Não basta dar a voz. Uma comunicação em saúde que realmente queira intervir nos processos de saúde-doença e de conscientização social tem de, também, ter a cara, os elementos, as marcas e as histórias dos segmentos sociais que representa e por onde se expressa, de maneira renovada e crítica a vícios institucionais e a pontos esquecidos. Essa visão atravessou a fala dos painelistas que compuseram a segunda mesa do Diálogos PenseSUS, realizada na tarde da terça –feira, 29 de setembro, na Biblioteca de Manguinhos. O objetivo do evento foi reforçar a mobilização de militantes e pesquisadores da área para a 15ª Conferência Nacional de Saúde (15ª CNS), que acontece de 01º a 04 de dezembro, em Brasília, e jogar luz em temas como participação social, comunicação, saúde e outros “verbetes” do projeto liderado pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (ICICT/Fiocruz) e que conta com o apoio da Abrasco e do Cebes.
Coube a Paulo Amarante representar o movimento sanitário na atividade, que contou com a presença de Michely Ribeiro, membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da equipe de articulação da Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra, e de Valdir Castro de Oliveira, professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGIS) do ICICT/Fiocruz. A mediação foi de Janine Miranda Cardoso, também professora do PPGIS e integrante do Grupo Temático Comunicação e Saúde (GTCOM/Abrasco).
Michely foi a primeira a fazer uso da palavra e apresentou algumas das ideias que vem sendo discutidas sobre o assunto dentro do CNS e pelos movimentos negros da juventude e da saúde. Para a psicóloga, a comunicação é um dos principais espaços de disputa e de representação em nossa sociedade e, quando os movimentos se valem de seus instrumentos, ela aprimora os níveis de integração social. No entanto, é preciso trabalhar os elementos que geram essa significação tanto para o público que quer comunicar e que se quer comunicar. Como exemplo, trouxe a vivência do projeto Jovem Quilombola Saudável, realizado pela Rede Mulheres Negras – PR, que promoveu intervenções educativas junto à população de adolescentes e jovens quilombolas de quatro comunidades do estado: Feixo, Restinga, Vila Esperança e comunidade João Surá. “O debate deve ser feito a partir do local e adequado às pessoas do segmento, entendendo seus tempos e formas de expressão”.
Na sequência, foi a vez de Amarante, figura histórica do movimento sanitário e antimanicomial, atualmente vice-presidente da Abrasco, além de presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e diretor editoral do Cebes. Após as primeiras brincadeiras e considerações, ele resgatou a memória do movimento sanitário , citando a publicação d‘A Questão Democrática na área da Saúde para relacioná-la ao atual momento dos debates da 15ª CNS. “Originalmente, a questão do SUS dizia respeito à democracia, à participação e construção de pensamento crítico e projeto civilizatório, saúde como direito e defesa da vida, e não apenas a dimensão da assistência”, explicou ele, ressaltando a participação social como expressão viva da sociedade. No entanto, o processo de institucionalização promoveu cristalizações. “Entendíamos o usuário como sociedade civil que usa o SUS. Acabou com o tempo, o conselho ficou predominantemente composto por segmentos de pessoas com esses transtornos, e entidades com uma visão de Estado sobre a saúde”.
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Para Amarante, é urgente que outros segmentos sociais ocupem os espaços da saúde – conferências e conselhos – provocando assim deslocamentos identitários nas concepções de participação social em voga na sociedade brasileira. “Temos que buscar os demais movimentos sociais – negro, LGBT, comunidade indígena, movimentos de juventude e todos os movimentos que lidem e valorizem práticas libertárias. Temos de voltar a pensar na ideia da participação e construção social, e não do controle social. Deixar de assumir um papel falso, de que o Estado me controlava e que agora eu controlo o Estado”.
O professor pontuou sua crítica a um outro conceito muito em voga nos tempos atuais, usando de uma anedota sobre “delegados” das conferências e a ideia de empoderamento. “A questão não é poder, mas participação e reconhecimento, são outras formas de entender o respeito às subjetividades”, afirmou Paulo Amarante.
Para ele, apenas a efetivação das diversas práticas de vida e, em especial aquelas que valorizam as dimensões culturais, que a sociedade poderá recuperar de fato o exercício democrático nos seus espaços, como a 15ª CNS. Para isso, usuários e movimentos devem partir de práticas novas, valendo-se de legislações, produtos das políticas públicas e processos de organização e produção de conhecimento e de afetos, como o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (III PNDH) , a Convenção Internacional sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (Decreto Nº 6.177, na lei brasileira), e os Fóruns Brasileiros de Direitos Humanos e Saúde Mental, entre outros.
Por uma real polifonia frente aos velhos e repetidos atores: Mineiro de Brumadinho, professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atuante no PPGIS/Fiocruz, Valdir Oliveira também recorreu à memória para falar de seu percurso e ressaltar a contraditória polifonia do setor saúde . Desde que se envolveu como cidadão nos debates da saúde, em 1994, e abraçou o tema como pesquisador da Comunicação Social, ele vê nas conferências um importante espaço da diversidade cultural e comunicacional que deve e precisa ser valorizado. “Comunicação e informação fazem parte do horizonte de operacionalização da sociedade porque trabalham com variáveis que podem melhorar e contribuir para o conjunto social. Para isso, as falas não podem ser monocórdias”, sinalizou.
O pesquisador entende a participação e o controle social como uma interelação de valores, como ação política, construção de acordos e assunção de responsabilidades, indução de inteligência coletiva, entre outros. No entanto, ressaltou que, assim como os demais espaços públicos legislados em sociedade, conselhos e conferências são carregados e atravessados pelo contraditório e têm sofrido pela falta de renovação nos quadros e pelos instrumentos de cooptação das esferas de poder e decisórias. Tais engrenagens e vícios enfraquecem a potencialidade das conferências, uma realidade que não pode ser evitada ou escondida nos estudos em Comunicação e Saúde. “Produzimos impactos que não são conhecidos. Falta a gente avaliar melhor esses impactos, resgatar a visão crítica sobre esses atores para contribuir para o debate e entender os reais problemas”, sentenciou Valdir.
No encerramento, Janine Cardoso destacou que manter em perspectiva crítica a avaliação das práticas institucionais hoje cristalizadas. “Quantas de nossas iniciativas de fato merecem ser chamadas de comunicação? A começar pela concentração das campanhas publicitárias da saúde, muito criticadas no início da década de 1990. Houve um tempo em que a gente denunciava. Hoje ninguém mais se angustia com isso. Estavam em jogo dois modelos de publicização. Como está esse debate hoje?”, provocou ela, abrindo o debate, que teve participação de militantes, pesquisadores e profissionais de saúde. Assista na íntegra: