(Cadê a pesquisa que estava aqui?)
Em 2019, o Ministério da Saúde publicou a pesquisa “Vigitel Brasil 2018 População Negra: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico”, cujo levantamento aponta como resultado que pessoas negras têm desvantagens alimentares, ao passo que, têm menos acesso ao consumo de frutas e hortaliças em comparação com pessoas brancas. Além de avaliar fatores como tabagismo, obesidade, consumo abusivo de bebidas alcoólicas e índices de sedentarismo nessas populações. Como uma das constatações identificou-se que a Raça/Cor atua como um elemento que contribui para a vulnerabilização da população negra, e recomenda que é salutar a construção de um recorte que demonstre as particularidades deste grupo populacional no monitoramento de indicadores de saúde. Evidencia-se que para o governo atual não é relevante apontar tais comparações, visto que o intuito deste é fragilizar as políticas voltadas para a população negra, utilizando-se de estratagemas que contribuem para a desaparição dessas pesquisas. Este estudo corrobora para que gestores, profissionais de saúde e representantes da população negra qualifiquem suas ações contribuindo para a formação, avaliação e monitoramento de políticas destinadas para a promoção da saúde da população negra. Contudo, esse levantamento, concluído em 2019, desapareceu do site do ministério nos últimos dias.
Com a realização e publicização desta pesquisa, o Estado brasileiro estaria cumprindo o seu “dever de casa”, não fazendo mais do que seu dever enquanto gestor das leis e das políticas públicas. Analisar, qualificar e publicizar os dados por Raça/Cor e Etnia está previsto na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que tem força de lei a partir do Estatuto da Igualdade Racial (2007). O Estado tem o papel cumprir executar a PNSIPN e de fomentar, de forma que, caberá aos outros municípios e estados também o façam, pois, no momento que o Governo Federal retira e se desobriga destas demandas sociais, abre uma brecha para que os demais entes da federação passem a adotar a mesma postura desidiosa. Essa conduta contraria os princípios constitucionais que preveem que a epidemiologia é a base para a elaboração das políticas públicas e também vai de encontro ao dever de cumprir a lei de torná-la de fato direito na vida das pessoas.
Cabe pensar em Achille Mbembe e Michel Foucault, que tratam de conceitos como a necropolítica e o biopoder, pois no momento em que Estado se exime de cumprir essa lei em sua integralidade, tendo como meta fazer valer as determinações legais, expõe a gravidade das consequências dos desaparecimentos dos estudos relacionados à população negra, os quais uma vez implementados, possibilitam a promoção da equidade. O Estado, que tem o dever de cumprir as normas legais, se furta ao compromisso de difundir o conhecimento em um cenário tão importante e tão decisivo nesse contexto político e social. O Estado adota e executa uma política de necropolítica e exerce o biopoder ao desconsiderar uma parcela da população, que deixa de tratar de suas especificidades ao descontinuar dos sítios eletrônicos públicos informações relevantes para o cuidado da população negra. Cabe a responsabilização dos diferentes gestores públicos.
Para Achille Mbembe, a necropolítica é basicamente:
“A forma como o poder político exerce, de diferentes maneiras, o poder de se apropriar da gestão da morte, como forma de gestão da vida ao tomar medidas e decisões de Estado de como devemos viver e morrer e quem deve morrer, assim como, o que será feito desses corpos e como serão tratadas essas mortes. Essa necropolítica está imbricada em outras configurações de gestão, pois se associa ao racismo, ao discurso do inimigo interno, ao neoliberalismo; e à forma como se administra as populações socioespacializadas. Definindo-se quem será morto e como será essa morte, isso é, propriamente, como a necropolítica é aplicada nas periferias. Para Mbembe existe um controle e uma gestão da morte, no momento em que o Estado define as condições necessárias mínimas para viver em determinadas regiões, que estão marcadamente submetidas ao risco constante da morte (…). Temos uma Saúde que tende a operar necropoliticamente, na medida em que, produz condições mortíferas, em determinados serviços e equipamentos como um traço fundamental de administração de certas populações, no intuito que essa população não sobreviva, ou que viva em condições tão limítrofes, que a relação entre vida e morte é muito pequena para populações consideradas perniciosas ou improdutivas.(…)”, (FRANCO, Fábio L. F. N., 2019).
Referente ao trecho de Mbembe, podemos identificar diversos pontos de contato entre a sua fala e a realidade da população negra no Brasil. Ganham destaque a vulnerabilidade social, as disparidades econômicas, a segregação socioespacial, o genocídio da juventude negra, a violência doméstica e sexual que incide substancialmente sobre as mulheres negras. Os índices de mortalidade materna e materno-infantil entre as mães negras são consideráveis no País. Evidenciam-se a maior exposição à violência urbana, os crimes sem resolução policial, as subnotificações das mortes por Covid-19, assim como o fato de que a população carcerária brasileira é majoritariamente negra. Percebemos que a necropolítica se aplica largamente no Brasil, no que tange à população pobre, preta e periférica.
No momento em que o Ministério da Saúde exclui informações que são relevantes, produz a invisibilização de uma realidade que é essencial para a preservação de direitos, ressaltamos que a população negra compõe 56,10%, uma vez que esse é o percentual de pessoas que se declaram negras no Brasil, de acordo com pesquisa do PNAD (IBGE, 2019), e são essas pessoas que se beneficiaram grandemente dos resultados dessa pesquisa e de sua veiculação pelos órgãos públicos.
O estudo “Vigitel Brasil 2018 População Negra”, mais especificamente na parte sobre as comparações entre as populações negra e branca, apontou “cenário desfavorável” para a primeira no caso de consumo de frutas e hortaliças (29,5% vs. 39,1% para a frequência de consumo regular de frutas e hortaliças e 20,1 vs. 26,7% para a aquela de consumo recomendado), no consumo abusivo de bebidas alcoólicas (19,2% vs. 16,6%) e na avaliação negativa da saúde (5,2% vs. 4,0%)”.
Com base nessas investigações, é possível inferir que problemas como desnutrição, carências vitamínicas e monotonia alimentar afetam muito mais a população negra pela escassez e pouca diversidade e frequência no consumo de frutas e hortaliças na dieta. Isso corrobora com o surgimento de doenças prevalentes na população negra como a tuberculose, a obesidade e a diabetes de forma precoce, assim como o surgimento das formas agravadas dessas comorbidades na vida adulta. Também são mais frequentes o uso abusivo de álcool e maior percentual de avaliação ruim da própria saúde, algo que confirma que essa população está mais propensa a perecer diante de uma conjuntura de necropolítica e dos rigorismos do biopoder.
Elaine Oliveira Soares é enfermeira, funcionária pública, Coordenadora da Política de Saúde da População Negra da SMS Porto Alegre, professora Faculdade FACTUM, integrante dos GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva/ABRASCO e GT Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Saúde da Família e Comunidade e fundadora da Associação Cultural de Mulheres Negras/ACMUN.