POSICIONAMENTO ABRASCO 

Direito à água e ao saneamento – Posição do coletivo “Água é Vida, Não Mercadoria”

O presente documento tem como objetivo solicitar esclarecimentos e reivindicar junto à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), à bancada federal do Estado do Rio de Janeiro no Congresso e ao Executivo Fluminense, o acesso ao saneamento e à água por parte da população moradora de favelas e bairros populares da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ).

Entendendo o saneamento como direito constitucional e a água como um bem público vital, este documento alerta e busca diálogo com a sociedade, tendo como foco dar visibilidade a atual crise humanitária e hídrica vivida pelas periferias urbanas e, em especial, pelos grupos mais vulneráveis, como as mulheres negras de favela, os trabalhadores pobres, as crianças e idosos.

Acreditamos que o atual momento – radicalizado pela COVID-19, pela alta do desemprego e pela falta d’água – é mais uma manifestação clara de injustiças históricas. Estamos presenciando um crime contra a vida e por isso nosso desejo é esclarecer dramas sociais e situações-limite diariamente vividas pelos moradores do Estado do Rio de Janeiro (ERJ). Ao final, trazemos novas contestações e exigimos ações emergenciais e definitivas para garantir o acesso a água de qualidade a quem mais necessita.

Histórico da relação saneamento e favelas do Rio e da RMRJ

A relação do Estado Fluminense com as favelas sempre foi cheia de conflitos e contradições. Em relação à política de saneamento, essa condição é ainda mais radical. Após a fusão do Estado (1974) e a criação da CEDAE (1975) surge uma forte demanda por ampliação dos serviços e da cobertura de água e esgoto nos loteamentos periféricos da RMRJ. Como os nossos principais sistemas de abastecimento foram criados para atender as regiões e os bairros centrais cariocas, as favelas sempre sofreram com a falta de atendimento ou com acesso a serviços precários e de baixa qualidade.

Da mesma forma, as áreas pobres da cidade e dos municípios da RMRJ vêm lidando, nas últimas décadas, com inúmeras crises sanitárias, cujas causas têm forte relação com a desigualdade social, com a falta de água e de infraestrutura de saneamento básico. As constantes enchentes que até hoje afetam a Baixada e o Leste Fluminense; a epidemia de cólera nos anos 1970/1980; as incontáveis epidemias de dengue no Rio de Janeiro; e o desabastecimento nos verões são exemplos de eventos enfrentados anualmente pelas classes populares.

O fato é que as redes e estações de bombeamento instaladas pelo Estado nas favelas são praticamente as mesmas implementadas ainda nos anos 1980. A infraestrutura presente remete a programas como PROFACE1, do governo Brizola (1983); e o PDBG2 e ao Favela Bairro, dos anos 1990. Os mais recentes, como o PSAM3, parecem ter sido abandonados, sem informações claras e transparentes sobre os investimentos orçamentários executados e obras realizadas até o momento. O que se quer enfatizar é que não foi a falta de recursos a única responsável pela precariedade do saneamento nas periferias e nas favelas; mas a um processo extremamente injusto de distribuição e aplicação de recursos públicos que produz desigualdades na distribuição da rede e de equipamentos públicos; no cuidado com a população pobre; e na manutenção e na qualidade dos serviços. Tal situação impõe sérios riscos para a saúde de uma parcela importante da população e traz sofrimento para o cotidiano dessas famílias, em especial para as mulheres.

O projeto de privatização da CEDAE, apresentado pelo Governo do Estado, aponta que os recursos para novos investimentos serão aportados a partir da arrecadação pelo sistema tarifário. Ora, como acreditar que após a privatização o setor privado vai financiar melhores serviços e infraestruturas para o atendimento às áreas mais pobres da RMRJ? Como falar de tarifa, se não houve até então um debate profundo sobre tarifa social no estado?

Na realidade, a própria favela vem financiando boa parte do seu precário sistema de manobra e de abastecimento. A manutenção de bombas e das caixas d’águas, e o reparo de pequenas ligações e tubulações são realizados, em muitos casos, pelas mãos e economias dos próprios moradores.

Por isso, acreditamos que a universalização do saneamento e o direito à água de qualidade só será consolidado por meio da ação pública, gerida pelo Estado e sob o controle público social da população e suas representações. E é por isso que somos contrários à privatização da CEDAE e do saneamento fluminense.

Água é direito e não um negócio

Os moradores de favela vivem um problema sério no dia a dia: a falta de saneamento e de água nas suas casas. No atual contexto de retomada e elevação dos casos e óbitos por COVID-19, a falta d’água é uma questão de vida ou morte. Mas como proteger a si e a sua família se não tem água na torneira? E se a casa fica alagada quando chove, ou o esgoto a invade? Além disso, muitos moradores e coletivos de favelas alegam que o custo com a compra de água para consumo vem aumentando. Os gastos com a compra de galões, recipientes para armazenamento e para a manutenção de sistemas comunitários estão sendo absorvidos pelo orçamento familiar, já tão afetado pelo desemprego e pela informalidade crescente.

Enquanto a população pobre morre por Covid-19, as torneiras estão secas e as pessoas estão perdendo vitalidade e saúde. Verifica-se o permanente desperdício de água na própria rede oficial de abastecimento e a clara desigualdade na distribuição entre áreas da RMRJ, que enfrenta nova crise por conta dos problemas técnicos do sistema Lameirão. Vale lembrar, ainda, que somente em 2020 ocorreram outros eventos que radicalizaram o problema do saneamento: a contaminação da água no sistema Guandu por geosmina; os novos alagamentos e enchentes na Baixada; e a falta de água nas favelas e nos equipamentos públicos de saúde e de assistência social durante a pandemia por COVID-19.

Para nós, todas essas ocorrências resultam de problemas históricos, onde o Estado e o mercado atuam de maneira injusta e preconceituosa em relação aos territórios vulneráveis da cidade; somados a uma campanha política e publicitária voltada para enfraquecer o controle estatal sobre a água e facilitar a venda da CEDAE. Inclusive, acreditamos que o comportamento irresponsável da direção da empresa e do Estado está diretamente alinhado aos interesses do mercado de concessionárias privadas, que deseja romper com o controle público sobre a água.

Não por acaso, o Ministério Público, a Defensoria Pública, categorias profissionais, sindicatos e diversas instituições da sociedade civil vêm impetrando ações civis públicas de maneira a denunciar os inúmeros pontos de inconstitucionalidade nos trâmites apresentados pelo Executivo estadual no que concerne ao edital, aos estudos técnicos e às consultas públicas no âmbito da venda da CEDAE. Essas ações têm como objetivo alertar a sociedade, os órgãos fiscais e de controle e garantir o direito constitucional à água e ao saneamento. O próprio marco regulatório do saneamento no país, recentemente aprovado, vem sofrendo com inúmeros questionamentos por violar a Constituição, os Estatutos da Cidade e da Metrópole e o Pacto Federativo.

Falta de transparência e acesso à informação

Sempre quando há períodos de crise hídrica e humanitária no ERJ e na RMRJ, há também desinformação e falta de transparência por parte do poder público. Afinal, se a água é um recurso escasso, quais são os critérios de distribuição entre os bairros e municípios da RMRJ? Se o Sistema Guandu se encontra na Baixada Fluminense por que, em pleno século XXI, falta água para seus municípios? Se a ETA Imunana-Laranjal está sediada em São Gonçalo, por que a cidade, em pleno 2020, enfrenta periódicos desabastecimentos?

Por que o Estado e a CEDAE não divulgam os mapas de manobra da rede geral de água entre bairros e municípios da RMRJ? Por que não se enfrenta a atual crise do Lameirão tendo como base essa distribuição espacial da rede e a necessidade de consumo?

E os programas de saneamento e infraestrutura urbana que vinham sendo executados (ex: PSAM)? E as obras anunciadas pelo Governo do Estado em audiência pública, no dia 03/03/2020, na Alerj, cujo tema era “Planos de Saneamento para o ERJ”? Por que não foram priorizados o atendimento a postos de saúde e CRAS durante a pandemia?

E por que não há debates sérios a respeito da tarifa social?

O próprio processo de privatização da CEDAE, que vem sendo tratado como única solução para o saneamento, carece de transparência, de maior espaço de participação por parte da sociedade e uma ampliação do corpo técnico e político nas tomadas de decisão. As consultas públicas realizadas contaram com um formato totalmente incapaz de aprofundar o debate sobre tema tão importante; além disso foram organizadas de forma apressada, com formato e pontos de pauta totalmente destoantes do que exige o contexto de crise econômica, social e sanitária vivido pela população.

Além disso, um grupo de parlamentares vem questionando não apenas a ineficácia das repostas dadas à sociedade em relação à água, mas alertando para o risco que os atuais gestores públicos enfrentam de incorrer em crimes de responsabilidade contra os direitos humanos, à saúde pública e à vida dos habitantes do ERJ.

Partindo desses argumentos e fatos descritos, o presente Coletivo apresenta um conjunto de reivindicações e exige que sejam tomadas as seguintes ações emergenciais:

– Reconhecendo o momento de crise atual e a chegada do verão – quando há uma sobreposição de problemas de escassez de água, de circulação de vetores causadores de doenças (ex: Dengue) e ocorrência de inundações e enchentes -, é preciso que o Estado garanta o abastecimento de água contínuo e emergencial para as favelas e bairros populares do Rio e da RMRJ. É fundamental que o Estado defenda a vida do povo, não reduzindo o fornecimento de água em períodos do dia, muito menos sem aviso prévio e justificado;

– O executivo e a CEDAE precisam apresentar um plano emergencial de atendimento prioritário às favelas para os próximos meses, listando ações concretas;

– Exigimos a retomada de um debate amplo e popular sobre a política de saneamento e infraestruturas de acesso à água para a RMRJ. Uma discussão que abra espaço às posições que sejam contrárias ao projeto de privatização, e que envolva especialistas da área da saúde, economia, ambiente e social; movimentos populares e de favelas; e representantes de empresas públicas e demais setores urbanos. A ideia é construir uma alternativa real à “solução única” apresentada pelo mercado privado de concessionárias;

– Diante das inúmeras negligências recentes por parte da gestão do Governo Estadual no que tange ao atendimento e à cobertura de água para as periferias da RMRJ; diante da crise humanitária que se instalou na sociedade fluminense; e a intensificação dos riscos à vida da população num contexto pandêmico, exige-se respostas urgentes por parte do chefe do executivo e do próprio presidente da CEDAE a respeito de medidas essenciais de proteção à vida nas favelas. Para isso, cobramos a garantia de fornecimento de água tanto para os moradores como para as unidades de saúde, os CRAS e outros espaços comunitários de apoio psicossocial, de forma a diminuir o sofrimento da população;

– Considerando que a pandemia da COVID-19 não terminou no ERJ e, face ao aumento recente de novos casos e óbitos, solicitamos ao executivo estadual a permanência e a adoção de novas medidas emergenciais de enfrentamento da pandemia. São elas: colocação de caixas d’água nas moradias; a instalação de torneiras ou caixas d’água coletivas, de fácil acesso e que possam ser utilizadas em casos de emergência; o poder público deve arcar com os custos e fornecer apoio técnico para a realização das instalações; o poder público e a CEDAE devem aumentar a oferta de caminhões pipa onde não há rede de abastecimento de água, ou onde há problemas de interrupção do abastecimento;

– Mesmo reconhecendo o histórico de conflitos e de contradições na relação entre o Governo Estadual, a CEDAE e as comunidades, favelas e periferias cariocas e fluminenses, o presente coletivo se coloca contrário à privatização da empresa. Defendemos sua reestruturação técnica e econômica e seu redirecionamento político para a universalização do saneamento e para o combate à desigualdade social e à pobreza no Estado. Reforçamos: água é um bem público e vital, não mercadoria!

Novas adesões a este documento podem ser solicitadas pelo e-mail aguaevidanaomercadoria@gmail.com.

Leia a nota na íntegra.

Assinam:

1. Agenda Nacional pelo Desencarceramento

2. Agentes de Pastoral Negros

3. Aqualtunes

4. Articulação Brasileira de Lésbicas – ABL

5. Assembleia Permanente de Defesa do Meio Ambiente – APEDEMA

6. Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

7. Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO

8. Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco – AMAR

9. Associação de Moradores da Lauro Muller, Ramon Castilla, Xavier Sigaud e Adjacências – ALMA

10. Associação de Moradores de Santa Teresa – AMAST

11. Associação de Moradores do Morro da Coroa – Santa Teresa

12. Associação dos Servidores da Fundação Oswaldo Cruz (ASFOC) – Sindicato Nacional

13. Brota na Laje

14. Casa das Pretas

15. Casa de Artes e Culturas Percilia Teles da Silva

16. Centro Cultural Santo Antonio de Catigeró – São Gonçalo

17. Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM)

18. CIA É TUDO CENA! – Rio

19. Coisa de Mulher

20. Coletivo Fala Akari

21. Coletivo JUNTAS

22. Coletivo Maré Vive

23. Coletivo Marginal

24. Coletivo Nacional de Juventudes Enegrecer

25. Coletivo Papo Reto do Alemão

26. Comissão de Agentes Comunitários de Manguinhos (COMACS) – RJ

27. Comissão de Moradores da Comunidade Indiana Tijuca ( CMCIT)

28. Comitê da Cidadania Bem Acentuado, Magé – CCBA

29. Comitê pela Democracia de Santa Teresa

30. Consulta Popular

31. CRIOLA

32. Espaço Cultural Negras Potentes

33. Federação de Associações de Moradores do Rio – FAMRIO

34. Federação de Favelas do Rio de Janeiro FAFERJ.

35. Federação Nacional dos Estudantes do Campo de Públicas – FENECAP

36. Feminicidade

37. Fórum Estadual de Mulheres Negras-RJ

38. FÓRUM MUNICIPAL DE MULHERES NEGRAS DE MARICÁ

39. Fórum Municipal de Mulheres Negras de Niterói

40. Fórum Nacional de Mulheres Negras

41. Frente Cavalcanti

42. Frente CDD

43. Frente Estadual pelo Desencarceramento – Rio de Janeiro

44. Grupo de Mulheres Bordadeiras da Coroa

45. Grupo Lage, do Morro da Coroa

46. Ilê Asè do Ogun Já – São Gonçalo

47. Instituto de Ação Social, Esporte e Educação, em Manguinhos IASESPE

48. Instituto de Mulheres Negras Herdeiras de Candaces

49. Instituto de Pesquisa da Cultura Negra – IPCN

50. Instituto Omolara Brasil

51. Instituto Raízes em Movimento

52. Levante Popular da Juventude

53. Liga Brasileira de Lésbicas – LBL

54. MOVIDADE BRASIL – MOVIMENTO DEMOCRÁTICO AFRODESCENDENTE PELA

IGUALDADE E EQUIDADE RACIAL (Entidade Nacional)

55. Movimenta Caxias

56. Movimento Candelária Nunca Mais

57. Movimento D’ELLAS

58. Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos – MTD

59. Movimento dos Atingidos por Barragem – MAB

60. Movimento dos pequenos agricultores – MPA

61. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST

62. Movimento Negro Unificado

63. Mulheres em Ação no Alemão

64. MULHERES NEGRAS DE PETRÓPOLIS – MUNEPE

65. Museu da Maré

66. Núcleo de Mães Vítimas da Violência

67. Pastoral da Criança

68. Pré-vestibular +Nós

69. Projeto Entre Lugares Maré

70. Quilombo Raça e Classe

71. Rede das Pretas – Região dos Lagos

72. Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência

73. Rede Emancipa

74. RUA_Juventude Anticapitalista

75. SINDÁGUA – RJ

76. SINTSAMA – RJ

77. UNEGRO-RJ

78. Voz das Comunidades

1 Programa de Favelas da CEDAE (1983-1985)

2 Programa de despoluição da Baía de Guanabara (PDBG)

3 Programa de Saneamento Ambiental (Governo do ERJ)

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