Desde 1992, em Santo Domingo, na República Dominicana, com a realização do 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, 25 de julho foi definido como o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. No Brasil, foi instituído pela lei Nº 12.987, sancionada em 2014 pela presidenta Dilma Rousseff, como o dia da Mulher Negra, e “marco referencial emblemático de luta e resistência de feministas negras, a todas as formas e tentativas de aniquilamento da população negra, sejam estas: de forma intempestiva e abrupta – caracterizado pelo aumento das taxas de feminicídio para meninas e mulheres negras.
“Bakhita” como foi batizada pelo técnico arqueólogo Andrei Santos, em homenagem à primeira santa mulher africana, foi uma negra, capturada e escravizada em algum lugar da África, e trazida ao Brasil no início do século 19. Morreu após poucos dias de chegada no Brasil, sendo enterrada em cova rasa, no Cemitério dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro. Dois séculos depois, Marielle Franco, mulher, negra, lésbica, com cargo de representação pública foi morta em uma emboscada no Rio de Janeiro; Ela não é apenas uma das vítimas mais conhecidas da violência ocorrida em Março de 2018, mas é também a representação da parcela da população mais vulnerável à violência, evidenciando que os marcadores sociais de raça, gênero e classe são determinantes para compreender a desigualdade da violência no Brasil, como mostra a última edição, em Julho de 2021, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum de Segurança. Apesar disso, dois anos depois, em Março de 2020, quando dona Cleonice, outra mulher negra, de 67 anos e com algumas morbidades comuns à população negra, empregada doméstica no Rio de Janeiro, inaugurou a contagem de óbitos por COVID-19 no Rio de Janeiro, ainda não se sabia sobre quem mandou matar Marielle… ainda sem resposta até esses dias correntes. Os mesmos dias que coincidem à iniciativa disparada por integrantes do GT Racismo e Saúde da ABRASCO, de enunciarem a continuidade da saga para vacinar toda a comunidade quilombola contra a COVID-19, reverberando as reivindicações de mulheres negras quilombolas para que todos os seus e suas, dentro e fora de seus territórios, sejam incluídos como prioritários no plano nacional de imunização. O objetivo é único, resistir à COVID-19.
Como fio condutor comum, estas histórias perpassam experiências de morte, trazendo reedições do holocausto negro, que ao longo dos tempos, especialmente, dos últimos anos, tem-se tentado desimportar e relativizar; … mas também trazem a luta e a resistência de mulheres negras que se recusam a aceitar esse mundo hostil e violento como única possibilidade de sobreviver/morrer. Como movimento transformador, tomam para si, a autoria de suas próprias histórias. Propõem a construção e o fortalecimento de relações interpessoais e comunitárias solidárias, a necessidade de estar presente nos diferentes espaços de representação e de poder e a assunção de mulheres negras como referências inspiradoras e motivadoras desta transformação a partir de saberes e culturas ancestrais. É neste ideário que se personifica a figura de Teresa de Benguela, ativista negra quilombola. Logo, uma intelectual negra, conforme conceitua Conceição Evaristo.
Na prática, o atravessamento destas histórias traduzem e representam a vida e o legado de Tereza de Benguela, ao mesmo tempo que dá a grandeza da dimensão do dia 25 de Julho, dia da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha, que no Brasil, foi instituído pela lei Nº 12.987, sancionada em 2014 pela presidenta Dilma Rousseff, como o dia da Mulher Negra, e marco referencial emblemático de luta e resistência de feministas negras, a todas as formas e tentativas de aniquilamento da população negra, sejam estas: de forma intempestiva e abrupta – caracterizado pelo aumento das taxas de feminicídio para meninas e mulheres negras (62%) (figura abaixo).
Crime praticado majoritariamente por companheiros ou ex-companheiros, usando armas brancas, nos espaços domiciliares, cenário este que deveria ser um ambiente de proteção e seguro, particularmente neste contexto de pandemia; de forma paulatina e gradual – caracterizada pelo cerceamento de direitos e de acesso às políticas públicas de qualidade já que população feminina negra acumula os piores indicadores sociais para todas as variáveis analisadas, conforme SÍNTESE DE INDICADORES SOCIAIS – 2020 para análise das condições de vida da população brasileira, feito pelo IBGE, bem como o relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre Políticas Sociais: acompanhamento e análise durante a COVID-19: tanto para o Mercado de trabalho quanto para a saúde. Ambos mostram a população negra feminina em situação de maior vulnerabilidade; ou ainda pela imprevisibilidade da possibilidade de se construir pontes para o futuro com a perspectiva do gozo à vida com plenitude face às políticas de austeridade aplicadas ao longos dos anos no Brasil.
A necessidade de considerar os marcadores sociais como raça/cor, classe social, gênero, trabalho, região e geração, para redução destas iniquidades, também aplicáveis à COVID-19, tem sido demandadas por diferentes iniciativas como a Coalizão Negra por Direitos, as publicações do Instituto Polis, os boletins do Observatório COVID-19 FioCruz-RJ e as inúmeras produções do grupo de trabalho Racismo e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), entre outros. No entanto, a despeito destas valiosas contribuições, toma-se a decisão política por ignorá-las. Um erro que certamente o tempo histórico cobrará. Recentemente, um estudo estadunidense concluiu que negros tiveram maior permanência hospitalar, maiores taxas de dependência de ventilador e uma maior taxa de mortalidade, revelando aumento de vulnerabilidade ao adoecimento devido a complexa interação de fatores sociais, ambientais, e comportamentais enfrentados por estas populações específicas. Como solução, são taxativos. Ações de natureza individual são importantes, mas sobretudo, ações comunitárias e de base populacional fortemente apoiadas em políticas públicas é que dão conta de promover equidade em saúde, e por conseguinte, resistir.
Assumindo a liberdade poética desta comparação, Tereza de Benguela, quando líder do quilombo, age estrategicamente, ao propor uma organização participativa, solidária e comunitária, e por isso, credenciou-se como uma mulher à frente de seu tempo. Ela morre, enfim. Mas, seu legado permanece. Portanto, a importância desta data e da mulher negra está na convergência e intercruzamento de histórias existenciais de resistência e luta de mulheres negras ao longo do tempo. A importância de suas trajetórias para a ocupação de instâncias decisórias está na possibilidade garantir que mais mulheres – diversas e com consciência política de gênero – cheguem ao poder. Esta é a única alternativa viável, segundo Beatriz Della Costa, que sinaliza conquistas dos direitos políticos por mulheres latino-americanas, como a formação da assembleia paritária entre homens e mulheres no Chile, a paridade de gênero nas eleições na Colômbia e o direito ao aborto legal, seguro e gratuito na Argentina. País que também anunciou, na maternância, ou seja, o tempo devotado ao cuidado dos filhos pela mulher, como tempo de trabalho a ser contabilizado para a previdência social.
Fica explícito que tais avanços se dão de forma transversal, inclusivo (negro, indígena, LGBTQIA+, popular, acadêmico), e com a participação de mais mulheres – diversas e com consciência política de gênero – no poder. O cenário brasileiro vai na contramão deste movimento. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a ONU Mulheres, o Brasil ocupa a antepenúltima colocação do ranking da participação feminina na política da América Latina. A mudança urge e decorre das conexões de mulheres que estiverem nas ruas e nos governos. Sem elas, não há avanço na velocidade necessária. Essa necessidade de mobilização é mais uma forma de se inspirar em Tereza de Benguela e celebrar este 25 de Julho, no cotidiano do que se chama vida com muita esperança.
Márcia Alves é PhD em Odontologia. Referência para Doença Falciforme – Serviço de Odontologia Clínica HUCFF – UFRJ. Coordenadora de projetos e pesquisadora na UFRJ – Saúde bucal e Doença Falciforme em parceria com o Ministério da Saúde. Docente Colaboradora – MPCO – FOUFRJ. Coordenadora Política Pública Estratégica para Doença Falciforme Superintendência de Atenção Primária à Saúde (SAPS) – SGAIS Secretaria de Estado de Saúde (SES) – Rio de Janeiro.