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Drama da microcefalia expõe feridas da Saúde no Brasil

Vilma Reis com informações de Talita Abrantes

Foto: Freestocks.org / Pexels

Antes de melhorar, vai piorar. Esse é o diagnóstico de Margaret Chan, diretora-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), sobre o surto de zika e microcefalia que coloca autoridades e grávidas em alerta no Brasil. Além do drama de um futuro incerto para as centenas de bebês diagnosticados com a má-formação, tal previsão topa com os problemas estruturais da Saúde no Brasil: para especialistas, o país não está pronto para lidar com tal sina.

Até 20 de fevereiro, mais de 5,6 mil casos suspeitos de microcefalia estavam sendo investigados. Dos 583 bebês com a má-formação comprovada, os médicos encontraram a presença do zika vírus em 67. Do total de casos confirmados, 120 foram detectados pela equipe da doutora Maria Ângela Rocha, chefe da infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), no Recife (PE) – uma das cinco instituições responsáveis por checar cada suspeita da doença no estado, o mais afetado pelo surto de microcefalia no Brasil.

“Uma demanda dessa é algo totalmente inesperado. A gente teve que se organizar”, afirma a médica. A questão, na opinião da especialista, são os passos seguintes à confirmação da má-formação. “O problema do diagnóstico é pontual, mas as crianças vão precisar de atendimento pelo resto da vida. O grande desafio é a sequência”, diz.

Levantamento feito pelo governo pernambucano revela que mais da metade das famílias dos bebês com suspeita de microcefalia no estado são de baixa renda – desses, quase 80% fazem parte de famílias cuja renda per capita é de até 77 reais. A dependência desses pacientes dos serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é óbvia.

O problema: “Só muito recentemente o SUS começou a sua rede de reabilitação motora, psico e social. Há poucas unidades descentralizadas”, afirma Gastão Wagner de Souza Campos, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Sem controle

Ao todo, o SUS dispõe de uma rede de 1.543 unidades de reabilitação formada por serviços totalmente geridos pelo setor público ou por instituições filantrópicas que mantêm convênio com o Ministério da Saúde. Desses, 136 são Centros Especializados em Reabilitação (CER). No final do ano passado, a presidente Dilma Rousseff anunciou a criação de outras 89 unidades nesses moldes. Questionado por EXAME.com, o Ministério da Saúde, contudo, não soube precisar a capacidade de atendimento desses serviços, tampouco onde as novas unidades serão instaladas

“O governo federal nunca tomou como sua essa responsabilidade. Repassa o recurso, mas não tem um programa montado e estruturado”, diz Teresa Amaral, superintendente do Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDPD). “Há uma omissão de responsabilidade nos três níveis de gestão”.

Segundo levantamento preliminar de uma pesquisa coordenada por Gastão Wagner, da Unicamp e Abrasco, o tempo de espera para que uma mulher diagnosticada com gravidez de risco conseguir atendimento especializado é de dois a três meses. “O risco é identificado entre o segundo e o quarto mês. Tendo em vista que a gravidez dura nove meses, nós temos um entrave”, afirma Campos.

“Uma criança com potencial de má-formação pode gerar uma condição de risco de parto. Isso demanda assistência neonatal, além da presença da avaliação de especialistas na maternidade”, afirma Marco Aurélio Palazzi Sáfadi, diretor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Só resta a Justiça

Para as gestantes que vivem nas regiões mais afastadas do país, contudo, essa atenção no parto nem sempre – ou quase nunca – está disponível. A mesma lógica vale para acesso a terapias de reabilitação e, em alguns casos, a recursos mínimos para uma vida digna. Nos últimos anos, o Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência intermediou quatro ações na Justiça de famílias de crianças com microcefalia que exigiam de governos estaduais e municipais apoio para pagar fraldas, cadeiras de rodas e até remédios.

O caso mais dramático relatado pelo instituto é o de Brenda, cuja família precisou entrar na Justiça para obrigar o estado do Rio de Janeiro a fornecer o medicamento Neuleptil 1%, necessário para conter as crises de convulsão que acometem a menina. “Sem um dos remédios, ela fica agitada, nervosa, parece que sente dor de cabeça. Como ela não fala, fica mais complicado”, explica Shayenna Brasil, mãe da menina.

A família entrou com a ação em setembro do ano passado, mas o remédio só foi liberado na segunda quinzena de fevereiro. “O Brasil tem uma das melhores leis em termos de atendimento e inclusão de pessoas com deficiência. Mas, na prática, o descaso é muito grande. Tudo fica no âmbito da assistência e da caridade, nunca no da política pública”, diz Teresa Amaral, do IBDPD.

Uma exceção

Por ora, o Ministério da Saúde não tem um levantamento da natureza das unidades de reabilitação que custeia – segundo a assessoria de imprensa do órgão, no momento, há um estudo em curso para mapear esses serviços.

A percepção dos especialistas e familiares de pessoas com microcefalia ouvidos por EXAME.com é de que as instituições filantrópicas, como a APAE, dominam esse tipo de atendimento seja com recursos vindos do governo federal ou provenientes de doações. A Associação Cruz Verde, localizada na Vila Clementino, em São Paulo, é uma delas. Fundada no final da década de 50, a instituição é referência no tratamento de pacientes com paralisia cerebral grave.

Hoje, dispõe de um hospital com 204 leitos para internação. Cada paciente vive na unidade, na maior parte dos casos, até o final da vida e têm à disposição uma série de tratamentos, como hidroterapia, fisioterapia e fonoaudiologia. O custo mensal de internação varia de 5 a 6 mil reais, segundo Marilena Pacios, superintendente da Associação. Os valores são custeados pelo SUS. A instituição mantém ainda um hospital-dia e um ambulatório, bancados com doações.

No momento, não há mais vagas para internação.

“O Brasil hoje não tem infraestrutura para nem para os casos que já existem de paralisia cerebral grave, quanto mais para os que virão”, afirma Marilena. “Todos esses bebês precisam receber uma oportunidade de intervenção precoce para que o comprometimento seja o menor possível”. O efeito colateral de anos de descaso pode ser uma multidão de brasileiros com sequelas ainda mais graves.

(Reportagem originalmente publicada no Portal Exame)

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