Mística, conhecimento e luta se entrecruzaram na primeira mesa redonda do 2º Simpósio Brasileiro de Saúde e Ambiente – 2º Sibsa. Com o tema Desenvolvimento e Conflitos Territoriais: Experiências dos mapas e diálogos de saberes para a justiça ambiental, a plenária reuniu Fernando Carneiro, da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Firpo Porto, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Andréa Zhouri, do departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG), Henrique Sater, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e Maria Izabel Grein, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na manhã de 20 de outubro, no Minascentro. A mediação foi da professora Raquel Rigotto, da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A sessão foi aberta pela apresentação da mística construída por um conjunto de militantes de diversos movimentos que expressaram de forma viva e visceral os conflitos vividos em seus territórios e os enfrentamentoscom o Estado brasileiro, utilizando corpos, vozes e girassóis como as principais armas. Na sequência, Fernando Carneiro, professor da UnB e também coordenador do Grupo Temático Saúde e Ambiente (GTSA/Abrasco), contou o processo de desenvolvimento que permitiu a articulação do 2º Sibsa e os objetivos científicos e políticos do Simpósio. “Precisamos avançar na constituição de uma nova relação entre a produção científica e os movimentos, numa visão de sujeito-sujeito, e não perpertuar a antiga visão de pesquisador e objeto, com implicações dessa nova visão na definição de políticas públicas. Queremos sair de Belo Horizonte com uma agenda integrada entre academia e movimentos sociais, que nos guiem para uma ação coerente e transformadora.”
Marcelo Firpo Porto apresentou as ideias e a metodologia que guiaram a produção do Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, produzido por ele e por Tania Pacheco, então pesquisadora da FASE e autora do blog Combate Racismo Ambiental. O projeto, iniciado em 2008, foi lançado em 2010 numa tentativa de ‘sistematizar os conflitos emblemáticos’. O monitoramento começou com 310 conflitos, e atualmente 450 embates estão sistematizados. Os dados contidos nos mapas trazem informações desde 2006, mesmo que muitos conflitos sejam anteriores.Os confrontamentos registrados podem registrar problemas em uma única localidade como podem chegam a atingir até 30 municípios e mais de 10 mil habitantes.
“O mapa expressa disputas econômicas e também por cosmovisões, de diferentes formas de apropriações políticas, epistemológicas e ontológicas”, definiu Porto, que entende o atual processo de exploração capitalista ancorado no ideário neoliberal e na vertente do neoextrativismo, que aposta na desregulamentação do Estado e na sua subserviência às grandes transnacionais e demais jogadores globais. “Mesmo os governos da América Latina, definidos por pensadores como Eduardo Gudynas como neoextrativistas progressistas, que se utilizam desse processo como inserção no capitalismo global para tentar oferecer alguma garantia as suas populações, não impedem a busca desenfreada por terra e fontes de riquezas.”
Para o pesquisador, o trabalho de sistematização dos conflitos é fundamental para o setor saúde pela articulação das lutas por equidade, democracia e direitos humanos frente à permanência ou agravamento das desigualdades socioespaciais e modelos de sociedade. “Eles possuem uma grande dimensão estratégica na geração de ações emancipatórias, produzindo alternativas aos temas de qualidade de vida, tanto local como regional quanto global”, disse Porto.
Situação nacional: Dos 450 conflitos, as contendas ligadas à mineração têm se demonstrado as mais agressivas ao meio ambiente e à saúde, segundo o pesquisador, devido à ação predatória da maior empresa de mineração de ferro do mundo, a Vale. O Estado de Minas Gerais tem 12 confrontos ligados ao extrativismo mineral, seguido do Pará (9), Bahia, Rondônia, Maranhão, Santa Catarina e São Paulo (6 cada). Os principais problemas são os conflitos por terra, poluição hídrica, atropelamento de trens, problemas respiratórios e casos de intoxicação humana e ambiental.
No entanto, no topo da lista estão os conflitos relacionados ao agronegócio – são pelo menos 173, a maioria relacionados aos monocultivos e pecuária (142). Outros 31 casos ligados à produção de camarões e demais crustáceos. Embates relacionados às energias renováveis figuram no segundo lugar desse triste ranking, totalizando 71 conflitos. Até a energia eólica, vendida como limpa, tem sua “sujeira”, com registro de dois conflitos na Bahia, um no Ceará e outro no Rio Grande do Norte. Já as contendas ligadas às energias não-renováveis são de número 69 – são 51 conflitos relacionados às etapas de prospecção, extração, transporte, armazenamento, refino, petroquímica ou descarte de resíduos; 11 ligados às termoelétricas e 7 à energia nuclear. Com o avanço das explorações na camada do pré-sal, a expectativa é que aumentem os conflitos desse segmento.
Há também um crescente número de embates no espaço urbano. Mesmo menos visíveis que os relacionados ao campo, as contendas urbanas carregam o passivo social histórico das periferias e ao espaço portuário de grandes cidades, como o Rio de Janeiro e Recife. “Com o desenvolvimento da lógica dos grandes eventos, boa parte questionados pelas manifestação do ano passado, esses confrontos também tendem a crescer”, explicou Porto.
Um mapa só para Minas: Com 505 conflitos ambientais relacionados a todas as formas de exploração extrativista, o Estado de Minas Gerais conta com o trabalho do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG), coordenado pela professora e antropóloga Andréa Zhouri, e responsável pelo Mapa de Conflitos Ambientais no Estado de Minas Gerais. Em sua fala, a docente desmontou o discurso do desenvolvimento defendido pelo mercado e pelos governos. “Esse conceito aceita as exigências do capital, considerada os problemas decorrentes da exploração como externalidades a serem mensuradas e mitigadas por programas de compensação. No entanto, o que observamos são populações cada vez mais vulneráveis, reproduzindo padrões históricos de desigualdade ambiental”.
Na visão da professora, esse dito modelo de desenvolvimento aposta em modificações territoriais e sociais de modo rápido, intencional e violento, com ações empresariais referendadas pelo Estado. “Este discurso é elemento central das ideologias modernizantes, interessado na classificação dos sujeitos e no processo de patologização dos indivíduos, dispondo de suas vidas em nome da própria vida.”
A produção de uma cartografia crítica,segundo Andréa, tem o objetivo de dar voz às diferentes populações em desvantagem, quase sempre ausentes dos discursos oficiais e dos canais da grande mídia. Além do mapa, o GESTA conta com um observatório de conflitos, uma ferramenta de denúncias nomeada Comunidade Alerta e um banco de textos, com teses, dissertações e artigos ligados às temáticas de justiça ambiental produzidos por estudantes e docentes da UFMG e de outras universidades e institutos.
Ocupar e resistir: Dois movimentos sociais de dimensões nacionais deram suas contribuições ao debate. Henrique Sater de Andrade, médico sanitarista carioca, é uma das lideranças do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), organização que completa 18 anos em 2014. Ele explicou que a organicidade do MTST vai além das pessoas em situação de rua, e inclui também as famílias que tem um ônus excessivo de aluguel, comprometendo mais de 70% da renda, como arranjos familiares que vivem no mesmo espaço. “Não representamos uma minoria e sim uma população que está sendo produzida a cada dia”, ressaltou Sater.
Os números comprovam. Mesmo com o programa federal Minha Casa Minha Vida, houve aumento do deficit populacional. Atualmente, cerca de 5,8 milhões de pessoas não têm moradia. Só nas favelas são estimados mais de 800 mil moradores em todo o país. “A lógica da cidade é permeada por conflitos insolúveis. Enquanto o planejamento urbano continuar sendo regido pela visão do empreendedorismo predatório do empresariamento urbano, esse deficit só irá aumentar”.
Sater criticou parte do movimento ambientalista que se junta aos interesses empresariais numa suposta defesa do ambiente, como ocorrido na Ocupação Zumbi dos Palmares, em Sumaré, na região de Campinas (SP), quando ambientalistas locais corroboraram uma liminar que impediu a entrada de mais de 800 famílias em uma área que já estava em definição sobre as condições ambientais junto à Prefeitura. “O movimento fica preso a um debate de um desenvolvimento que engana e um atraso que envergonha”.
Para Sater, não só é necessário como são possíveis ocupações que garantam a moradia para trabalhadores e trabalhadoras e respeitem áreas de preservação e condições de fixação, com a abertura de escolas, postos de saúde e locais de trabalho. O exemplo citado pelo militante é a Ocupação João Cândido, no município de Taboão da Serra, na Grande São Paulo.
O confronto direto de dois modelos antagônicos conduz todos os processos de luta, na visão de Maria Izabel Grein, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). “Vivemos numa sociedade que nos oprime e quer tirar tudo da natureza. É por aí que o capital quer acumular, por isso a importância da nossa luta pela terra e por ambientes saudáveis, como água e rios deve ser tomada”, destacou a militante, que relembrou um diálogo com um médico ligado ao movimento que definiu saúde como a capacidade de lutar contra tudo o que nos oprime.
Diversidade e resistência são as palavras-chave das ações do MST, segundo Maria Izabel. “A monocultura instalada no país desde 1500 e hoje transformada em agronegócio é um método de produção onde só um pode viver, só a soja , só a cana. Mas o camponês vive com a diversidade do espaço, com a água, com a terra e com plantas e sementes. São princípios de vida completamente contrários. É por isso que precisamos resistir, no sentido da criação de novas formas de vida e de uma outra agricultura. E deve ser assim, pois a diferença desestabiliza quem está na hegemonia.”
A garantia dessa visão é um processo contínuo de educação que acontece dentro dos assentamentos. “Os camponeses também foram consumidos por esse pensamento hegemônico. Temos de fazer um trabalho de reeducação com esses trabalhadores num exercício permanente contra naquilo que nos oprime. Meu pai sabia pelo cheiro da terra se ela era boa para plantar feijão ou milho. Hoje, o camponês perdeu isso e a terra já não tem mais cheiro de tão envenenada que está. A luta da saúde, para nós do MST, vem junto com a luta pela terra”, completou.
No encerramento de cada fala, a mediadora Raquel Rigotto deu um girassol para cada participante e encerrou a sessão com um mantra andino cantado na mística da abertura. Água mi sangre, tierra mi cuerpo, vento mi alento, fuego mi corazon.