Assistimos nos últimos dias a uma grande mobilização social em torno do caráter público do Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, como resposta ao decreto 10.530 da Presidência da República, revogado 2 dias depois de sua publicação.
Para alguns pode ter parecido somente mais uma medida não muito pensada. Para outros, o fato de estar escrito “estudos para estruturação de projetos piloto” seria um atenuante. No entanto, as entidades da Saúde e do controle social, que lutam pela efetivação do direito à saúde e acompanham ações governamentais e empresariais do setor, sabem os elementos e interesses em questão.
O decreto 10.530 deve ser observado na perspectiva de um processo em curso muito arriscado. Desde a chegada de Michel Temer à Presidência até o atual momento, passando pela eleição de Jair Bolsonaro, uma série de ajustes, imposições e deliberações trata de uma mesma questão: o futuro do SUS.
Preocupa-nos pensar que o grande motor foi achar uma forma para que o orçamento do SUS, já tão historicamente subfinanciado, pudesse ficar dentro dos limites impostos pela Emenda Constitucional 95, que congela por 20 anos o gasto público com saúde.
Não há dúvida que essa estratégia se aproveita do fato de ter sido o SUS que salvou o País de uma tragédia sanitária ainda maior do que a que estamos vivendo nestes 7 meses. A busca de eficiência com a justificativa de que qualquer medida apresentada visa a superar o “atraso do setor público” é, repetidamente, uma ilusão.
Há interesse em aumentar a eficiência de planos de saúde a partir do modelo da atenção básica desempenhado pela Estratégia Saúde da Família (ESF). Promover a fusão do que é ineficiente com o que tem sido o principal pilar do cuidado à saúde de brasileiras e brasileiros é a maneira como este governo pretende reverter os fundos públicos ao setor privado.
A experiência de novos modelos de atenção baseados em parcerias público-privadas, com raras exceções, tem se mostrado um grande fracasso em todo o País.
Há muito a fazer para vencer os desafios e entraves que ameaçam o direito universal à saúde; e a sociedade precisa entender que fortalecer o SUS não passa pela privatização da atenção primária à saúde.
Muito pelo contrário, temos que assegurar que seu financiamento seja ampliado, seu modelo mantido e seus profissionais valorizados, sem serem submetidos a vínculos precarizados de trabalho. Mais do que nunca agora, para enfrentar a pandemia de covid-19, precisamos de uma atenção primária forte.
Por estar atenta a esse conjunto de movimentos, por seu papel histórico e como contribuição ao debate eleitoral, a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) lançou nesta semana o documento Fortalecer o SUS, em defesa da democracia e da vida. As propostas elencadas reúnem princípios e evidências que regem outros bons sistemas de saúde no mundo e estão respaldadas por inúmeros estudos nacionais recentes e por experiências bem-sucedidas em diversos locais do País.
Colocamos, assim, o nosso conhecimento científico e a nossa vivência acumulada ao longo de anos em defesa dos direitos sociais da vida e da democracia. O documento está disponível neste link.
*Gulnar Azevedo e Silva é presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO – e professora titular do Instituto de Medicina Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) – artigo publicado inicialmente no HuffPost Brasil, em 31/10/2020 – clique e acesse a publicação original.