Como parte da programação do 12º Congresso da Abrasco, o auditório da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) lotou para acompanhar a mesa redonda Saúde global num mundo desigual. Com a mediação do sanitarista Paulo Buss, coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz); Deisy de Freitas Lima Ventura, professora de Direito Internacional e Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP); Carlos Milani, Professor Associado do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ); e o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães debateram a tônica da saúde no compasso das dinâmicas internacionais, expondo como o cotidiano brasileiro é afetado por tais circunstâncias e conferindo às desigualdades, tanto na distribuição do poder quanto da política, os fatores mais complexos da diplomacia da saúde global.
Ao abrir a mesa, Paulo Buss observou que tratar deste tema em um congresso de saúde coletiva, numa sala repleta, significa um olhar mais atento da saúde pública para a questão internacional e sobre o impacto do global sobre a saúde. Para pensar a Diplomacia da Saúde Global (DSG) – um instrumento de política externa -, é preciso compreender que seu objetivo é promover a saúde universal como um bem comum entre as nações, redefinindo o papel do Estado em um período de globalização, comercialização e individualização.
Instigada pelo próprio tema da mesa, Deisy Ventura propôs refletir sobre a necessidade de nos colocarmos em posição de enfrentamento e de disputa da dimensão internacional. O ponto de partida de sua análise foi a compreensão de que as promessas que a globalização econômica nos fez não foram cumpridas.
“Em primeiro lugar, o que se dizia quando defendido o modelo de democracia formal e de prosperidade econômica que caracteriza a globalização é que o mercado jamais nos permitiria ter um presidente como é Donald Trump. O mercado garantiria por si mesmo um equilíbrio de democracia e de respeito, pelo menos mínimo, aos direitos humanos. Já vimos que o mercado não foi capaz de garantir isso. E o atual governo dos EUA joga o mundo num cenário de grande instabilidade, inclusive comercial e econômica.”
Nesta mesma perspectiva, Milani disse que o cenário no âmbito mundial aponta para uma crise no capitalismo profunda, ainda não tocada, sendo necessária o seu enfrentamento para mudanças na saúde global. “O fator Trump gera um impacto negativo profundo em termos de previsibilidade da atuação dos Estados Unidos, mas também revela a perda de credibilidade da superpotência norte-americana.”
O embaixador Pinheiro Guimarães, por sua vez, fez uma análise que amplia a discussão para esferas pouco abordadas em termos de atuação nacional de políticas públicas em saúde, como ações de educação e informação com resultados para a saúde, e denuncia a desigualdade política e de poder ao traçar uma analogia do sistema imperial capitalista como lógica de atuação dos Estados Unidos da América.
Argumentos de segurança
Com a chegada de Trump ao poder e os cortes orçamentários nos programas de saúde global, diversos atores norte-americanos se levantam em oposição à medida. Para Deisy Ventura, este é um momento significativo, pois para defender os programas de saúde global, tais atores passam a se manifestar de forma mais clara. Isto faz com que a defesa de orçamento público seja um instrumento de política externa. Passa-se a falar, então, em segurança da saúde global. “Os argumentos de segurança modificam os termos do debate político”, pontua.
A advertência importante que Deisy traz é que um dos piores caminhos para a saúde global num mundo desigual é se transformar em um terreno de garantia da segurança dos países desenvolvidos. “Que nós tenhamos, por meios dos programas de saúde global, um aperfeiçoamento dos sistemas de vigilância em detrimento do fortalecimento dos sistemas de saúde. Que a gente tenha um grande aperfeiçoamento dos sistemas de troca de informação e a continuidade de programas pontuais.”
Deisy refere-se, a título de exemplo, aos programas financiados pela Fundação Gates, que declaram abertamente ser o campo da saúde e o combate à miséria e às doenças uma oportunidade de fazer negócio. Ventura recorda o discurso de Melinda Gates na Assembleia Mundial da Saúde, em 2015, ao dizer que “salvar vidas de recém-nascidos é um ato de amor e um gesto extremamente lucrativo do ponto de vista econômico”.
“Essa determinada visão de saúde global como instrumento para garantia da segurança de países desenvolvidos é algo temos que combater, especialmente num momento em que existe uma redução de orçamento”.
A austeridade tem um custo alto para a saúde. A cada corte nos programas de saúde e dos milhões anunciados, deveria ser contabilizado o número de pessoa impactadas diretamente – quantas morrerão, quantas não terão assistência, nem medicamentos. “O discurso da austeridade jamais se comprovou eficiente do ponto de vista das resoluções das crises econômicas. Austeridade somente agrava as crises econômicas. Todos os indicadores pioram com as políticas de austeridade, sobretudo a área da educação e saúde. Austeridade mata.”
“Nós precisamos resistir à mercantilização da saúde, que é uma diretriz internacional, e fortalecer e valorizar o SUS. O Brasil é uma referência e precisa continuar sendo”, finalizou Ventura.
Poder político e representatividade
Para Carlos Milani, unir saúde global e sistema internacional é um paradoxo. O tema lida muito mais com contradições do que possibilidades de construção de consensos entre estes dois campos políticos temáticos, que são a promoção de saúde, na perspectiva de direitos e qualidade de vida, e um mundo de sistema capital assimétrico, hierarquizado.
“O sistema internacional, além de desigual, é profundamente assimétrico no que diz respeito à distribuição dos recursos de poder econômico, militar e estratégico, e aos que têm assento em determinados conselhos de processos decisórios. Há ainda organizações internacionais onde o poder de voto é definido por uma cota financeira, como é o caso do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.”
Tendo esta contradição como parâmetro, Milani destacou três pontos que considera fundamentais para pensar a saúde global. Segundo sua avaliação, a passagem dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) marcou uma flexibilização excessivas dos temas da saúde. Os ODM possuíam oito objetivos bem definidos em seu monitoramento, sendo três os indicadores focados em saúde (ODM 4, redução da mortalidade infantil; ODM 5, melhoria da saúde materna; e ODM 6, combate ao HIV, malária e outras doenças).
O balanço realizado destes ODMs entre 1995-2015 apresentou alguns aspectos positivos. Segundo dados do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, 173 milhões de indivíduos saíram do mapa da fome. Uma conquista antes não vista em termos de cooperação internacional no campo da saúde. Também neste mesmo período, outro dado positivo apontava que a probabilidade de uma criança morrer com menos de cinco anos de idade foi reduzida pela metade, o que significa, em termos estatísticos, poder salvar 17 mil vidas de crianças a cada dia.
“Ainda persistem muitas desigualdades, especialmente nas relações norte-sul. Para se ter uma ideia, 99% do total das mortes maternas acontecem em países em desenvolvimento (1 para 16 mulheres no Chade e de 1 para 10mil da Suécia). A diferença discrepante é indecente”, afirmou.
O adjetivo encontra coro na abordagem feita por Deisy Ventura anteriormente: “vivemos em um mundo interconectado, radicalmente desigual e inseguro, e em síntese, um conjunto de mundos que parecem esgotados. Este mundo desigual, faz com que vivamos na “era da indecência” [remetendo ao filósofo francês Frédéric Gross] que se caracteriza por dois elementos fundamentais que são as desigualdades abissais que formam duas humanidades díspares; e a degradação progressiva do ambiente.
As críticas quanto aos ODS consideram a “diluição” dos 8 objetivos em 17, dos quais apenas três têm relação com a saúde (ODS 2, fome zero; ODS 3, boa saúde e bem-estar; ODS 6, acesso à água limpa e saneamento), sendo seu monitoramento para a Agenda 2030 mais complexo. Numa segunda abordagem, Milani propôs pensar quais seriam os melhores indicadores de saúde num mundo contemporâneo, o que, na sua perspectiva, teriam relação com a redes nacionais e translacionais de cooperação e saúde.
Para concluir, Milani apresentou os dois cenários para enfrentamento no âmbito das tensões entre saúde global e desigualdade. “Porque as políticas públicas nacionais contam muito, o primeiro cenário tem que ser pensado em âmbito nacional. No Brasil, estamos na contramão das tendências, por uma reversão da agenda de direitos arduamente conquistadas no início do século 21 numa ruptura abrupta, drástica, representada pelo governo. O segundo nível importante de se pensar é o regional e a necessidade de um espaço mais integrado de coordenação e cooperação. Que papel o Brasil desempenha na sua região? Percebemos um abandono das capacidades do Brasil de mediação diplomática e coordenação na América do Sul e com isso os EUA passam a desempenhar uma função muito maior, assim como a presença de potências extra regionais como a China e a Rússia nas mediações com a Venezuela.”
O sistema imperial
O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, diplomata brasileiro de renomada atuação crítica e independente em sua trajetória internacional, fez uma análise do cenário atual brasileiro nas perspectivas de políticas públicas e no campo internacional. Pinheiro Guimarães examinou as estratégias de saúde em pública e privada, na qual este último é exemplificado pelo que existe nos Estados Unidos e o que se está tentando implantar no Brasil. Na saúde pública, as estratégias estão divididas em preventivas e curativas.
“Com a política de corte de recursos, o impacto na assistência é inevitável. Se parte dos recursos destinados à medicina curativa fossem destinados à medicina preventiva, sanitarista em geral, o número de crianças que morrem por doenças como disenteria, por exemplo, reduziria. Assim como o investimento na informação, acredito que melhoria a assistência na saúde no Brasil.”
O embaixador abordou fatos da realidade brasileira que considera graves e urgentes, e que encontra sua solução, ainda que parcial, na educação, informação e comunicação. Os exemplos são o número de casos de abuso sexual de meninos e meninas; os homicídios causados por excesso de velocidade no trânsito; e a ênfase na medicina curativa. Todos as circunstâncias apontadas por Pinheiro Guimarães desencadeiam questões para a saúde e refletem a importância do Sistema Único de Saúde.
Para tratar do tema de saúde global, Pinheiro Guimarães afirmou que vivemos hoje “num sistema internacional imperial onde existe uma metrópole imperial que são os Estados Unidos da América”. Segundo o embaixador, este império possui províncias – cada qual com sua classificação – e dois adversários, que são a Rússia e a China. As analogias foram sendo apresentadas: as “províncias de primeira classe são os países membros permanentes dos conselhos de segurança, detentores de armas nucleares. Depois, os países da Europa Ocidental, como a Suécia, a Dinamarca. Estes países de primeira classe gostariam de ser consultados pela metrópole, mas isto não acontece, pois ela faz e depois exige alinhamento.”
Na sequência, os países latinos, como Portugal, Espanha; os do Leste Europeu, “ultradireita”. As “províncias rebeldes”, Venezuela e Irã. Já as “províncias submissas”, são aquelas que “adotam todas as metas da metrópole sem que lhe peçam nada. A submissão é tratada com desprezo profundo. Este é o Brasil, com um governo orientado para atender as demandas de um lado, do exterior, e dentro do Brasil, do capital, onde todas as medidas são contra os trabalhadores.”
Paulo Buss encerrou o debate, destacando que diversos mecanismos permitem a manutenção desta lógica de capital, sendo necessária a reflexão dos fatos expostos para dar continuidade ao processo de resistência, luta e fortalecimento do Sistema Único de Saúde.