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'É irreal imaginar que a medicina privada possa substituir o SUS' diz Temporão

Em entrevista publicada nesta terça-feira, 23 de maio, pela Carta Capital, José Gomes Temporão, médico sanitarista, ex-ministro da Saúde do primeiro governo Lula, diz que esse tipo de proposta indica um rebaixamento da saúde na agenda pública. É, também, diz Temporão, um contrassenso.

Confira parte da entrevista:

Com o desemprego em alta e com a maioria dos planos de saúde ligados aos empregos, milhares de pessoas estão deixando a saúde particular e passando a depender mais do SUS. “Perde-se o trabalho, perde-se o seguro saúde e a pressão sobre o SUS aumenta. É um paradoxo: no momento em que a proteção do Estado se faz mais premente, propõe-se uma desvinculação de receita”, diz.

CartaCapital: O programa Uma Ponte para o Futuro, do PMDB, defende o fim do percentual de gasto obrigatório para a saúde. Como o senhor avalia essa proposta?

José Gomes Temporão: A proposta é um total contrassenso. O SUS [Sistema Único de Saúde] é um patrimônio da sociedade brasileira, não é um projeto deste ou daquele governo ou partido. É um projeto construído pelos brasileiros ao longo de décadas, com uma política de caráter universal, em defesa da equidade, que está expressa como direito de todos e dever do Estado.

A vinculação é uma luta que durou praticamente duas décadas, desde o início da implantação do SUS até a luta contra o subfinanciamento, que é uma questão de aspecto estrutural, que chamamos a reforma inconclusa do SUS.

Esse é um dos fatores que impede que o Sistema cumpra, com eficiência, sua missão. Com a proposta de desvinculação, o Orçamento do Ministério da Saúde passa a ser negociado dentro do Orçamento Geral da União, ao sabor dos interesses, pressões políticas, e disponibilidade. Isso traz insegurança e fragilização da política de saúde.

E há uma questão mal colocada nessa discussão. Dizem que seria bem vindo aumentar o número de planos e seguros porque isso desoneraria o SUS, mas é falso. A conjuntura não permite o crescimento deles e estamos com o desemprego em alta, sendo que 85% dos planos estão ligados diretamente ao emprego das pessoas.

Perde-se o trabalho, perde-se o seguro saúde e a pressão sobre o SUS aumenta. É um paradoxo: no momento em que a proteção do Estado se faz mais premente, propõe-se uma desvinculação de receita.

Em um país desigual como é o Brasil, com 80% da população dependendo exclusivamente do SUS, é totalmente irreal imaginar cortes ou que uma medicina privada possa competir, complementar ou substituir o sistema público.

Uma das tarefas de todos os cidadãos, mas do ministro principalmente, é abandonar as visões redutoras, empobrecedoras do cuidado à saúde, e lutar por mais recursos para o SUS.

CC: É possível estimar impactos para o SUS?

JGT: O corte sinalizaria claramente um rebaixamento na agenda da questão da saúde pública. Trará um impacto na oferta de serviços e possibilidade de acessos, justamente em uma situação de recessão econômica, em que há mais vulnerabilidade social.

Em termos de números é difícil porque não está claro qual vai ser o impacto no orçamento do ministério. É uma coisa que está escrita no documento do PMDB, mas que ainda não foi explicitada.

Mas estão imediatamente em risco as várias conquistas das últimas décadas em termos de cobertura de acesso, redução da mortalidade infantil, redução da mortalidade por doenças crônicas, implantação de programas como o Farmácia Popular, o SAMU, o programa de AIDS, de transplantes, principalmente onde já se tem o colapso das redes estaduais, como no Rio de Janeiro.

CC: Esses impactos seriam mais graves em qual nível de governo: municipal, estadual ou federal?

JGT: Geral, porque hoje, grosso modo, metade dos gastos do SUS é da União, a outra metade é dividida entre estados e municípios. Imagino que a proposta de desvinculação seja nos três níveis, então há um impacto muito grande. É extremamente preocupante.

CC: Considerando o tom das últimas declarações de Barros, o Mais Médicos também pode ser prejudicado?

JGT: Com o programa, milhões de brasileiros que não tinham a garantia da presença permanente do médico em suas comunidades agora têm. Então é claro que poderia ser impactado por essa restrição de recursos.

Estamos preocupados com isso também porque nos últimos dois anos o governo federal veio incluindo, proporcionalmente, mais médicos brasileiros do que estrangeiros e já tivemos um impacto muito grande.

CC: O maior doador individual da campanha de Ricardo Barros para deputado federal em 2014 foi Elon Gomes de Almeida, sócio do Grupo Aliança, de planos de saúde. Como o senhor vê essa relação? O ministro fica vulnerável às exigências dos planos?

JGT: Esse é um problema da política brasileira que atinge todo o governo em diferentes níveis e gera conflitos de interesse. Empresas que financiam parlamentares ou partidos buscam lá na frente algum tipo de compensação ou retorno. Isso é muito danoso para a política do Brasil.

Agora em outubro teremos pela primeira vez uma campanha para prefeitos e vereadores sem esse financiamento, que foi uma decisão do Supremo muito importante, mas é só um detalhe dentro de um processo mais amplo de reforma política que o Brasil demanda. Teremos de enfrentar essa discussão de uma reforma profunda que dê qualidade à democracia brasileira.

CC: O ministro também afirmou que não vai controlar a qualidade dos planos de saúde, segundo ele, porque isso não cabe ao Ministério da Saúde. Qual a importância de essa pasta controlar a qualidade?

JGT: É muito importante, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, ANS, é uma agência regulatória a quem cabe, primordialmente, o controle da qualidade da saúde, e ela é vinculada e supervisionada por meio de um contrato de gestão com o Ministério da Saúde.

E o ministro é responsável pela saúde de todos os brasileiros, não apenas de alguns ou da maioria. Mesmo os que estão cobertos pelos planos e seguros para suas necessidades de consulta, exames e internações, devem, sim, ser objeto de preocupação do ministro, é uma responsabilidade indelegável.

Está se colocando uma dicotomia que é falsa, porque todos os brasileiros usam o sistema público de saúde. Seja para transplante, doenças crônicas, medicamentos de alto custo, vacinas, vigilância sanitária e epidemiológica, para atendimento de emergência, entre outros. Uma política nacional de saúde, vista com olhar integrador e global, deve dar conta desses dois subsetores: o público e o privado.

CC: Na semana passada, Marisa Lobo, psicóloga cassada por defender a ‘cura gay’, publicou uma foto ao lado de Barros dizendo que o alertou sobre ideologia de gênero na área de saúde mental e da educação. Segundo ela, ele teria respondido que isso já acabou e que “o MEC agora é do DEM”. Essa semana, Barros disse que quer debater as questões sobre o aborto com as igrejas. Como o senhor vê isso?

JGT: Fiquei bastante preocupado quando disse que vai chamar as igrejas, que lutam permanentemente contra os direitos das mulheres e defende o obscurantismo, a exclusão, e o preconceito. Seria muito mais adequado se chamassem as mulheres para discutir.

Basta olhar para o mundo. São questões que, inexoravelmente, através de um processo de construção de uma consciência politica em saúde, vão romper com a visão retrógrada. A questão são as pedras que vamos encontrar no caminho até uma sociedade mais progressista, e parece que, nesse caminho que temos hoje, muitos obstáculos se colocarão.

CC: Em entrevista ao Estadão, o ministro disse que o aborto é um problema de saúde pública como é o crack. Essa comparação é possível de ser feita?

JGT: São dois mundos completamente distintos. Há o problema das drogas ditas ilícitas, que matam muito menos do que as drogas legais, como o álcool, e que tem toda uma questão ligada à violência urbana, de extermínio da juventude negra, principalmente pobre.

A situação é tão paradoxal que até Fernando Henrique Cardoso se coloca a favor de uma revisão profunda da politica de combate às drogas. Esse é o mundo: complexo, caracterizado por uma postura conservadora da sociedade, que não quer entender que a repressão ao consumo de drogas por meio da policia é uma guerra perdida.

Muitos países, como Uruguai e Portugal, recentemente mudaram suas legislações e a violência relacionada às drogas caiu muito. Então o Brasil vai ter que enfrentar essa discussão que é delicada, mas que não tem nada a ver com a questão do direito das mulheres que, por sua vez, não tem a ver com Estado, igreja, religião.

Aborto significa o direito delas ao seu corpo, e sua autonomia de poder decidir se quer ou não, em uma determinada situação, levar uma gravidez adiante. São dois mundos totalmente separados.

CC: Barros foi citado na lista da Odebrecht apreendida pela PF em março deste ano. Ele perde credibilidade por isso?

JGT: Nesse governo interino uma série de políticos estão citados em escândalos ou são investigados por órgãos da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Diria que não é algo isolado do ministro.

Esse governo deixa uma marca de interrogação na sociedade, afinal foi afastada uma presidenta de conduta ilibada, que não sofre nenhum processo de investigação, eleita pela maioria dos brasileiros, para se empossar um governo que já tem um número significante de ministros cuja conduta está sendo questionada. É certamente uma questão que fragiliza o governo.

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