flor”. Nesse momento, veio à fala a lembrança e homenagem a Marcos Vinícius Matraga. A voz embargou, mas seguiu  “Eu vou segurar a emoção”, disse Pinho, num gesto que reforçou ainda mais o que diria em seguida: que a militância deve e merece ser mais valorizada na dimensão da saúde mental. “O trato antimanicomial, uma ferramenta da clínica para uma atuação política e do cuidado um improviso de jazz”, finalizou ele, que releu toda a poesia apresentada num só fôlego e encerrou com o “solo” tirado dum saxofone de boca.

“Eu tô aqui pensando que música eu vou precisar cantar”, iniciou Paulo Amarante, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca  da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e vice-presidente da Abrasco, arrancando risos da plateia antes de começar a pontuar os desafios do atual momento. De início, criticou a atual junta que governa o país. “Os ataques que estamos sofrendo com esse governo ilegítimo, que fez no seu primeiro dia ataques imediatos justamente nos espaços onde crescemos em nossa sociedade, não estão desconectados de ataques no mundo inteiros aos fundamentos do Welfare State”, relembrando que o SUS, única medida de iniciativa popular da Assembleia Constituinte, já nasceu como uma política “contra a maré”.

Amarante destacou também que a sanha do setor privado, cada vez mais evidente e disseminada pela força que as Organizações Sociais e de grandes empresas que se disfarçam sob a égide da filantropia não surgiu com a atual conjuntura, numa crítica à parcela dos lutadores da Reforma. “Fomos tímidos com a implantação da RAPS, acho que pouco entendemos qual deveria ter sido nosso papel quando dentro do Estado. Ainda deixamos mais de 15 mil vagas nos hospitais psiquiátricos, um modelo que ainda cresce como erva daninha e está a serviço de uma visão de mercado que ainda cresce”, sentenciou.

O pesquisador da ENSP/Fiocruz reforçou que o fortalecimento da rede de atenção psicossocial e a sua integração como a Estratégia da Saúde da Família devem ser tomadas como espaços de enfrentamento da lógica mercantil, e que só poderão alcançar toda sua potencialidade quando  imbuídos e geridos pelo público. “A capilaridade e a complexidade técnica e política feita hoje pelos CAPS seria impossível apenas com recursos e gestões privadas”. A retomada da inserção do movimento antimanicomial nos espaços de participação social da saúde foi uma das estratégias apontadas por Amarante para o fortalecimento do caráter público da saúde. “A participação e a pluralidade são essenciais para nossas ações. Precisamos construir uma agenda em conjunto com demais setores da sociedade e superar nossas diferenças, pois o inimigo é outro. Assim como conseguimos aprovar o SUS, devemos continuar a acreditar que podemos mudar a realidade”.

O escancarado projeto de medicalização da vida e do cotidiano implementado pela Big Pharma e por toda uma sociedade comprometida pelo modelo biomédico da saúde foi um dos últimos pontos destacados pelo vice-presidente da Abrasco, que reforçou ser necessário constituir movimentos efetivos de denúncia aos horrores ainda promovidos pela psiquiatria e de oposição sistemática ao DSM-05 e o sistema das drogas prescritivas. “É cada vez mais assumido por aqueles que defendem essa visão de saúde de que é necessário medicalizar toda e qualquer diferença. Chegam a utilizar a famosa frase do Caetano – “de perto ninguém é normal” – para falar que, logo, é possível receitar remédios para todo mundo. Vende-se assim a ideia de que o remédio melhora a vida, e a gente sabe que não é isso. Haldol, Diazepam/Rohypnol, Prometazina/Meu médico não sabe/Como me tornar/Um cara normal. Viram, eu cantei também!” saiu-se Amarante, solfejando os versos de Sufoco da Vida, obra-prima do conjunto Harmonia Enlouquece, mostrando que a melhor estratégia para os enfrentamentos no campo da saúde mental é nunca perder a alegria e a esperança na criação e transformação humanas.

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