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DIA DA MULHER – HOMENAGEM ABRASCO. Entrevista Simone Diniz

Simone Diniz 'Substituímos a ideia de integralidade e promoção da saúde da mulher pelo consumo de medicamentos'

 

ABRASCO: A saúde da Mulher tem tido a atenção necessária e desejável no sistema público brasileiro?

SIMONE DINIZ: Recentemente, tem havido aumento na cobertura, mas nem sempre o cuidado oferecido é o mais efetivo, ou o mais seguro ou é a melhor experiência para a paciente. Que são critérios para se pensar em uma boa assistência. Por exemplo, na década de 80, a luta era para empoderar a paciente com informações sobre os contraceptivos e os efeitos sobre o corpo. Hoje, já se perdeu isso. Há uma grande expansão do uso de contraceptivos, mas uma redução do leque de escolhas. Temos muitas mulheres que querem sair da pílula e não conseguem porque não têm opções. Mesmo a ênfase na camisinha tem sido pequena. Então, substituímos a ideia de integralidade e da escolha informada pela distribuição de insumo, que é mais centrada no consumo de medicamentos que na promoção da saúde. Isso se aplica a todas as áreas de saúde da mulher. 

ABRASCO: Os planos de saúde têm crescido muito nos últimos anos. Hoje chega a quase 50 milhões de brasileiros. Não é desejável que esse sistema suplementar desenvolva ações para a saúde da mulher fora do âmbito do SUS?

SIMONE DINIZ: Idealmente nós temos um SUS bom. Mas um SUS ruim leva as pessoas a buscar alternativas no setor privado. Um SUS que não respeita o direito das mulheres, faz elas buscarem algum tipo saída aos abusos que enfrentam no sistema. Por exemplo, na questão do aborto. Só o setor privado oferece aborto seguro nos casos de gravidez indesejada. Mas custa caro e se configura como um privilégio para as pessoas que podem pagar. Em termos de equidade isso é uma perversidade. Afinal, as mulheres escolarizadas e mais ricas têm acesso a aborto seguro, já as mais pobres não, que têm que lidar com preços extorsivos e a total falta de regulação. Outro exemplo é que no Brasil não temos profissionais treinados para tender partos fisiológicos sem intervenção. Não existe isso na nossa formação. Só o curso de obstetrícia [da USP], mais recentemente, tenta formar um profissional voltado para isso. Apenas poucos serviços no Brasil fazem um atendimento mais desmedicalizado. Se a mulher quiser um parto domiciliar, em que ela tenha um pouco mais de autonomia ela terá que pagar uma equipe privada. É menos ruim ter um setor privado que atenda ainda que precariamente do que não ter nada.

ABRASCO: Programas segmentados, que viram políticas públicas e são apresentados como de saúde da mulher, na verdade atende parte da realidade. É o caso do programa "Rede Cegonha". Como você vê essa tentativa de reduzir a ampla atenção à saúde da mulher a programas e ações de menor alcance?

SIMONE DINIZ: O nome "Rede Cegonha" é uma ruptura do Ministério da Saúde com uma tradição de aliança com o movimento de mulheres no Brasil, que sempre problematizou esse materno-infantilismo, esse foco na mulher como mãe. A "Rede Cegonha" sinaliza a dessexualização da gravidez e a infantilização das mulheres. O programa usa o nome de animal, o que relaciona o a reprodução a animalidade e não à cultura. Trata o tema de forma despolitizada e tutelada das mulheres. Além disso, o nome sinaliza uma subordinação aos setores religiosos. Por outro lado, as áreas técnicas de assistência da mulher é ocupada, hoje, por pessoas que têm uma reflexão crítica sobre assistência ao parto. Essas áreas tem feito esforço para incluir outros temas, mas há muita pressão contrária.

ABRASCO: Quais são os próximos temas que o SUS deve incorporar à sua agenda sobre saúde da mulher, atenção ao parto e qualidade e segurança à saúde materna? Quais são as próximas fronteiras?

SIMONE DINIZ: Nós temos grandes desafios na saúde coletiva que são questões novas e desafiadoras. Uma delas é a epidemia de doenças crônico-degenerativas (obesidade, diabetes, hipertensão, cânceres e doenças mentais). Outra inflexão importante, que iniciou a poucos anos, tem a ver com o trabalho de parto, que tem uma influência muito grande na formatação metabólica, imunológica e aspectos epigenéticos. Atualmente, nós sabemos que o trabalho de parto ativa um conjunto de mecanismos neuroendócrino e neurológicos que protegem  contra um conjunto de problemas desde alterações metabólicas até autismo e déficit de atenção. Está se estudando o quanto os hormônios liberados durante o parto estão diretamente ligadas a capacidade de se relacionar. Há estudos que provam que as pessoas que nascem de cesárea tem mais obesidade, diabetes, asma, alergias e um conjunto de doenças que no curto e médio prazo vão ser muito importantes para a saúde coletiva. Isso porque a cesárea faz com que a gente não nasça com o melhor potencial biológico, adquirido no parto normal, ao se passar pelo canal do parto. Antigamente, acreditava-se que a amamentação compensava isso, mas hoje sabe-se que não. Essa colonização inicial é de difícil reversão. Essas serão fronteiras novas que vão exigir que a gente pense interdisciplinariamente.

ABRASCO: Que tipo de experiências inovadoras podem ser proposta para reverter a realidade cultural que induz a escolha pela cesárea?

SIMONE DINIZ: É preciso centros-escolas de parto normal, porque os profissionais que fazem partos no Brasil não tiveram a oportunidade de ver um parto fisiológico, normal, que se inicia e termina espontaneamente, sem o uso de drogas ou cirurgias. O parto ideal é aquele espontâneo com mais de 39 semanas, mas no Brasil, hoje, isso é quase impossível de acontecer. A criação de centros-escolas, com projetos de pesquisa que estudem aspectos programáticos, clínicos, de implementação e formação de recursos humanos poderiam criar espaços onde convivessem profissionais de saúde em equipes multidisciplinares. Todos teriam experiência em um parto respeitoso, baseado em  evidências cientificas do que é seguro e efetivo, com a participação das famílias. E dessa forma, produzir conhecimento baseado nesses novos modelos, mais centrados no paciente e não nos profissionais de saúde. Isso seria uma experiência importante, porque não dá para cobrar dos profissionais que façam o que não aprenderam. Os médicos e boa parte dos enfermeiros só aprenderam a fazer cesárea. Eles nunca fizeram um parto fisiológico. Isso poderia contribuir para a mudança das práticas.

 

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