
Excelentíssimo Senhor Eduardo Paes,
No dia 12 de junho de 2025, foi sancionada a Lei nº. 8936, que dispõe sobre a “obrigatoriedade de afixação de cartazes ou placas informativas acerca do aborto nas unidades hospitalares, instituições de saúde, clínicas de planejamento familiar, e outros estabelecimentos relacionados à saúde, no âmbito do Município”.
Lamentavelmente, a referida Lei é mais um instrumento do Estado brasileiro a produzir desinformação generalizada na população, além de coibir direitos reprodutivos de meninas, adolescentes, mulheres e pessoas que gestam, garantidos desde 1940. Especialmente na última década, estamos assistindo a uma perversa união entre poder executivo, legislativo e judiciário na criação de inúmeras barreiras para o acesso ao aborto legal no país, com forte influência de um certo fundamentalismo religioso que coloca a capacidade reprodutiva feminina no cerne das negociatas políticas. Esse mesmo Estado que não garante acesso a planejamento reprodutivo, para aquelas mulheres que querem ou não engravidar.
Segundo a Lei nº. 8936/2025, as placas ou cartazes devem conter os seguintes dizeres: “Aborto pode acarretar consequências como infertilidade, problemas psicológicos, infecções e até óbito.”; “Você sabia que o nascituro é descartado como lixo hospitalar?”; “Você tem direito a doar o bebê de forma sigilosa. Há apoio e solidariedade disponíveis para você. Dê uma chance à vida!”.
Há uma proposital mistura de termos e ocultação de informações que produzem um contexto de alta moralização da prática da interrupção de uma gestação. Trata-se de má fé quando se menciona apenas a palavra “aborto”, sem especificar que o aborto ilegal e inseguro é uma das causas de morte materna no país, enquanto que o aborto legal é um procedimento seis vezes mais seguro do que levar uma gestação a termo.
A utilização do termo nascituro e o sentido a ele atribuído está em franca disputa com entidades religiosas, com inúmeras tentativas – sobretudo no plano legislativo – de atribuir proteção jurídica a qualquer material genético desde a concepção. A poderosa construção imagética de restos de abortamento à condição de lixo representa um apelo afetivo, sensorial e (i)moral para o senso comum/população em geral, sem qualificar a informação sobre o que é “lixo hospitalar”. Por fim, a entrega de bebês em adoção tem sido utilizada como mote em várias decisões judiciais para impedir o acesso ao aborto legal. A frase “espera só mais um pouquinho”, dita por uma juíza de Santa Cataria a uma menina gestante de 12 anos, sintetiza o que vem acontecendo no judiciário brasileiro no sentido de impedir a interrupção legal da gestação e produzir caminhos de aceleração para Entrega Voluntária, como se levar uma gravidez a termo e entregar o recém-nascido para adoção fosse equivalente ao aborto legal.
O acesso ao aborto legal é também um direito para mulheres, adolescentes e pessoas que gestam, com comorbidades e risco obstétrico elevado. Nesses casos, a manutenção de uma gravidez indesejada ou não planejada pode levar a morbidades maternas graves/near miss e/ou mortes maternas evitáveis. Vale ressaltar que a mortes maternas obstétricas indiretas tem crescido no Brasil, em especial aquelas por doenças cardiovasculares (preexistentes), e que as “soluções” dispostas na referida Lei ignoram esse direito.
A atual gestão da cidade do Rio de Janeiro parece desconhecer as robustas evidências científicas de que o aborto ilegal e as inúmeras e crescentes barreiras de acesso ao aborto legal é o que acarreta “consequências como infertilidade, problemas psicológicos, infecções e até óbito”. São mulheres, adolescentes e meninas em situação de alta vulnerabilidade social e suas famílias que têm sofrido consequências pela falta de informação e de assistência adequadas pelo poder público.
Informamos que diante da gravidade desta Lei e seus desdobramentos, que as representações de mulheres/entidades de direitos humanos estão preparando uma ação jurídica a ser encaminhada à Corte Superior.
Consideramos que o Excelentíssimo Prefeito faria uma grande contribuição à sociedade e à saúde pública, se, em vez dessa Lei nº. 8936, fosse definido como prioridade que as unidades de saúde deveriam informar sobre os três permissivos legais por meio dos quais mulheres e pessoas gestantes têm o direito de acessar o aborto legal, bem como os locais em que tal atendimento é realizado no município do Rio de Janeiro. E assim tentar garantir os direitos sexuais e reprodutivos de meninas, adolescentes, mulheres e pessoas que gestam na manutenção e formulação de políticas públicas.
Atenciosamente,
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
Centro Brasileiro De Estudos De Saúde (CEBES)
Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABRES)
Rede Unida