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Desafios e perspectivas para o SUS

É preciso recuperar os aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil que foram perdidos no Brasil. Só assim será possível construir um projeto que vá além de outubro, ou seja, que seja mais amplo do que o processo eleitoral. Foi assim, lembrando o conceito do italiano Antonio Gramsci – e, segundo suas próprias palavras, inspirado pelo debate entre os presidenciáveis que tinha acabado de ser promovido pela Abrasco em parceria com o Conselho Nacional de Saúde -, que Jairnilson Paim, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e um dos maiores nomes do campo da saúde coletiva, iniciou a mesa-redonda ‘SUS: desafios e perspectivas’, no segundo dia do 12º Abrascão (27/07) . “É preciso retomar a luta contra-hegemônica que perdemos por muitos motivos, inclusive pelo transformismo de parte da esquerda”, disse.

Grandes nomes, aliás, foi a tônica do debate, que contou ainda com a exposição de Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Sonia Fleury, do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz.

Pensar e agir

Pensar o social em articulação com o político foi um dos desafios apontados na fala de Jairnilson Paim. Mas o social, ressaltou, precisa incluir o sujeito que seja capaz de incidir sobre ele, também para além do setor saúde. Já o político, ressaltou, deve ser entendido como terreno não apenas do consenso, mas também do dissenso, do conflito, dos antagonismos. É preciso, portanto, segundo o professor, construir forças políticas que, a médio e longo prazo, possam pensar o “socialismo democrático” para o Brasil. “O maior desafio do SUS é político”, afirmou. E enumerou. É político, disse, porque se relaciona com a questão do Estado; porque lida com a disputa pelo fundo público que é determinante do subfinanciamento dos serviços públicos; porque trata das relações espúrias entre público e privado; porque precisa enfrentar os desafios das relações interfederativas.

Por tudo isso, defendeu Jairnilson, é preciso ir além do ”pensar”, é preciso “construir sujeitos” que façam mais do que “tematizar” o social. “Por muito tempo escrevemos teses. Mas este congresso está nos convidando a pensar em ‘como fazer’ para avançar na Reforma Sanitária e no SUS”, alertou, defendendo que precisamos e podemos constituir sujeitos que articulem todo esse conhecimento produzido para uma ação estratégica distinta.

Fechando a sua intervenção também com um conceito de Gramsci, como abriu, o professor defendeu que isso demanda a “construção de um bloco histórico” que envolva a saúde, mas tenha inserção nas Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular, de modo a se construir “de baixo para cima” um programa político que não seja necessariamente unitário, mas que aponte convergências. “Tendência não é destino”, concluiu, positivando os desafios.

O Estado

O professor da UFBA destacou ainda que o Estado brasileiro “não tem sido parceiro” do Sistema Único de Saúde. “Executivo, legislativo e judiciário sabotam o SUS”, disse, ressaltando que “o pacto da Constituição de 1988 não foi cumprido” e que a ‘sabotagem’ envolveu todos os governos depois de 1988. “Esse Estado tem que ser virado do avesso”, provocou.

A apresentação de Ligia Bahia, que aconteceu em seguida, apresentou dados recentes que poderiam ser usados como exemplos dessa ‘sabotagem’ nos três poderes, embora com alguma disputa. Segundo ela, enquanto a criação do Mais Médicos exemplifica uma “lei expansiva”, a Lei Complementar 141, de 2012, que prejudica o orçamento federal para o SUS, a abertura para o capital estrangeiro na saúde (Lei 13097/15), a portaria nº 3, de 2013, que incentiva planos de saúde para servidores com recursos públicos e algumas legislações que favorecem a privatização da saúde permitindo maior aporte de isenção fiscal para instituições filantrópicas ilustram medidas “restritivas” no âmbito do Executivo. Ela lembrou que todas essas mudanças foram agravadas também pela Emenda Constitucional 95, de 2016, que congelou os gastos públicos federais até 2036. Ligia citou ainda um documento de trabalho do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) que afirma que o SUS não deu certo e ações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que tem financiado hospitais privados e filantrópico-privados. Ligia chamou atenção para o fato de que, dos 30 anos de existência do SUS, 13, “quase metade”, se deram sob governos do Partido dos Trabalhadores (PT).

No âmbito do legislativo, Ligia destacou a existência de uma Frente Parlamentar da Saúde, que hoje atua em duas comissões especiais opostas: uma que quer ampliar o orçamento do SUS e outra que defende a proposta de plano de saúde popular, tocada pelo ex-ministro da saúde Ricardo Barros. Mapeou ainda declarações de vários deputados que, no geral, elogiam o SUS, mas sempre com ressalvas que descaracterizam o sistema.

Já no Judiciário, segundo Ligia, o cenário é mais confuso, com a convivência de medidas progressistas, como a recente decisão da ministra Carmem Lucia que suspende a cobrança de 40% dos serviços prestados por planos de saúde nos contratos de coparticipação, e iniciativas prejudiciais ao SUS, como a que desautoriza a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a decidir sobre registros de medicamentos.

Embora sem fazer referência à fala específica de Jairnilson, Sonia Fleury, que encerrou as apresentações da mesa, problematizou essa noção, segundo ela muito repetida hoje, de que “o pacto da Constituição acabou”. “Eu acho que não teve pacto nenhum”, discordou. Segundo ela, houve uma crise do governo civil-militar que abriu uma “janela de oportunidade” e encontrou uma sociedade que se organizava naquele momento. É daí que vêm também as propostas da saúde, disse. “Não havia acordo nem entre nós, quanto mais um pacto com os russos”, brincou, ressaltando que não houve nada parecido com uma reunião do movimento sanitário com o setor privado, por exemplo, para fechar um acordo. Ela concordou, no entanto, que a Constituição foi sabotada “desde o primeiro dia em que foi promulgada”.

Avanços e conflitos

Sonia defendeu que, apesar de todos esses conflitos, a Constituição de 1988 foi um “enorme avanço”, principalmente porque “subordina os interesses privados ao interesse social”. Um exemplo, para além da saúde, é o fato de a Carta definir uma função social até para a propriedade privada. “Não vejo como não dizer que o SUS é uma ideia revolucionária”, defendeu.

Trinta anos depois, segundo ela, o setor saúde e o SUS são muito mais complexos. Mas, do lado dos seus militantes e defensores, também houve, na avaliação da pesquisadora, uma “grande especialização e corporativização”, o que teria levado a uma “pulverização da base social”. Ela apontou como sintomático o fato de, ao mesmo tempo deste Abrascão, estar acontecendo o congresso do Conasems [Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde]. Intelectuais e gestores, que já caminharam juntos na defesa do SUS, hoje estão em encontros distintos e separados, realçou.

No cenário de hoje, de prevalência do capital financeiro, de desterritorialização do capital e da produção, estamos, segundo ela, diante de um processo de “desdemocratização” mesmo nos locais onde havia democracia e Estado de Bem-Estar Social. E isso, de acordo com Sonia, limita também as possibilidades do SUS. Mas a pesquisadora ressaltou também que esse modelo tem gerado “contradições enormes”, promovendo um desencanto com a política, mas também uma “cidadania insurgente”. Ela deu como exemplos a recente eleição de Andrés Manuel López Obrador, no México, com uma plataforma que defendia serviços públicos, e a vitória de Alexandria Ocasio-Cortez, uma jovem mulher de origem latina que venceu as eleições primárias para deputada em Nova York, nos Estados Unidos. Por aqui, no entanto, ela reconhece que essa discussão continua “muito pobre”. “Falta capacidade de articular politicamente as várias insatisfações da sociedade”, concluiu.

Democracia sem democratização

O SUS foi uma grande conquista e representa uma política democrática, mas não foi totalmente efetivado. Na prática, o Brasil viveu uma transição, tocada por um bloco democrático, mas que não resultou em processos de fato “democratizantes”. Essas foram as principais premissas da apresentação de Ligia Bahia, que se ancorou em um artigo de sua autoria publicado nos Cadernos de Saúde Pública e intitulado ‘Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente’.

O primeiro argumento da pesquisadora, para mostrar a complexidade do sistema de saúde, é que, em vários mapeamentos feitos em relação ao SUS, “não se fecha 100%”. Segundo dados apresentados, pesquisa recente da Associação Médica Paulista (AMP) mostrou que 31% dos entrevistados que tinham plano de saúde disseram recorrer ao SUS, enquanto 19% “pagam por fora”. “Há um subconjunto da população que se move”, explicou.

Raciocínio semelhante pode ser aplicado aos cálculos sobre o investimento em saúde: de acordo com Ligia, se consideramos o gasto tributário como gasto público – já que se trata de recurso público indireto, que o Tesouro deixa de arrecadar, por exemplo, por meio da isenção de impostos – altera-se a proporção entre gasto privado e público no Brasil.

Com números que mostraram o nível de internação, atendimento primário, assistência hospitalar e outros procedimentos na rede SUS, Ligia mostrou que houve uma expansão do setor público, acompanhada por uma retração do seu financiamento. Mesmo essa expansão, no entanto, não se dá em todos os setores: segundo ela, o número de transplante na rede SUS, por exemplo, caiu de 7,5% para 5,3% em 2015. E esse número se agrava: embora se diga que no Brasil o transplante é feito exclusivamente pelo SUS, de acordo com Ligia, metade desses procedimentos hoje se dão em hospitais filantrópicos, que se especializaram nessa área.

E isso mostra, segundo a pesquisadora, que essa caracterização do setor público, privado e filantrópico na saúde também ficou mais complexa. O público se tornou muito intermediado pelas Organizações Sociais (OS), por exemplo. O filantrópico se divide entre aqueles que são “mais SUS” e o que ela chamou de “filantrópico-privado”, que envolve hospitais privados de luxo, como o Sírio Libanês e o Albert Einstein. “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um pobre entrar num desses hospitais”, brincou. O setor privado também sofreu variações, envolvendo as empresas de planos de saúde, grupos empresariais e outros modelos. Isso sem contar o público, que, ao longo desses 30 anos, também foi ampliado, incorporando novos serviços, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs).

Diante de todo esse cenário, a boa notícia, segundo Ligia, é que, sempre que é consultada, a população brasileira reafirma que quer serviços públicos de saúde e educação. E, ao mesmo tempo, a atenção privada a saúde tem causado grande insatisfação nos usuários. O desafio, concluiu, citando Paulo Vanzolini, é “dar a volta por cima”. “Não podemos mais ficar dizendo que há empate. Não há. Estamos perdendo. E, para superar isso, teremos que dobrar os esforços”.

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