Neste Dia Mundial da Saúde, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, manifesta preocupações com os rumos da política de saúde em nosso país e os riscos para a saúde da população brasileira. Reafirmamos o nosso compromisso com a plena garantia do direito à saúde e com o desafio da construção de um Sistema Único de Saúde (SUS) universal e público. Essas ações e escolhas são inspiradas pelos valores de democracia, justiça e solidariedade.
Dessa forma, lutamos pela reforma da gestão pública para restringir as possibilidades de corrupção, de clientelismo, de patrimonialismo e outras apropriações privadas do que é público. Também é necessário assegurar um Estado laico e aberto ao controle da sociedade civil, que garanta a igualdade de gênero, a igualdade racial, a liberdade de crítica, o livre exercício da sexualidade e o respeito a pluralidade de manifestação. Sem um Estado efetivamente democrático, o direito à saúde jamais será para todos.
Construindo o SUS e aprendendo lições
Ao consagrar o SUS como público e universal, a Constituição de 1988 possibilitou o desenvolvimento de uma nova política de saúde no Brasil. Esta mudança foi inspirada nas experiências de outros sistemas de saúde, igualmente universais e públicos. Estes sistemas foram parte funda¬mental de reformas sociais implementadas, ao longo do século XX, em vários países, objetivando o estado de bem-estar.
A criação do SUS teve como objetivo principal assegurar a saúde como direito, em vez de prestação de serviço ou atividade filantrópica. Essa compreensão significou que o acesso às ações e serviços de saúde não é exclusivo a trabalhadores, consumidores ou segurados, mas direito de todo cidadão. A consolidação do SUS depende da constituição de um Bloco Político capaz de renovar e de dar continuidade aos movimentos sociais em defesa da vida, pois apenas as instituições de Estado não foram capazes de permitir a plena estruturação do SUS.
Desde a criação do SUS, foram executadas medidas que afetaram negativamente o desenvolvimento das suas ações e com retrocessos no seu financiamento. Agravando ainda mais o quadro de baixo financiamento do SUS, em 2016, foi aprovada a Emenda Constitucional 95 que impõe cortes em todos os setores por 20 anos, mas não se propõe a controlar os gastos orçamentários com juros e com outras despesas financeiras, repetindo a mesma política de austeridade que condenou diversos países desenvolvidos à estagnação econômica, ao desemprego, à elevação da desigualdade e da pobreza e ao desmonte do Estado Social. No caso brasileiro, uma das sociedades mais desiguais do mundo, essa medida subtrairá a base financeira necessária para a assegurar a cidadania implícita em diversos artigos da Constituição.
Como se não bastasse, no mesmo período, o Estado brasileiro bancou o crescimento do setor privado. A renúncia fiscal na saúde corresponde a mais de 15 bilhões de reais. À renúncia fiscal no cálculo do imposto de renda da pessoa física e da pessoa jurídica, vieram se somar, no caso da saúde, empréstimos do BNDES, subsídios e isenções tributárias a planos privados, desonerações da indústria farmacêutica e dos hospitais filantrópicos, incentivos econômicos, enfim, que favorecem a expansão do setor privado sem contrapartida ao SUS. Como consequência, a participação relativa da União no financiamento do SUS vem decrescendo, sistematicamente, passando de 72%, em 1993, para 42,93%, em 2013. Enquanto nos países desenvolvidos que mantém sistemas universais, em média mais de 70% do gasto total com saúde vem de recursos públicos.
Apesar de tantas adversidades, pode-se afirmar que o SUS é mais eficiente e mais efetivo do que a Saúde Suplementar, do que outros sistemas ordenados pela competição do mercado. O setor privado brasileiro, em 2014, para atender 25% da população dispendeu 54% do gasto total em saúde no país. O SUS para atender aos 75% que não possuem planos ou seguros privados, com uma oferta de serviços bem mais ampla (medicamentos gratuitos, insulina, vacinas, cuidado multiprofissional e não somente médico, etc.) e que também atende os 45 milhões que pagam planos de saúde principalmente quando estes não garantem a assistência em casos de urgência e acesso a serviços de alta complexidade, utilizou apenas 46% do gasto total em saúde.
Em geral, os sistemas públicos de saúde — inspirados no pioneiro National Health Service (NHS), do Reino Unido — demonstram maior eficiência do que os dos países que conservam o modelo tradicional centrado no mercado. Diversos estudos recentes têm comparado custos e resultados do NHS com o sistema dos EUA e apontam ampla vantagem para a política de saúde britânica, cujo gasto per capita com atenção em saúde é metade daquele dos EUA. Isto não é por acaso. As grandes inovações organizacionais e em gestão na saúde vem sendo desenvolvi¬das e experimentadas nos sistemas públicos de saúde. Foi na área pública que se inventou e experimentou a Atenção Primária, o acesso racional e regulado aos especialistas, exames diagnóstico, fármacos se serviços de alta complexidade. Foram os sistemas públicos que lograram integrar clínica e saúde pública, assistência e promoção à saúde. São nos sistemas públicos onde se vem desenvolvendo o cuidado interprofissional, o trabalho em equipes, o apoio matricial e valorização do vínculo e responsabilidade com os usuários.
Quem mais paga impostos no Brasil, proporcionalmente, são os pobres, justamente os mais prejudicados no acesso e na qualidade dos serviços públicos, inclusive no SUS. Desta maneira, sem uma efetiva reforma fiscal e tributária, sem a revisão da questão da dívida pública, sem a suspensão de instrumentos como a DRU e a EC95, sem a efetiva implantação do imposto sobre grandes fortunas e heranças, sem a revisão da política de subsídios, que estimula o fortalecimento do mercado privado de planos e seguros, a discussão sobre o financiamento da saúde continuará a tocar apenas na superfície do problema.
Em maio de 2016, o ministro da saúde defendeu a redução do papel do Estado na economia e na garantia dos direitos sociais, e anunciou ainda que o tamanho do SUS precisava ser revisto e que não adiantava lutar por direitos que não podem ser entregues pelo Estado. Confirmando essa intenção de atacar o SUS, ainda no ano passado o ministro apresentou uma proposta de “planos populares”, isto é, o estímulo de planos de saúde de menor preço, mas com restrições de serviços e atendimentos, reduzindo e segmentando a cobertura mínima atualmente exigida.
A autorização da venda de “planos populares” visa apenas beneficiar os empresários da saúde suplementar, setor que hoje movimenta R$ 125 bilhões por ano e já é privilegiado pela renúncia fiscal no cálculo de imposto de renda, por isenções tributárias, créditos e empréstimos.
Realizar cobertura universal, ou mesmo amplia-la, com planos privados subsidiados pelo orçamento público é inviável economicamente. Somente para in¬cluir mais 25% da população no setor privado seria necessário todo o volume de recursos atualmente utilizado no SUS. Ou seja, esta possibilidade não é aconselhável tanto por¬que reduziria a oferta a uma parcela pequena da população, e isto a altíssimo custo, várias vezes superior ao do SUS, mas também pelo com¬prometimento da qualidade e efetividade.
No início de 2016, no momento de enfrentamento das epidemias de dengue, zika e chikungunya, o governo federal cortou cerca de R$ 10 bilhões na disponibilidade orçamentária do Ministério da Saúde. Nos últimos meses, tem causado especial preocupação o crescimento do número de casos de Febre Amarela, simultaneamente, em vários estados brasileiros, em áreas próximas a cidades densamente populosas.
Fortalecer o projeto da Reforma Sanitária
Nosso projeto deve concentrar esforços para restabelecer a relação entre direitos sociais e democracia e reconstituindo a solidariedade social. Além disso, urge afirmar que a universalização do direito à saúde é possível e necessária para a atenção à saúde em todas as fases da vida e para todos os brasileiros. E que o instrumento para a realização deste objetivo é o Sistema Único de Saúde.
De modo preliminar, o projeto político deve apontar mudanças em três direções:
1) Garantir financiamento adequado para o SUS e para outras políticas públicas;
A luta por maior orçamento para o SUS precisa estar imediatamente articulada com a destinação destes novos recursos. A prioridade em saúde diz respeito à extensão, para pelo menos 80% dos munícipes, da Estratégia de Saúde da Família. Todos os países que têm Sistemas Nacionais de Saúde, ao modo do SUS, tem mais de 90% de sua população inscrita em equipes de atenção primária com capacidade de realizar prevenção e atendimento clínico. Este projeto somente será viável com maior envolvimento da União e dos estados, pois a municipalização por si não é capaz de assegurar uma oferta integral, equânime e adequada de serviços de saúde e promover a reorganização do sistema em regiões de saúde. O Programa Mais Médicos é uma comprovação desta tese. Este programa expandiu, em pouco tempo, a cobertura da atenção primária no Brasil em 35%, o que somente foi possível graças a ação direta do Ministério da Saúde sobre o provimento e formação de médicos.
2) Realizar ampla reforma do modelo de gestão pública, avançando no sentido de torná-la republicana e democrática;
Para combater a corrupção, mais do que Reforma Política, precisamos de uma Reforma do Estado. Precisamos diminuir as possibilidades de apropriação privada, corporativa e patrimonialista. Na Saúde, isso pode ser feito com a redução de cargos de livre provimento. As formas de participação social também precisam ser redefinidas, dada a cooptação dos movimentos sociais nas instâncias de representação do SUS. Outra medida urgente é a implementação de nova política de pessoal, com ênfase em direitos dos trabalhadores e na responsabilidade sanitária, isto poderá ser efetivado mediante a criação de carreiras nacionais organizadas por grandes áreas temáticas: atenção básica, média e alta complexidade, vigilância à saúde e apoio em gestão.
3) Consolidar e estender modelo de atenção inspirado na tradição consolidada dos sistemas nacionais e públicos de saúde;
O SUS tem padrões de financiamento e de gestão inadequados. A governança do SUS é baixa principalmente em decorrência da fragmentação do sistema em vários pedaços com baixo grau de integração. Esta desarticulação explica tanto nosso fracasso no controle de epidemias como também a existência de empecilhos ao acesso. A fragmentação do SUS se manifesta em três dimensões.
A primeira é a existência simultânea de diferentes políticas, programas e prioridades entre governos federal, estaduais e municipais. A gestão concreta da rede do SUS é dividida em pedaços, um comandado pelos Estados – média e alta complexidade, hospitais, ambulatórios, urgência e o grosso da Vigilância – e outro pelos municípios – em geral, atenção básica, urgência das Unidades de Pronto Atendimento e algo de Vigilância. Em todas as regiões de saúde do país há pelo menos duas redes que pouco se integram e, muitas vezes, funcionam de maneira competitiva pelas divergências e disputas políticas. O Ministério da Saúde atua diretamente na Vigilância em Saúde, fazendo isto de maneira fragmentada, parte pela ANVISA e outro pela Secretaria de Vigilância em Saúde.
A segunda dimensão da fragmentação do SUS se refere a grande dependência do sistema privado, particularmente séria na área hospitalar, o que gerou um imenso e antiquado sistema de compra de serviços mediante contratos e convênios. Até hoje não se logrou regular e articular ao SUS essa imensa rede de hospitais privados e filantrópicos. Observa-se o mesmo tipo de relação vem se dando com Hospitais Universitários, mesmo quando sejam públicos, de Universidades Federais e Estaduais. Esta fragmentação se agravou ainda mais depois da aprovação da Lei das Organizações Sociais, que vem produzindo terceirização da gestão e de prestação de cuidado de pedaços da rede pública.
Um terceiro plano de desintegração e de fragmentação se refere a desarticulação entre hospitais, atenção básica, urgência, vigilância etc. Isto vem ocorrendo pela maneira com o que o SUS vem sendo implementado e gerido, não assentado em redes regionais com governabilidade sobre todas as modalidades de serviços, mas, por meio de pro¬gramas verticais ou de redes temáticas. Em consequência, as redes do SUS são paralelas e com baixa articulação horizontal.
Deve-se buscar um modelo de gestão que supere este grau nefasto de fragmentação e que assegure a progressiva integração do SUS em todos os três planos apresentados. Caminhar, assim, para uma situação em que a responsabilidade pelas ações e serviços de saúde passem a ser, simplesmente, do SUS.
É fundamental dar visibilidade também aos problemas de funcionamento do sistema por meio de um Mapa de Carências do SUS. Um relatório, versado em linguagem acessível à maioria da sociedade, que identifique necessidades de saúde negligenciadas e aponte meios para enfrentá¬-las. Diagnóstico das filas e das prioridades de intervenções coletivas e intersetoriais.
O SUS é essencial para defesa da vida
Estudantes, docentes e pesquisadores da Saúde Coletiva são instados, mais uma vez, a exercitarem o seu compromisso histórico com a Reforma Sanitária Brasileira, defendendo a radicalização da democracia, o direito à saúde, a equidade, a solidariedade e combatendo as políticas de ajuste que sacrificam os trabalhadores e a maioria da população.
Também nos dirigimos aos dois milhões de profissionais e trabalhadores do SUS, parte dos quais constituem as 40 mil equipes de Saúde da Família, com cerca de 265 mil Agentes Comunitários de Saúde, milhares de gestores que atuam em mais de cinco mil municípios desse imenso país, que atuam cotidianamente para garantir o acesso universal da ações e serviços de saúde.
A sociedade brasileira não pode aceitar passivamente a retirada de direitos, comprometendo o bem-estar das gerações atual e futuras.
Este é o momento de estarmos ainda mais próximos dos usuários do SUS, reforçando vínculos e dialogando sobre a importância de um sistema de saúde universal para a justiça social e para a proteção da saúde de todos sem distinções. Este é o momento de transformar a indignação e a revolta difusa em resistência ativa e organizada!
Em defesa dos direitos sociais, da democracia e pela saúde da população brasileira, neste Dia Mundial da Saúde, reafirmamos: Nós resistiremos!
Rio de Janeiro, 7 de abril de 2017.
Associação Brasileira de Saúde Coletiva