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Efeito Pandora – por Ligia Bahia

Vilma Reis

Artigo da professora Ligia Bahia, membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco foi publicado no jornal O Globo, nesta segunda-feira, dia 25 de setembro. Ligia fala sobre a liberação do capital estrangeiro na saúde, por meio da Medida Provisória 656/2014 e posterior Lei 13.097/2015, obtida mediante propina paga por empresas de planos de saúde e hospitais privados, conforme notícia destacada nos meios de comunicação. A Abrasco vai pedir nulidade da lei que autoriza o capital estrangeiro na Saúde.

Confira o artigo:

A presunção de conhecer a fisionomia de empresários e banqueiros do setor de saúde foi abalada pela acusação de compra da lei para autorização da atuação de empresas e capitais estrangeiros. Os perfis revelados pelas denúncias de negociações de preço com lideranças do Congresso Nacional não se ajustam aos da autodivulgação de personas intrépidas. Encomendar e receber um regramento legal oportuno e favorável a negócios específicos requer habilidades especiais e convicções singulares sobre a irrelevância da democracia.

Entretanto, a imersão precipitada em trajetórias pessoais pode enquadrar desvios em uma compacta certeza sobre responsabilidades individualizadas, impossibilitando o reconhecimento dos consentimentos passivos à corrupção. A vaquinha, que teria sido realizada entre grandes grupos econômicos, sugere a participação em um processo obscuro e nada transparente.

A permissão para o ingresso do capital estrangeiro na saúde integrou as plataformas de entidades empresariais, lideradas por grandes empresas, que financiaram as eleições de presidente, governadores e parlamentares. Porém, políticos precisam de votos. A maioria dos eleitores aprova as políticas sociais e precisa do SUS. O pleito empresarial deveria ser filtrado, confrontado com demandas de outros segmentos sociais. As expectativas de entidades da saúde pública sobre a cooperação internacional se concentravam na participação do país na produção de insumos para a saúde que contribuíssem para a sustentabilidade do SUS. Esperava-se um saudável debate sobre investimentos que poderiam conjugar economia com saúde. Fundos de investimentos e empresas internacionais estavam plenamente integrados no setor e declaravam propensão à expansão.

Esforços poderiam ser direcionados para evitar que a preferência pelos retornos elevados de determinadas ações especializadas, fusões e aquisições e volatilidade dos capitais se condensasse como vetor contrário à ampliação da oferta e acesso para todos. Mas o modo a jato de aprovação da Lei 13.097/2015 sustou as polêmicas sobre o tema. Determinados setores comemoraram o suposto triunfo da modernidade sobre a antiquada proibição à entrada de ativos internacionais. Outros tentaram compreender, sem sucesso, a ocorrência de ultrapassagens nos ritos legislativos em um governo que nomeou um sanitarista para o Ministério da Saúde. Possivelmente, a combinação de satisfação e estranheza contribuiu para que o assunto ficasse de lado. Enquanto isso, a caravana passou e retornou. Medidas como o refinanciamento de dívidas tributárias e não tributárias e o afrouxamento da cobrança de multas foram absorvidas pelo fluxo permanente de desonerações a empresas.

Com a recessão e cortes nos orçamentos públicos, o financiamento nacional retornou à pauta. Empresas de planos de saúde voltaram-se para soluções internas. (Mais localizado no coração do subdesenvolvimento que um plano barato, complementado pelo SUS, só mesmo o método de sua aprovação). E a situação de fechamento de serviços, especialmente no Rio de Janeiro, bem como ameaças concretas ao SUS, ocupou corações e mentes daqueles envolvidos com o setor público. O alento veio do STF, que recusou o truque de contabilidade que incluiria no orçamento as receitas adicionais da exploração do gás e petróleo. Porém, a rota para transações privado-públicas permaneceu desimpedida. A condenação de um ex-secretário de Saúde, quase ministro, por crimes contra o patrimônio público, não interrompeu as trocas de cargos governamentais por benesses particulares.

Abaixo da tênue linha que protege o fundo público destinado diretamente ao SUS, ficou valendo tudo. O desprezo pelas premonições sobre venalidades e resultados de pesquisa, considerados como “opiniões de gente que olha pelo retrovisor”, incentivaram o lançamento da recente falsa inovação: o plano popular barato sem garantia de cobertura. Conteúdos e práticas retrógrados, se não reacionários, que não podem ser explicitados plenamente, são obsoletos ao cubo. Mas continuam sendo disseminados em fóruns governamentais e empresariais como sofisticadas rupturas paradigmáticas. A cena pública permanece repleta de discursos de exaltação do renascimento das virtudes do setor privado contra a ineficiência do SUS.

Por enquanto, em meio a tantos problemas e tamanha impopularidade, o casamento do público com o privado sem separação de bens tornou-se um elemento a mais na paisagem caótica. No entanto, em 2018, os candidatos terão que dizer o que fazer com a saúde. Recomendar a compra de planos privados, por mais baratos que sejam — em um país cuja renda per capita média em 2016 foi de R$ 1.226 e, no Maranhão, R$ 575 — atrairá votos? As acusações sobre corrupção na saúde praticadas por empresários privados foram desmentidas a priori, mas são plausíveis, requerem esclarecimentos. A compra de leis equaciona os suportes públicos para o setor privado como parte do problema, e não como solução para a saúde. Consequentemente, o que pode caducar é a confortável e velhaca desqualificação do SUS, como sorvedouro perdulário e central única de atos ilícitos, repetida como mantra para justificar a privatização.

 

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