Os organizadores da 15ª Conferência Nacional de Saúde e o jornal Le Monde Diplomatique Brasil prepararam um material especial para ser divulgado durante o encontro, em Brasilia. A Abrasco participou com dois textos do encarte intitulado ‘Em defesa do SUS Universal e Igualitário’: ‘Repensando a gestão pública do SUS’ de autoria do presidente da Associação Gastão Wagner e também ‘(Sub)financiamento do SUS: o Brasil na contramão dos sistemas universais’ escrito pelo vice-presidente da Abrasco, José Sestelo.
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Ao todo, 14 nomes da Saúde Coletiva participaram da publicação, entre eles: João Palma; Haroldo Pontes; Marisilda Silva; Maria do Socorro de Souza; Amélia Cohn; Áquilas Mendes; Emerson Elias Merhy; Leonardo Avritzer; João Gabbardo dos Reis; Fausto Pereira dos Santos; Mauro Guimarães Junqueira e Ana Maria Costa.
Sobre o SUS, a sua institucionalidade e a regionalização da gestão da Saúde, Gastão Wagner escreveu:
Repensando a gestão pública do SUS
Ao longo de seus 25 anos de existência, o SUS se consolidou como uma política pública indispensável ao bem-estar dos brasileiros. Entretanto, o sistema convive também com uma série de deficiências crônicas que comprometem sua efetividade. Seu financiamento é inadequado – estima-se que deveríamos dobrar o valor; há igualmente desacertos no modo como o SUS vem sendo gerenciado e, além do mais, não se logrou construir uma
política de pessoal razoável ao longo de todos esses anos.
Em relação à gestão, identificam-se três impasses a serem superados: o caráter patrimonialista e clientelista da gestão pública, o modelo federativo de base municipal que tem dificultado a governança do SUS e a não realização de uma radical reforma da gestão pú- blica depois do final da ditadura militar.
A dependência do SUS do Poder Executivo e, portanto, de negociações orientadas por interesses de partidos políticos e de grupos corporativos
tem comprometido seu planejamento e sua gestão. Todos os cargos de coordenação e de chefia dos milhares de serviços de saúde e da centena de programas são de livre provimento de prefeitos, governadores e do governo federal. Com o acirramento da disputa pelo poder nos últimos anos, a lógica do “presidencialismo de coalizão” tem se sobreposto à seleção por competência e experiência em saúde e em gestão pública. Elaborar uma lei ou uma norma que restrinjam os cargos de confiança aos secretários de Saúde de municípios e estados, ao ministro e a suas assessorias diretas não custaria dinheiro e poderia proteger o SUS da politicagem e da corrupção. Em outros países, as funções de coordenação e de chefia estão ligadas às carreiras dos sistemas de saúde e dependem de concursos internos.
Além disso, o SUS vem se constituindo de maneira fragmentada, com um pequeno grau de integração entre os diferentes programas e serviços, o que tem comprometido sua governabilidade. Em todos os sistemas públicos e nacionais de saúde existentes há comando único da rede, e a menor unidade descentralizada são as regiões de saúde. Os países são divididos em regiões, sendo cada uma responsável pelo atendimento integral de algo entre 1 milhão e 2 milhões de pessoas. Nessas regiões funcionam redes com atenção básica, hospitais, serviços especializados, urgência e saúde coletiva. No Brasil, optou-se pela descentralização para os municípios, deixando vagas as atribuições dos estados e da União. Essa ordenação permitiu a expansão da cobertura da atenção básica (saúde da família), mas produziu uma importante desarticulação entre as políticas e as prioridades da gestão federal, dos estados e dos municípios.
A descontinuidade e o comprometimento da sustentabilidade dos projetos não impediram o bom desempenho de alguns programas verticais (introduzidos do Ministério para baixo), como foram os casos da política contra a aids e do Programa Nacional de Vacinação. No entanto, foram responsável pelo descontrole da epidemia de dengue e da infestação de quase todo o território nacional pelo mosquito Aedes aegypti. Em todas as cidades brasileiras convivem pelo menos dois comandos da rede de saúde: um administrado pelo poder municipal, outro pelos governos estaduais.
Esses polos, em geral, funcionam quase sem integração e, mais grave, de maneira competitiva em virtude da predominância da disputa político-partidária sobre as necessidades de saúde. Essa separação institucional repercute na integralidade do atendimento ao produzir uma desarticulação abismal entre os serviços de média e alta complexidade – hospitais e ambulatórios especializados –, normalmente sob a gestão dos estados, e a rede de unidades básicas de saúde, administradas pelos municípios. Grande parte das filas e retardo no acesso a cuidados complexos resulta da insuficiência da oferta de serviços pelo SUS, mas outra parte importante é decorrente dessa desintegração e do encaminhamento burocrático que não explicita a gravidade e prioridade dos casos.
Essa lógica serviu para que Ministério da Saúde e, particularmente, as administrações estaduais ampliassem a responsabilidade sanitária das cidades para além do orçamento repassado e, mais grave, delegaram aos municípios encargos com os quais é impossível arcar apenas no nível local. O Mais Médicos veio para confirmar essa possibilidade. Caberia aos municípios organizar e estender a atenção básica/saúde da família para mais de 80% da população brasileira. Problemas com a gestão de pessoal (médicos, sobretudo), dificuldades operacionais e de gestão e, principalmente, impossibilidade de garantir, em cada cidade, a continuidade do tratamento em vários casos que dependem de especialidades e de hospitais vêm comprometendo a consolidação do SUS. Isso obrigou o Ministério da Saúde a intervir diretamente até mesmo na atenção básica por meio do Mais Médicos, com a contratação de pessoal, formação e o compartilhamento da gestão local das redes.
Em relação à reforma do Estado e à gestão pública da saúde há alguns caminhos possíveis. O principal, em minha opinião, seria a constituição de uma autarquia especial, o SUS/Brasil, organizada, de forma tripartite, pelos municípios, estados e União. Não a federalização e centralização do sistema, mas a constituição de um sistema tripartite e unificado de modo que pudéssemos responder a alguns dos dilemas contemporâneos de modo preciso: – De quem é este hospital? É nosso, do SUS/Brasil, sob gestão da região X; – Quem é responsável pelo controle da epidemia de dengue? O SUS/Brasil, comandado pelas regiões Y etc. A base dessa autarquia seriam as regiões de saúde, comandadas por conselhos tripartites, que indicariam, em consenso, um secretário regional com base em experiência em saúde pública.
Essa autarquia criaria carreiras multiprofissionais para as grandes áreas temáticas do SUS: atenção básica, hospitais e serviços especializados, vigilância em saúde/saúde coletiva, apoio administrativo, entre outras. Os atuais servidores poderiam migrar para essa nova carreira. O SUS é tão importante que vale a pena ousar para assegurar sua viabilidade e sustentabilidade.