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'Diálogo entre diretores da Abrasco' – por José Sestelo

Vilma Reis

O texto redigido pelo Vice presidente da Abrasco –  “é uma contribuição sem maiores pretensões que não a de valorizar o livre pensar com alto risco de errar”. José Sestelo é Mestre em Saúde Comunitária pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e doutorando em Saúde Coletiva pelo Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Confira na íntegra:

A situação de crise sanitária desencadeada pelo surto de microcefalia possivelmente associado a zika vírus e os cortes no orçamento da saúde com reflexo direto sobre a rede de assistência, financiamento de projetos de pesquisa e dispensação de medicamentos e vacinas são preocupantes.

Tudo isso ocorre dentro do campo de investigação da Saúde Coletiva e repercute na vida institucional da Abrasco aumentando a temperatura das discussões como é natural. Vejo um saldo extremamente positivo na combinação desses acontecimentos para uma associação que preza pela visão crítica bem fundamentada. Apenas um aspecto me preocupa e considero potencialmente negativo que é a possibilidade de transformação desse fermento em uma cizânia ou em uma polarização inconciliável à moda do que vem transcorrendo em diversos espaços de convivência social atualmente.

As sociedades científicas tradicionais costumam realizar reuniões de consenso periódicas muito bem preparadas e isso requer um esforço de organização e logística considerável que dificilmente tem condições de corresponder às demandas sociais em tempo real. Sabe-se também o quanto que esses consensos podem ter um vício de origem enviesado por interesses comerciais escusos. Defendo que a Abrasco também deva cultivar seus espaços de consenso e possa se apresentar à sociedade como uma associação que valoriza o método de investigação científica, entretanto sabemos que o desafio de se equilibrar em um espaço onde a dimensão pública é cada vez mais cooptada por interesses particulares não explicitados é um desafio político nos planos pessoal e institucional.

O risco de erros crassos, mal-entendidos, mal explicados e associações espúrias é permanente e deve ser considerado com atenção. Na verdade, é tanto maior o risco quanto maior é a base de contribuições que se agrega na explicação dos fenômenos, mas também reside aí a possibilidade de avançar para além das explicações reducionistas.

É assim que vejo com bons olhos toda essa discussão que transcorre entre nós. Fora algumas maledicências para as quais não há solução, penso que a Abrasco ganha em prestígio e presença em diversos espaços sociais de discussão. Por outro lado, os erros eventualmente cometidos não comprometem o conjunto da contribuição produzida pela Abrasco nos últimos dias.

Vejo também que internamente podemos e devemos avançar e aperfeiçoar os mecanismos de discussão seguindo a linha apontada pelo próprio regimento interno no que se refere ao papel dos GTs e da diretoria. Que bom que há disposição generalizada para participar. Isso tem valor inestimável.

A cizânia que mencionei, de fato, gira em torno de uma falsa questão que é a da natureza técnico/científica ou política da Abrasco. Já adianto minha opinião chamando de falsa questão e, a título de ilustração, passo a narrar um exemplo histórico que, a meu ver, guarda uma relação de analogia com a nossa situação atual.

Max Von Pettenkofer viveu no século 19 e defendia a teoria dos miasmas. Era considerado um cientista respeitável na Europa por que, de fato, contribuiu para a solução de diversos problemas concretos de saúde pública como, por exemplo a epidemia de cólera em Weimar e Munique. Esse homem era um químico de bancada e tinha uma visão de Medicina Social. Do ponto de vista teórico, levou a teoria dos miasmas ao seu limite de desenvolvimento.

Quando, nos Estados Unidos se pretendia conferir aos centros de formação médica um caráter “técnico/científico” foi em Munique e Leipzig que alguns pesquisadores foram buscar ajuda. O primeiro diretor da John Hopkins, Willian Welch, por exemplo, estudou na Alemanha.

Entretanto, o sucesso da teoria do contágio foi avassalador e colheu Pettenkofer no fim da vida colocando em dúvida todo o seu legado. Impregnado de espírito científico, nosso personagem encomendou uma cultura de vibrião no laboratório dos contagionistas e ingeriu o seu conteúdo em uma sessão pública com o objetivo de demonstrar que a presença do agente infectante não era, por si, suficiente para determinar o êxito letal.

Max sobreviveu à diarreia, mas não à maledicência. Anos depois se matou com um tiro. Considerado herói em Munique foi enterrado em solo sagrado mesmo sendo suicida e católico.

Seus alunos da John Hopkins não compareceram ao enterro. A essa altura não se falava mais seriamente em miasmas mas, se tratava de desenvolver o moderno conceito de “risco” de adoecimento em populações como se fosse possível um conceito surgir por geração espontânea sem pai nem mãe conhecidos.

No Brasil ainda se fez sentir no início do século 20 as rebarbas dessa discussão. Pereira Passos, influenciado pelo legado de Pettenkofer e de outros europeus como Haussmann, defendeu o saneamento ambiental, abertura de avenidas, hospitais e residências com janelas grandes e teto alto, aterro de áreas pantanosas, cuidados com o abastecimento de água potável e destino final de rejeitos, enfim, pelo menos para os moradores da área central do Rio, um padrão de urbanismo avançado com reflexos evidentes sobre saúde e adoecimento.

Oswaldo Cruz, sem se contrapor à reforma urbana, mas influenciado pelos contagionistas, concentrava seus esforços na vacinação contra varíola e no controle vetorial. Claro que não dispunha dos recursos tecnológicos de hoje, mas quem duvida que seria capaz de pulverizar o Rio inteiro no afã de acabar com o mosquito?

A analogia que mencionei se refere ao fato de que o campo da Saúde Coletiva e, consequentemente a Abrasco, têm uma vinculação histórica com a Medicina Social europeia mas incorpora todos os desenvolvimentos posteriores da teoria do contágio. A determinação social do processo saúde/doença está no nosso DNA e isso quer dizer que não estamos alheios à complexidade inerente aos fenômenos de saúde/doença em populações e indivíduos.

Os atos extremos de Pttenkofer foram técnico/científicos e políticos ao mesmo tempo. Ele foi científico quando assumiu um protocolo reproduzível na sessão pública em que ingeriu o vibrião colérico e foi político quando chamou uma plateia para testemunhar. Foi preciso quando desferiu um tiro na cabeça no fim da vida e foi político por que sabia que a sua morte nessas condições teria ampla repercussão social.

Se o campo da Saúde Coletiva, com todas as suas limitações e percalços representa uma possibilidade de olhar de forma ampla para a realidade sem jogar fora a criança junto com a água do banho, ou seja, sem abraçar uma visão reducionista das coisas, esse desafio tem natureza técnico/científica e política simultaneamente.

Assim, quero dizer que não há contradição entre essas duas dimensões nem é necessário escolher uma vertente em detrimento da outra. Essa é a nossa política inescapável de alto risco, para a sua práxis, entretanto, é preciso disposição para o diálogo e coragem por que não é um caminho fácil nem há atalhos ou simplificações disponíveis.

 

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