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Destino: Brasil, artigo de Lígia Bahia em O Globo

Publicado originalmente pelo jornal O Globo – 18/02/13

Resolver o problema da carência de médicos, especialmente em regiões distantes e com menor densidade populacional, é uma prioridade do governo federal que está saindo do papel. Recentemente, os ministérios da Saúde e da Educação ampliaram as vagas para os cursos de medicina e estabeleceram estímulos ao trabalho de recém-formados em determinados municípios. São medidas polêmicas. Puxam o fio da meada do planejamento da oferta de médicos e preveem a intensificação de responsabilidades governamentais. Entretanto, não respondem às expectativas da criação de carreiras adequadamente remuneradas, nem aos requerimentos sobre a qualidade da formação e atualização dos médicos. O mero aumento do número de egressos e a instituição de programas de estágios em zonas carentes, num país que tem uma perversa distribuição de recursos assistenciais, sem contrapesos à tendência de concentração, podem redundar no inchaço de médicos nos grandes centros urbanos. Certo mesmo é que ambos os esforços não respondem às demandas imediatas de saúde da população e às promessas eleitorais de muitos prefeitos recém-empossados. Essas iniciativas não empolgam quem está à frente de mandatos com prazos definidos.

O que arrasa na pista é o anúncio da política de importação de médicos. A justificativa para estimular a imigração é a perene dificuldade em atrair médicos brasileiros para trabalhar em áreas consideradas pouco acessíveis ou inóspitas, combinada com os relatos de viagens de técnicos a países desenvolvidos e alguns da América do Sul que contam com profissionais de saúde estrangeiros. Além disso, trazer médicos de fora para atender quem está desassistido não afeta os interesses das empresas privadas nem de seus clientes satisfeitos, evitando mais uma vez o confronto entre a expansão e alocação dos recursos existentes sob a lógica das necessidades de saúde, e não dos maiores lucros.

 

Pelo que se ouve dizer, a política brasileira para importar médicos vai misturar chiclete com banana. Países ricos com elevada proporção de médicos estrangeiros (como EUA, 25%, e 40% no Norte do Canadá) mantêm rigorosíssimos exames e programas de treinamento para o denominado International Medical Degree — direcionados inclusive aos seus cidadãos diplomados em outros países. Nesses países, os profissionais de saúde são submetidos às leis de migração, como qualquer outro trabalhador. A experiência da Venezuela é bem diferente. Lá a importação de médicos cubanos em 2003, mediante um convênio intermediado pelo Colégio Médico de Caracas no Município Libertador. Atualmente, a permanência de cerca de 32 mil profissionais de saúde, entre os quais aproximadamente 20 mil médicos (que se dedicam a atender os segmentos populacionais não cobertos pelos seguros sociais e sem poder de pagamento por assistência privada), é mantida pelo envio de petróleo venezuelano para Cuba e pagamento de uma remuneração inferior à dos nativos. No Brasil, os incentivos à vinda de estrangeiros combinariam uma política migratória seletiva para médicos de todas as nacionalidades, com a isenção de submissão prévia dos imigrantes aos testes de revalidação de seus diplomas. Os idealizadores da política apostam que os valores pagos aos médicos tornarão o país atrativo não apenas para cubanos, bolivianos, mas também para espanhóis e portugueses, cujos empregos estão sendo erodidos pela crise econômica mundial.

A praticidade da solução, especialmente a rapidez de sua implementação por meio de medida provisória, passando por cima do poder de controle da profissão das entidades médicas, é inegável. A esperada redenção do atraso de imensos territórios brasileiros às benesses da medicina moderna tende a abafar questionamentos sobre a adequação da solução ao problema. Qualquer dúvida sobre os métodos de desenho e aprovação do programa de imigração ou insistência em exigir garantias de permanência sustentada de médicos é vista como uma barreira à passagem do progresso. Porém, nem tudo que se apresenta ao debate é esnobismo, preconceito e desprezo pelo destino de brasileiros sem acesso a serviços de saúde. A migração de médicos não é infalível. Dificuldades de entendimento da língua, das etiquetas nacionais para o atendimento aos pacientes, das regras formais e informais para referenciar doentes e a dependência de empregos de médicos de partidos e coalizões políticas não são detalhes.

 

Os médicos que migram para os países afluentes buscam melhores condições de trabalho e de vida. O fluxo é cruel; as principais fontes de trabalho dos médicos são as nações subdesenvolvidas. Os países com maiores índices de emigração situam-se na África subsaariana, Caribe e Ásia. Um em cada dez médicos na Inglaterra é de origem africana enquanto que o continente se vê às voltas com índices alarmantes de doenças. Cuba é um celeiro de médicos; muitos estão dispostos e preparados para desempenhar atividades em situações precárias. Se essas inclinações permaneceram inalteradas, não será nada tranquilo alocar médicos europeus em cidades que não disponham de redes completas de serviços de saúde. Os lugares com rarefação de médicos provavelmente chamarão para si médicos provenientes de países tão ou mais necessitados de competência assistencial do que o Brasil, tal como já ocorre nas regiões Sul e Norte. A novidade será o ingresso massivo e pela porta da frente dos cubanos, e o desafio que não poderá ser postergado é a integração dos programas governamentais.

O Brasil é diferente da Venezuela, aqui o sistema da saúde é universal e a legislação veda a organização de subsistemas para pobres. A migração de médicos já é em si um tema controverso e pode se tornar explosivo se os médicos estrangeiros e seus pacientes forem discriminados. A imigração de médicos não é uma panaceia, nem um pecado, precisa ser discutida. Prevendo os conflitos de interesse, a Constituição de 1988 dispôs que as políticas de saúde fossem formuladas e aprovadas por instâncias como as conferências e conselhos de saúde. O Conselho Nacional de Saúde, presidido por Maria do Socorro de Souza, representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura, no qual participam médicos, empresários e usuários, entre os quais indígenas e populações ribeirinhas, é uma instância representativa, adequada ao exame de divergências, construção de consensos pelo diálogo e imune à simplificação do jogo democrático à relação entre eleitores e eleitos de apenas um mandato.

 

Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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