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Dia da visibilidade Trans: Falta de formação e de cuidado humanizado são barreiras no acesso a serviços de saúde

Letícia Maçulo

Foto: Reprodução/Creative Commons

No Brasil, existem quase 3 milhões de pessoas que se identificam como transgêneros ou não-binários, segundo pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), realizada no ano passado. Instituído em 2004 a partir da luta dos movimentos sociais que clamavam atenção às múltiplas demandas decorrentes da discriminação, o dia da Visibilidade Trans, que acontece neste sábado (29), marca a luta dessa população por reconhecimento, acesso à serviços de saúde e políticas públicas conectadas com sua realidade. 

Desde 2008, a política nacional de Saúde LGBT compõe uma das bases do Programa Mais Saúde – Direito de Todos, que orienta políticas de saúde com o objetivo de ampliar o acesso a ações e serviços de qualidade e combater iniquidades e desigualdades no acesso à saúde para grupos minoritários. Implementada há mais de 14 anos, a iniciativa foi responsável por alguns avanços no acolhimento dessas pessoas, mas segue precisando de melhorias em diversos aspectos. 

Conforme o texto publicado no Jornal Folha de S. Paulo, muitas pessoas trans relatam os desafios que têm enfrentado na busca do cuidado em saúde. As dificuldades vividas acontecem tanto no âmbito do SUS quanto na saúde privada, o que mostra a falta de formação e de atendimento humanizado no conjunto dos serviços de saúde do país.  

Falta atendimento especializado, na rede pública ou privada

Para o artista independente Eduardo Brito, a busca por especialistas e atendimentos que levem em conta as especificidades dos corpos trans torna a procura por atendimento em saúde algo delicado. “Acho que nenhuma das duas redes, tanto pública quanto privada, está totalmente pronta. Considerando o meu caso, por exemplo, sendo homem trans que necessito de acompanhamento não só endocrinológico, como também ginecológico, é muito difícil achar médicos que me deixem seguro quando atendido”, explica. 

Em um estudo desenvolvido por integrantes do GT de Saúde da População LGBTI+/Abrasco sobre a implementação da política de saúde LGBT no Paraná, observou-se que, apesar de o estado contar com um Ambulatório Trans, há a necessidade de ampliação do acesso ao processo transexualizador (PrTr) no SUS.

O mesmo acontece com a analista de dados Alexandra Esposito, uma mulher trans que junto com a esposa Larissa Rauchstadt esperam a primeira filha. Desde 2018, Alexandra toma hormônios por conta própria, devido à dificuldade de conseguir acompanhamento adequado, seja na rede privada ou pública. “A clínica da família que me atendia tinha aberto um grupo para pessoas trans. Eu conseguia as receitas e os exames, mas os hormônios não eram oferecidos”, relata. 

A dificuldade de acesso a um atendimento de qualidade se estende também para famílias compostas por pessoas trans. Com seis meses de gestação, Larissa Rauchstadt está atualmente sem acompanhamento pré-natal.  “A gente foi para a consulta pré-natal no SUS e, com a demissão da médica que nos atendia, não nos realocaram para nenhum outro profissional, apesar de ser lei.” relata Alexandra. A tentativa de acompanhamento na rede privada, entretanto, foi ainda mais traumatizante para o casal. “A médica da rede privada queria que a Larissa fizesse um exame que, mesmo se ela fosse 15 anos mais velha, ainda seria jovem demais para justificar a necessidade do pedido. Depois soubemos que esse exame poderia a causar um aborto”, detalha Alexandra, esposa de Larissa. 

A necessidade de maior investimento na formação de profissionais que tenham capacidade para atender adequadamente essa população é uma urgência compartilhada. “Acho que é preciso naturalizar essa discussão e instrução na área médica, em qualquer área da saúde e em geral. É importante ter esse treinamento em hospitais e emergências, da recepção até a enfermagem, passando por laboratórios de exame e equipe médica de plantão”, afirma Eduardo.  

Para usuários e pesquisadores, investimento em capacitação é essencial

“É preciso mais investimentos para que essa população seja melhor atendida no SUS”, afirma o pesquisador e coordenador do GT de Saúde da População LGBTI+ da Abrasco, Marcos Signorelli. “Tanto em Ambulatórios Trans como nas equipes de APS, é necessário que haja capacitação profissional para atender adequadamente às demandas dessa população”, reforça. 

Para a assessora para Apoio Comunitário, Direitos Humanos e Igualdade de Gênero do UNAIDS no Brasil, Ariadne Ribeiro, as pessoas trans seguem sofrendo violências cotidianas que ainda são normalizadas pela sociedade. “Há situações nas quais não são utilizados os pronomes de gênero adequados, por exemplo. Os próprios sistemas de saúde, que em sua maioria são binários, impedem ou dificultam que diversos procedimentos relacionados a órgãos específicos sejam acessados por pessoas que tenham retificado seus registros de nascimento” afirma. 

Para Ariadne, essa falta de preparo para lidar com atendimentos específicos para população trans se converte em em encaminhamentos desnecessários para serviços especializados. “É como se dor de cabeça, febre ou diarreia, para pessoas trans, só pudessem ser tratadas em serviços especializados para HIV/Aids ou Ambulatórios Trans. Há situações que, devido ao despreparo dos profissionais de saúde, afastam para sempre as pessoas trans dos serviços de saúde”, completa a pesquisadora.  

Também coordenador do GT LGBTI+/Abrasco, Daniel Canavese destaca a importância da luta por igualdade de direitos e relembra os ensinamentos da companheira de pesquisa Fran Demétrio. “O Dia da Visibilidade Trans é indispensável para pensarmos como nos somamos na luta pela justiça social. Ainda persistem barreiras como as situações de violência, de estigma e de discriminação. O cuidado no SUS depende da promoção dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos”, finaliza.

A afirmação dos pesquisadores vai ao encontro das experiências relatadas. “Se houvesse a iniciativa de esse olhar mais cuidadoso e empático nos cursos de medicina e enfermagem, nos hospitais, nos postos e até no consultório médico, com toda certeza isso traria um conforto pra população trans, que merecem e tem direito à mesma liberdade e segurança da maioria das pessoas cis na hora de buscar atendimento”, completa Eduardo. 

II Seminário sobre Saúde, Trabalho, Direitos e Inclusão Social de População Trans acontece nesse fim de semana

A reflexão sobre inclusão social, saúde e garantia de direitos da população acontece entre esta sexta e sábado (dias 28 e 29) no II Seminário sobre Saúde, Trabalho, Direitos e Inclusão Social de População Trans. Ao fim do evento, será lançado o curta metragem Uma Carta Insone, produzido por uma parceria entre Unaids, GT Saúde LGBTQI+/Abrasco, UFRGS e  IFRS. O material faz parte do curso Zero Discriminação e HIV/AIDS. O curta é estrelado pela artista Valéria Barcelos em um conto adaptado da escritora Júlia Dantas. O curta fica disponível a partir do dia 29. Confira a programação.

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