Nem economia, nem vida, nem Estado. A relação entre economia e sociedade tem sido tratada de modo muito limitado no debate nacional e internacional. Na Fiocruz, num programa de pesquisa desenvolvido há duas décadas, refutamos a polarização binária entre economia e vida que, na pandemia da Covid-19, mostra a sua face perversa. Simultaneamente, vivemos num país que não cresce, tem um Estado desestruturado e em que a violência social se manifesta contra pobres, pretos e excluídos dos mínimos direitos de cidadania, como revela a barbárie cometida contra o imigrante congolês negro e pobre.
Na saúde, enquanto ficam evidentes para o mundo os frutos das tecnologias das vacinas, vemos a transmissão nos transportes públicos, as casas abarrotadas em espaços sem condições mínimas, a fome de 20 milhões e o desemprego e subemprego que atingem mais de 30 milhões. A expectativa de vida varia em mais de 20 anos, dependendo das condições sociais. A Constituição e os direitos elementares à vida são rasgados a cada dia.
Em meio a este drama nacional e global, é possível superar a falsa dicotomia entre economia e vida social e planetária. Com a Covid-19, atualizamos as análises do déficit comercial em saúde, que, avisamos há décadas, deixaria o SUS de joelhos frente a qualquer emergência de saúde pública. Em 2021, batemos o recorde histórico da dependência de importações no Complexo da Saúde, atingindo US$ 20 bilhões. Recorde na economia e na ameaça à vida!
A saúde passa a liderar o déficit comercial do país se somarmos os produtos eletrônicos. É como se um orçamento inteiro do Ministério da Saúde fosse gasto com importações sem gerar um emprego, uma renda, um incentivo para um empreendimento local e ainda sob a chantagem da disputa mercantilista global pelos produtos, que sempre deixam a vida “a ver navios”.
São mais de 630 mil mortes pela Covid-19, mas não podemos deixar de olhar os 625 mil novos casos de câncer por ano, de pessoas desassistidas, no contexto de uma tragédia sanitária em meio a uma pandemia. Tendo a vida social e no planeta como finalidade última da economia, a saúde oferece a possibilidade de uma saída estrutural em torno de um novo projeto de desenvolvimento.
A saúde está para o século XXI como estiveram o aço, o petróleo e o automóvel para o século XX, permitindo um desenvolvimento que atenda às pessoas e seja sustentável. Está na hora de mudar o triste paradigma dominante. Vida pode gerar renda, emprego, investimento e um novo padrão que, em vez de ser capturado por interesses espúrios de um protecionismo sem resultados, sustente um pacto político, social e democrático em defesa da economia nacional, das pessoas e do planeta.
É possível fazer. A experiência da Fiocruz oferece evidências de que a mesma ousadia adotada para encomendar uma vacina que não existia pode ser ampliada para a superação da cisão entre economia e sociedade; uma prova em forma de doses, de vacina e de compromisso com a economia.
*Carlos Gadelha é coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e associado Abrasco. Publicado originalmente no jornal O Globo – clique e acesse a publicação original