Quero saudar em nome do Grupo Temático de Vigilância Sanitária da Abrasco os representantes da mesa. Quero agradecer desde já os nossos colaboradores e convidados que aceitaram o convite do debate da vigilância sanitária. Quero também agradecer aos nossos patrocinadores: a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul e a Anvisa, bem como nossos apoiadores, como a Fiocruz na forma da sua presidência, da Escola Nacional de Saúde Pública e do INCQS. Quero dar um abraço de companheirismo nos colegas do GT Visa e nos colegas da Abrasco, que foram essenciais na realização desse simpósio brasileiro e pan-americano. Quero dar também agora um abraço fraterno de boas-vindas nessa legião de professores, pesquisadores e estudantes, e em especial os trabalhadores da Vigilância Sanitária em todos os cantos do nosso país e de nossa América. Esse simpósio é de vocês, realizado com muito trabalho e até sacrifício para que tivéssemos mais essa oportunidade de estarmos juntos nesse grande e necessário debate sobre os rumos da vigilância sanitária dentro dos sistemas de saúde de nossa região.
Temos consciência que vivemos num dos continentes mais desiguais de nosso planeta. É triste conviver com essa marca de campeões da desigualdade no mundo. Entre os muitos significados dessa desigualdade está a inevitável evidência que os modelos de desenvolvimento que adotamos não foram capazes de distribuir riqueza de forma mais justa. Significa também que o Estado tem trabalhado em favor de poucos, justamente os que menos precisam. Temos o dever de pensar em que medida a vigilância sanitária contribui para a reprodução e até ampliação dessa desigualdade. Isso porque vigilância sanitária é ação do Estado, é o Estado em ação. Em nome da proteção da saúde criamos leis e uma infinidade de normas infralegais que buscam o máximo rigor em requisitos que determinem a qualidade e a segurança de qualquer produto ou serviço de interesse em saúde, independentemente da avalição do risco envolvido. Essa mesma legislação nos proporciona um formidável volume de trabalho, na maioria das vezes formal e burocrático. Um trabalho do qual nos estamos seguros na identificação dos principais perigos e das estratégias de enfrentamento. De súbito, nos vem a mente a desconfiança de que o rigor e o detalhismo, a grande quantidade e complexidade dos requisitos apenas podem ser cumpridos pelas empresas de grande capital. Se assim for, funciona efetivamente como uma barreira de novos agentes no mercado. Uma pergunta que precisamos fazer é se estamos realmente protegendo a saúde da população ou se estamos reproduzindo o modelo de desigualdade. Temos de aprender na vigilância sanitária a trabalhar com equidade, a trabalhar com extratos da população com graus muito diferentes de vulnerabilidade social. Nosso trabalho por enquanto é linear: trabalhamos como se todos estivessem o mesmo grau de risco e exposição aos perigos, se tivessem a mesma probabilidade de correr danos e agravos à saúde. Em que medida a vigilância sanitária que fazemos identifica os perigos mais estratégicos, avalia os riscos mais essenciais, dá prioridade aos mais críticos e, principalmente, usa os instrumentos corretos proporcionais aos riscos envolvidos?
Temos hoje um quadro muito complexo de demandas sociais, diferente daquele de décadas atrás, dos anos 1910 e 1920, quando nossos sanitaristas tinham plena convicção de que se o Estado investisse maciçamente em saneamento básico haveria uma formidável alteração do quadro epidemiológico, caracterizado na época principalmente por parasitoses, doenças de Chagas e outras endemias. Temos hoje também uma demanda grande de incorporação rápida e crescente de tecnologia, inovações, de cuidados com perigos associados a pessoal, produtos e serviços que vêm dos cantos mais distantes do planeta, dos lugares mais heterogêneos. Temos uma demanda por maior transparência e participação social. E nós, da Vigilância Sanitária, temos de saber os limites da legítima participação e o excesso de influência e interesses particulares. Como dar esses limites?
Temos uma demanda por mais ética na gestão da política, de maior eficácia nas ações do Estado, mais foco das políticas públicas, uma demanda de avaliação constante de nossas práticas. Temos um quadro de intensa urbanização e competição internacional, com reflexos na vigilância, sem falar também na transição demográfica e na transição epidemiológica. É uma nova situação que exige para sua compreensão uma nova base conceitual, mais complexa, que possa iluminar os agentes públicos. Sim, pois detrás de cada ação simples de um agente de Vigilância Sanitária existe uma teoria, um conjunto de concepções que sustenta aquela ação e justifica aquela prática. Esse novo quadro exige uma interlocução com diferentes disciplinas e suas complexidades. Não poderemos entender a concorrência do mundo atual sem o auxílio da interdisciplinaridade, que nos permitirá uma ação mais iluminada na vigilância sanitária.
O quadro epidemiológico, de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, obesidade, tabagismo, alcoolismo, neoplasias é uma consequência também de um modelo de sociedade. Na vigilância sanitária temos de perceber que, neste modelo, são hegemônicos certos interesses, que não são necessariamente coincidentes com a proteção da saúde. Precisamos pensar sobre a eficácia de nossos modelos de vigilância dentro dessa nova ordem. Eficácia em relação a sua missão de eliminar e reduzir riscos. Ou se nos estamos apenas reproduzindo as práticas que aprendemos há muito tempo. As sociedades modernas parecem hoje mais sensíveis aos desígnios da natureza. Uma safra que não sai bem interfere nas commodities, no controle de preços, na inflação. Uma chuva mais prolongada e intensa deixa nossas cidades alagadas, bloqueiam o trânsito, literalmente param a cidade. Parece que estamos mais vulneráveis quando não agimos com planejamento inspirado no conhecimento da realidade. Mas os lugares são desigualmente vulneráveis. Têm alguns que quase não sofrem consequências. Essa desigualdade traz consigo diferenças nessa vulnerabilidade, que não tem apenas aspectos econômicos e físicos, mas têm dimensões ambientais, psicológicas e culturais. Então, neste quadro, como se articulam a vigilância sanitária e o desenvolvimento? Quais os impactos dos diferentes modelos de desenvolvimento que tivemos ao longo da história em nossos países sobre a saúde e que demandas esses modelos trazem para a vigilância sanitária? Como trabalhar e fazer a vigilância sanitária de modo a não contribuir para a reprodução da desigualdade ou mesmo para a sua ampliação? Como estruturar sistemas de vigilância eficientes e democráticos no contexto do desenvolvimento da nossa região? Como dimensionar a ação da vigilância fundamentalmente nas avaliações de risco, que inclua o risco social e que responda as incertezas das incessantes inovações tecnológicas? Como intervir, via regulação sanitária, nas regulações sociais e econômicas na medida certa para promover a inclusão da saúde e a inclusão produtiva? Essa inclusão não pode ser só uma ideia da moda, que não produza efeitos concretos. Para todas essas perguntas nós organizamos esse debate.
Bem-vindos a este debate. Esse simpósio, que como vocês sabem tem o tema vigilância sanitária, desenvolvimento e inclusão: dilemas para a regulação e proteção da saúde, tem um diferencial que é sempre bom ressaltar. É uma atividade acadêmica, como é própria da atividade da Abrasco, mas tem uma imensa maioria de participantes que vêm do trabalho da vigilância sanitária, vêm do serviço, estão na linha de frente, executam cotidianamente ações de vigilância sanitária. Essa grande participação é uma evidência da necessidade dos debates na nossa área, da vontade de refletir, de registrar e de disseminar nossas melhores práticas. Temos mais de 2.100 inscritos em nosso simpósio, recebemos mais de mil trabalhos, dos quais cerca de 900 foram aprovados e serão discutidos nas discussões temáticas. Temos o propósito também de superar a histórica marca da vigilância sanitária como campo burocrático, bacharelesco, policialesco, sem abrir mão da autoridade da firmeza regulatória, fazer da vigilância um campo da produção do conhecimento também. A riqueza e a diversidade dos objetos sobre os quais trabalhamos permite uma reflexão profunda, não apenas dos impactos dos objetos, mas também da natureza da nossa própria sociedade, nosso estágio de desenvolvimento, nossas características éticas, sociais e econômicas. Parece incrível, mas tudo isso nos podemos apreender nos trabalhos que são apresentados no nosso simpósio. Então esse é o momento para nós debatermos se estamos no caminho certo, se precisamos corrigir alguma rota, se a gente precisa debater mais, estudar mais, trocar mais, principalmente com nossos irmãos dos países vizinhos de região. Muito bem-vindos a esse debate, aproveitem o simpósio. Espero que a gente tenha três dias de profundo estudo da nossa área, para que a gente não perca de vista aquilo que é fundamental: o direito fundamental à saúde. Muito obrigado.