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Dia mundial de luta contra os agrotóxicos: uma luta pela saúde, meio ambiente e direitos humanos – Artigo de Karen Friedrich

Karen Friedrich*

Foto: MST é um dos grandes produtores de alimentos livres de agrotóxicos, no Brasil

Na madrugada do dia 3 de dezembro de 1984, na cidade de Bhopal, na Índia, uma explosão numa fábrica de agrotóxicos matou cerca de 25 mil pessoas, deixando sequelas graves em outras milhares. A fábrica da Union Carbide, hoje subsidiária da Dow Chemical, foi instalada no final da década de 1960, na área densamente povoada e pobre. Os agrotóxicos são substâncias desenvolvidas primeiramente como armas químicas, utilizadas nas grandes guerras, e, depois, para aniquilar seres vivos nas lavouras, que só se tornam pragas por conta do desequilíbrio ecológico causado pelo próprio modelo de agricultura que devasta, desmata, incendeia e extingue.

Ainda hoje, no Brasil, os agrotóxicos continuam matando silenciosamente milhares de pessoas. Trabalhadores rurais e moradores dos arredores de grandes plantações do agronegócio são os mais atingidos. Pulverizados por aviões, máquinas ou manualmente, esses venenos percorrem quilômetros, contaminando água, solo, criações de abelhas, plantações orgânicas da vizinhança e tudo o mais. Escolas rurais, assentamentos da reforma agrária, reservas indígenas e territórios de povos e comunidades tradicionais, que secularmente lutam por sua sobrevivência contra os interesses de grupos econômicos poderosos, também têm sido alvo de chuvas de veneno.

Os danos causados pelo uso de agrotóxicos não se restringem a essas regiões. Estudos recentes comprovaram que há agrotóxicos até em parques nacionais, distantes de áreas de plantio. A expansão das terras destinadas ao plantio de soja e outras commodities, em áreas de Cerrado e Floresta Amazônica, inclui uso de agrotóxicos herbicidas (desfolhantes), para desmatar com mais eficiência.

Os escassos dados de monitoramento dessas substâncias em água (que deveria ser) potável e nos alimentos, incluindo industrializados, também são assustadores: dezenas de tipos de agrotóxicos podem ser encontrados em itens base da nossa alimentação, em níveis e diversidade que seriam proibitivos em países da Europa, por exemplo.

Mesmo num modelo de agricultura químico-dependente, o Brasil poderia adotar condutas menos danosas, iniciando por reconhecer as incertezas dos estudos toxicológicos e ambientais apresentados pelas próprias empresas para determinar se um agrotóxico pode ou não ser permitido no país. A realidade brasileira, no entanto, torna algumas medidas inalcançáveis, incluindo o uso de EPI (equipamentos de proteção individual); o controle pleno do destino do produto aplicado; fiscalização do uso e comercialização; monitoramento de água e alimentos in natura e industrializados.

O contexto atual já mostra que o modelo de agricultura hegemônico no país deve ser repensado. O Brasil entrou novamente no mapa da fome, apesar dos recordes sucessivos de lucro no setor do agronegócio. O país também bateu recorde de liberação de agrotóxicos formulados com moléculas antigas, proibidas em outros países e muito tóxicas para as pessoas e o meio ambiente. Mais de 60% do volume comercializado por aqui é de agrotóxicos comprovadamente cancerígenos e desreguladores hormonais.

Prevenir ou reduzir os danos dessas substâncias exige superar muitos obstáculos, postos principalmente para atender aos interesses econômicos e políticos de uma minoria poderosa, que atua capturando ideologicamente atores estratégicos dentro dessa temática. E que também se dedicam para destruir as poucas conquistas alcançadas nos últimos anos, como as leis municipais e a lei do estado do Ceará vigentes que proíbem a pulverização aérea de agrotóxicos, ameaçadas por setores do agronegócio com ações em pauta no STF (Supremo Tribunal Federal) via ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade, n. 6137/2019).

Ainda estamos longe de fazer valer a Lei de Agrotóxicos (lei n. 7802/89), que apresenta algumas lacunas, mas que propôs avanços importantes. A proposta de revisão desta lei, conhecida como Pacote do Veneno, está pronta para votação no Congresso Nacional, com dispositivos considerados preocupantes pelas principais instituições de pesquisa e controle social do país.

Em outubro de 2021, foi assinado o decreto presidencial n. 10.833, que fragiliza ainda mais o cenário apresentado acima, pois altera a regulamentação da lei de agrotóxicos, dando menor transparência aos processos, enviesando as ações para os interesses econômicos e permitindo o registro de substâncias ainda mais tóxicas. Se alguém ainda acredita que os danos causados pelos agrotóxicos são “aceitáveis” e que alguns podem adoecer ou morrer para alimentar o mundo, engana-se.

A maior parte dos alimentos que consumimos vem da agricultura familiar, que por conta da diversidade do modelo produtivo, é menos suscetível à incidência de pragas agrícolas, favorecendo a produção sem veneno e com menor nocividade. De fato, a agricultura familiar (em especial a agroecológica e orgânica) é incomparável ao tipo de produção característica do agronegócio. A primeira produz grande diversidade de alimentos e a segunda recebe muito mais incentivo do Estado brasileiro, incluindo desoneração de uma série de impostos, que totalizam alguns bilhões por ano no país, como demonstra relatório produzido pela Abrasco.

Essas questões, são algumas das que tornam fundamental a luta contra os agrotóxicos, celebrada em 3 de dezembro. As mais importantes instituições de pesquisa em saúde e meio ambiente do país têm alertado sobre os desmontes da regulação de agrotóxicos, o sucateamento dos órgãos de fiscalização e controle, as doenças e mortes causadas pelos agrotóxicos. Mas também apontam a urgência para se investir na produção de alimentos de forma social, sanitária e ambientalmente sustentável. Assim como a história mostra que o desastre de Bhopal poderia ter sido evitado, é urgente e necessário lutar para evitar mais mortes e doenças causadas pelos agrotóxicos.

*Karen Friedrich é biomédica, toxicologista, mestre e doutora em saúde pública. Membro do grupo temático saúde e ambiente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Artigo originalmente publicado no Nexo, em 2 de dezembro de 2021, a convite da Cátedra J. Castro/USP (Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis). Confira a publicação original

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