No mês de abril, em alusão ao Dia Mundial da Saúde, diversas organizações sociais e entidades ligadas ao movimento negro lançaram dois importantes manifestos conclamando a sociedade brasileira em geral e a classe política em particular a debater e pautar as questões de saúde da população negra nas eleições nacionais deste ano. A Carta à Sociedade apresenta a PNSIPN (Política Nacional de Saúde Integral da População Negra), reitera a necessidade de um amplo compromisso nacional com a construção do SUS (Sistema Único de Saúde), público, gratuito, equânime, integral e universal, e a defesa da saúde como um direito humano, básico e fundamental, ancorado na Carta Magna de 1988. A outra carta conclama a classe política, os candidatos a todos os cargos em disputa este ano, para incluir em seus programas a temática da SPN (Saúde da População Negra), como forma de firmar compromisso explícito com a maioria da população, que se declara preta e parda no país, e que enfrenta as piores condições socioeconômicas, agravadas nos últimos anos pela pandemia da covid-19. Ambas estão abertas a adesões.
Ao longo do processo de redemocratização, os movimentos sociais têm pressionado o governo brasileiro a criar políticas para diminuir as desigualdades nas condições de saúde e adoecimento da população negra. Em 2009, foi promulgada a PNSIPN, com o objetivo de garantir preceitos constitucionais como a promoção do bem estar de todos os cidadãos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, 1988, art. 3.º, inc. IV). A PNSIPN, reconhece oficialmente o racismo estrutural e as desigualdades étnico-raciais como determinantes sociais das condições de saúde prevalentes no país, e visa promover a equidade através de ações de cuidado, atenção, promoção à saúde e prevenção de doenças para a população negra. A política tem também o propósito de combater a discriminação étnico-racial em todos os serviços e atendimentos oferecidos no SUS. Porém, mais de uma década após ser oficializada, praticamente nada foi feito para que ela funcione como previsto. A política nunca foi implementada regularmente nos estados e municípios, e a maioria dos trabalhadores e gestores do SUS a desconhece e/ou não tem compromisso com sua implantação. Enquanto isso, a população negra é quem mais morre precocemente por causas evitáveis, tem menor expectativa e pior qualidade de vida.
Diante da enorme disparidade étnico-racial prevalente no país, é fundamental que os partidos políticos e seus candidatos e candidatas aos governos federal, estaduais e ao legislativo, em suas plataformas e programas de gestão, assumam publicamente o compromisso de lutar contra o racismo institucional e pelo conjunto das políticas e ações afirmativas. É urgente que a sociedade brasileira garanta a efetivação do direito humano à saúde integral, universal e equânime, considerando o impacto da promoção, prevenção, atenção, tratamento e recuperação de doenças, riscos e agravos transmissíveis e não-transmissíveis na população negra, conforme as diretrizes nacionais estabelecidas pela portaria n. 992/2009/MS e o Estatuto da Igualdade Racial.
Do ponto de vista programático é fundamental considerar o SUS como política de Estado, garantir à população negra o acesso aos equipamentos de saúde, a inclusão do tema da SPN nos processos de formação e educação permanente dos profissionais, a importância da utilização dos quesitos raça/cor e população tradicional na coleta e produção de informações epidemiológicas para a definição de prioridades e intervenções sócio-sanitárias, e a implementação plena da Estratégia Saúde da Família, da ESF Quilombola, e das equipes multiprofissionais de saúde nos territórios e regiões mais vulnerabilizadas, onde, não por acaso, a população negra é a maioria.
É importante ainda reconhecer que o racismo ambiental e a crise climática se entrecruzam e desafiam diferencialmente a capacidade de resiliência, de articulação e potenciais de luta por justiça e acesso à direitos. Atualmente, os povos de comunidades tradicionais e quilombolas veem seus territórios ameaçados pelas mudanças climáticas e por empreendimentos que esgotam e contaminam o solo e os rios, promovem desapropriações, impedem acesso a direitos sociais, como água potável e moradia digna, inviabilizam estratégias locais de sobrevivência e a constituição de redes alternativas de solidariedade, como a agricultura familiar.
O direito de envelhecer com saúde é também uma pauta importante para a população negra. Como as pessoas pretas e pardas sofrem mais com doenças e agravos evitáveis e tratáveis, a rede de cuidados deve ter maior capilaridade, principalmente nos bairros e zonas periféricas e rurais, para promover a inclusão e acesso facilitados aos serviços, a finalização de diagnósticos e a conclusão de tratamentos. De acordo com os manifestos, é urgente que a linha de cuidado para a pessoa idosa considere as particularidades territoriais e étnico-raciais, as demandas de familiares e de cuidadores de pessoas com dependência funcional, e que o Estado promova ações de aprendizagem ao longo da vida e trabalho digno, potentes indutores da saúde física, mental e emocional de pessoas idosas e seus familiares.
As demandas programáticas aos candidatos(as) incluem, ainda, a PSR (população em situação de rua), majoritariamente negra, sem direito à cidade nos espaços urbanos e sem direito à terra nos territórios rurais. Há escassez de informações sobre a PSR no Brasil e não está prevista sua inclusão no censo demográfico de 2022 do IBGE. É preciso fortalecer as redes assistenciais e de saúde, em parceria com as organizações sociais locais, para o atendimento à PSR, visando o desenvolvimento de ações de reparação social, acesso à alimentação, moradia e trabalho dignos para a promoção da cidadania.
Não é mais possível ignorar as disparidades étnico-raciais no debate eleitoral. É preciso falar sobre os desafios à SPN no Brasil. Considerando a extrema adversidade do contexto político e econômico atual, a grande diversidade e a enorme desigualdade da população brasileira, sobretudo dos grupos mais vulnerabilizados (indígenas, negros, quilombolas, ribeirinhos, LGBTQI+, periféricos, dos assentamentos, das águas e das florestas, pessoas com deficiência ou com doenças crônicas e patologias intratáveis, em situação de rua, o povo de santo e demais populações em exclusão social), o movimento negro chama as(os) candidatas(os) a assinar a carta e a inserir em seus programas eleitorais o compromisso com a defesa do SUS, a implementação da PNSIPN, o financiamento adequado e suficiente para a saúde pública e para as políticas e ações afirmativas, a promoção da equidade e da intersetorialidade nas políticas públicas, a garantia da participação e do controle social democráticos, a proteção à saúde das mulheres, das trabalhadoras e trabalhadores, bem como a revogação da Emenda Constitucional 95/2016, afim de construir um país mais justo, solidário e sustentável para as próximas gerações.
Hilton P. Silva é médico e bioantropólogo, membro da Coordenação do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, da Sessão Temática de Saúde da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) e da Aliança Pró-Saúde da População Negra.
Celso Ricardo Monteiro pertence a Sociedade Ketú Asé Igbin de Ouro e coordena a Aliança Pró-Saúde da População Negra.
Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas, em 10/05/2022 – Acesse a publicação original