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Sonia Guajajara fala da percepção e preparação dos povos indígenas sobre a pandemia da Covid-19

Bruno C. Dias

Nascida Sonia Bone, na terra indígena de Araribóia, no Maranhão, ganhou visibilidade nacional e internacional por sua força e coragem, carregando como sobrenome público a história de seu povo. Sonia Guajajara é professora do ensino fundamental, auxiliar de enfermagem, liderança indígena feminista, nordestina e política, sendo também coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Leia a entrevista abaixo, exclusiva para o Portal Abrasco:

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Abrasco: Da tua vivência, você lembra de alguma epidemia, ou emergência em saúde em que teu povo Guajajara tenha sofrido?
Sonia Guajajara: Epidemias em terras indígenas são mais comuns do que podemos imaginar, foi uma constante no histórico de contato de vários povos. No Maranhão, em especifico, temos muitos relatos de doenças que nos atingiram com consequências gravíssimas, em alguns casos levando ao extermínio de populações inteiras. A varíola e o sarampo foram amplamente utilizados no século XIX como arma biológica contra os índios de várias etnias Timbira, como relataram Darcy Ribeiro e Mércio Gomes. Os Gamela, hoje em processo de resistência, foram dados como exterminados após serem propositalmente infectados ainda no século XVIII. Já no século XX, em 1940, os Krenyê também tiveram que deixar suas terras próximas ao Rio Grajaú e Mearim por um surto de sarampo, fato que quase acabou com aqueles parentes. Nos anos 1990 a malária era um tormento para os parentes Ka’apor e Tembé da Alto Turiaçú, suas terras invadidas por madeireiros e em alguns casos garimpeiros provocou surtos que só foram controlados anos mais tarde já com a implantação do subsistema de saúde.

Abrasco: Como liderança, qual o principal desafio para o subsistema de saúde indígena frente à pandemia?
Sonia Guajajara: O subsistema de saúde indígena embora específico e diferenciado nunca conseguiu garantir um atendimento suficientemente adequado e, para completar, vem sofrendo com as limitações orçamentárias, impostas desde o ano passado, que trouxeram sérias consequências ao funcionamento dos distritos sanitários especiais indígenas DSEIS. Para se ter uma ideia, houve o aumento da mortalidade infantil, fato que coincide com os cortes. Existe uma estrutura complexa de transporte por conta da localização das aldeias, notoriamente de difícil acesso, que precisa ser eficiente para salvar vidas nos casos mais graves, porém essa estrutura ficou vários meses sem funcionar, tendo grave consequências no atendimento de crianças, parturientes em situação de risco e pessoas com doenças crônicas. Pelo que se pôde conhecer até agora, sobre o coronavírus, esta é uma doença de fácil propagação e com tendência de agravamento acelerado do quadro clínico do paciente.

Abrasco: Falhas no sistema de transportes pode causar um enorme custo a vidas ainda mais neste momento?
Sonia Guajajara: Sim. Para nós, indígenas, a distância dos grandes centros pode ser uma vantagem no retardo do contágio, todavia pode ser um problema caso a doença adentre em nossos territórios, pois não temos as estruturas necessárias para atender casos graves, além de que a resistência imunológica pode não aguentar a força do vírus em especial por termos muitos casos de hipertensão, diabetes, doenças respiratórias e tantas outras que nos enquadram duplamente nos grupos de alto risco. Por isso, o subsistema, como parte integrante do SUS, deve ser fortalecido neste momento, com aumento de pessoal, de estrutura de transporte e de insumos para prevenir o contágio.

Abrasco: Como os povos, no geral e por conta própria – entendendo a grande diversidade dos povos indígenas brasileiros – tem entendido esse momento?
Sonia Guajajara: É um momento de muita preocupação e de muita insegurança para toda a humanidade, mais uma doença nova causando grande dano, principalmente àqueles que estão em maior situação de vulnerabilidade. A todas as famílias que tiverem algum ente querido que se foi vítima dessa pandemia, nossa profunda solidariedade!

Chega a ser um paradoxo, ao passo que estamos entre os grupos mais vulneráveis,  estamos entre os mais resistentes, pois estamos construindo as nossas estratégias de nos manter em nossos territórios, ou até mesmo voltar pra eles, no caso dos indígenas em contexto urbano, não permitir a entrada de outras pessoas para além dos profissionais da saúde e. Temos nossos recursos naturais, temos as nossas roças, em dada medida, temos a nossa soberania. Mas é claro, sabemos que tudo tem limite, e tem povos que ainda estão sem territórios,  e muitos territórios com pouca fartura de alimentos em função de vários ilícitos promovidos por invasores, madeireiros, garimpeiros, caçadores, grileiros, empreendimentos… Tudo isso que está acontecendo nos abre ainda mais os olhos sobre a importância dos nossos territórios livres e de uso exclusivo nosso, a importância de demarcar todos os territórios que ainda não estão garantidos.

Abrasco: Entre tantas singularidades, como idosos, mulheres, jovens, povos em áreas urbanas, outros na floresta amazônica isolados, outros sem direito à território, qual ou quais desses mais te preocupam, ou mais preocupam a APIB?
Sonia Guajajara: Todos os povos nos preocupam, mas os povos que não possuem seus territórios garantidos nos preocupam ainda mais. Sem território não há dignidade, não há fartura, não há como se refugiar, se isolar voluntariamente como recomenda as organizações de saúde. Todas as vidas importam, independente de idade e de contexto geográfico, não podemos aceitar essa provocação absurda de que a economia não pode parar por conta de algumas mortes , não se pode colocar o lucro acima da vida. A pandemia nos impõe um foco neste momento, mas a avalanche de ataques continua na pauta deste governo e nos ameaça igualmente.

Abrasco: Os povos indígenas pagaram com a vida a chegada dos exploradores portugueses, pagaram e pagam até hoje com a vida a ganância dos senhores brasileiros, grileiros, posseiros, políticos, pagam com a vida as deficiências do SUS e do subsistema; e agora, vem o coronavírus. Por que os povos indígenas não podem pagar mais ainda essa conta?
Sonia Guajajara: Não se trata mais só de nós. É a humanidade que está em jogo agora. Quando a crise climática se debruçar sobre nossas vidas, ela será mais fatal que o coronavirus. E nossa quarentena terá que ser feita por décadas. Temos a chance de aprender com o que está acontecendo agora e apoiar aqueles que defendem a vida do planeta. Temos conseguido comprovar cientificamente que os territórios e o modo de vida dos povos indígenas se apresentam como uma das últimas alternativas para conter as mudanças climáticas e são responsáveis por 82% da biodiversidade que ainda existe. Sem contar que nossa presença é resistência orgânica contra a ofensiva constante do capital sobre os territórios mais preservados que existem. Então é inteligente e bom para toda humanidade que nossa vida seja preservada. Não há razão para pagarmos mais essa conta.

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