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Em 2025, o Brasil enfrentará um contexto sanitário desafiador, marcado pela persistência de problemas agravados por questões ambientais, desigualdades sociais e disputas políticas. Além disso, 2025 será o ano da COP 30, que ocorrerá em Belém, no Pará, e também do 14º Abrascão, o maior congresso da Abrasco.
Para entender melhor esse cenário e o posicionamento da Abrasco diante dos desafios de 2025, conversamos com Rômulo Paes de Sousa, presidente da associação. Nesta entrevista, ele compartilha sua visão sobre o papel da Abrasco em um ano complexo, destacando a necessidade de adaptação aos novos fenômenos sanitários e a busca por soluções sustentáveis para o país. Rômulo também aborda a importância de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS) e os desafios políticos que afetam as políticas de saúde pública no Brasil.
Comunicação Abrasco: para entendermos melhor o panorama de 2025, é fundamental refletir sobre o ano de 2024. Como você avaliaria a situação da saúde pública no Brasil em 2024 e a atuação da Abrasco nesse contexto?
Rômulo: O ano de 2024 foi um marco histórico no que diz respeito à forma como lidamos com os grandes problemas sanitários no Brasil. O primeiro aspecto marcante foi o componente ambiental. A dimensão ambiental sempre esteve presente em nossos modelos teóricos, mas, enquanto fenômenos sanitários, ela acumulou um impacto significativo em 2024, o que revela, inclusive, nossa limitação no enfrentamento desses fenômenos. Foram diversos episódios: as enchentes no Rio Grande do Sul, as secas na Amazônia, os incêndios de grande escala em diversos estados do Brasil Além disso, a dimensão ambiental também teve grande influência na dengue. Tudo isso nos coloca diante da necessidade clara de fazermos um “aggiornamento” não apenas na nossa lógica de vigilância, mas também nas nossas estratégias de enfrentamento desses fenômenos. Esses desafios exigem que tenhamos um modelo de atenção à saúde suficientemente flexível, com a capacidade de deslocar recursos de forma acelerada para enfrentá-los. O aspecto mais marcante disso tudo é que esses fenômenos tendem a se repetir em 2025.
O segundo aspecto é que houve um processo de regularização das ações do governo federal. Isso é importante porque passamos por um período de profunda desorganização no governo anterior, seguido de um esforço de reorganização em 2023, e em 2024, observamos uma relação mais normalizada entre as diversas instâncias do SUS. A recuperação da funcionalidade dos programas, do serviço público e da autoridade sanitária federal foi um avanço. Tivemos uma melhor interação entre os níveis municipal, estadual e federal. Além disso, o Brasil conseguiu recuperar sua participação na governança global da saúde, tanto por meio do governo federal quanto por meio do movimento social. A sociedade civil brasileira teve um papel mais fluente nas ações globais de saúde.
A recuperação da funcionalidade do SUS e de vários programas de saúde também trouxe resultados significativos, como a melhoria da cobertura vacinal, embora tenhamos enfrentado problemas com o abastecimento de algumas vacinas e com o atendimento em algumas áreas. Em síntese, em 2024, o contexto sanitário se tornou mais complexo, mas o Brasil apresentou uma governança federal da saúde muito melhor do que a observada no período anterior.
Comunicação Abrasco: em sua análise, você mencionou que alguns desafios de 2024 devem se repetir em 2025. O que podemos esperar do contexto da saúde pública neste ano? E como a Abrasco pretende se posicionar e atuar diante dessas complexidades sanitárias e do cenário político?
Rômulo: a Abrasco, assim como todas as estruturas ligadas à saúde pública, ganhou grande relevância durante a pandemia e isso ficou claro nas várias participações da instituição em diversos temas. Então, a grande meta é manter essa relevância. Agora, o que a Abrasco está convidada a fazer em 2025?
O principal desafio é a participação na COP 30, já que haverá um dia dedicado à saúde. O objetivo é chegar à COP com uma reflexão mais sofisticada sobre como incorporar a dimensão ambiental nas políticas de saúde. Esse desafio é colocado tanto pelo contexto sanitário, que já mencionei, quanto pelo contexto político global, no qual o Brasil tem uma participação importante, e a Abrasco, também é chamada a contribuir. No entanto, o Brasil possui muitas contradições. Embora a governança da saúde tenha melhorado, o país enfrenta desafios estruturais significativos, muitos dos problemas ambientais do Brasil estão diretamente ligados ao seu modelo econômico. O Brasil é um grande produtor de commodities, e sua balança comercial depende fortemente da atividade no campo, seja na mineração, agricultura ou pecuária. Essa dependência de uma economia pouco diversificada torna o Brasil mais vulnerável ao enfrentamento de grandes problemas decorrentes desse modelo econômico. Exemplos disso são a saúde indígena, o uso extensivo de agrotóxicos, a persistente produção de amianto em Goiás e a política brasileira em relação à produção de combustíveis fósseis. Além disso, estes segmentos econômicos têm enorme influência no judiciário e no legislativo, e muitas vezes colocam o governo federal em uma posição difícil. Esse é um dos grandes obstáculos a ser superado. O Brasil precisa se tornar mais sustentável e buscar, de fato, a sustentabilidade.
Outra questão persistente e que teremos que enfrentar ainda mais é a desigualdade. O Brasil apresenta uma grande desigualdade, não apenas nos determinantes de saúde, mas também na distribuição de capacidades e competências entre os municípios. O governo federal tem se esforçado para abordar essa questão, tanto na atenção primária quanto na atenção de maior complexidade. Há uma grande expectativa em relação a essas iniciativas, como a ampliação do número de especialistas, um projeto promissor, mas que ainda precisamos avaliar sua capacidade de implementação, especialmente considerando a grande divisão política do país. O funcionamento do SUS sempre dependeu da adesão dos seus parceiros, mas temos visto grandes dificuldades para gerar consenso, como, por exemplo, na política de combate ao crime organizado. A saúde foi capturada por disputas políticas, com temas que mobilizam a extrema-direita brasileira e internacional, como saúde reprodutiva, orientação sexual, saúde da mulher e vacinas, que acabam sendo trazidos para o cenário político e inseridos nesse embate.
Portanto, 2025 será um ano importante, mas também desafiador. O grande desafio será manter a relevância conquistada durante a pandemia, respondendo às demandas surgidas e, contribuindo para a retomada da funcionalidade do SUS.
Comunicação Abrasco: aprofundando um pouco no aspecto político, o Brasil ainda enfrenta uma forte divisão, e as eleições estão se aproximando. Nas últimas semanas, por exemplo, vimos a disseminação de fake news pela extrema-direita e a circulação de vídeos manipulados sobre a “taxação do Pix”. Como este contexto político e as intensas disputas de narrativas podem impactar a saúde pública ao longo de 2025?
Rômulo: vejo o ciclo político de um governo dividido em começo e fim, não tem meio. Os primeiros dois anos são o começo, os dois anos seguintes são o fim. Estamos a cerca de 18 meses das eleições, e o acirramento será inevitável, independentemente da situação do governo, pois isso é típico da disputa eleitoral. Nesse contexto, a Abrasco precisa defender a posição que dispõe de inserir racionalidade na disputa política. Não é fácil, porque a disputa política nunca foi tão pouco racional como é agora. O termo fake news foi legitimado pela extrema-direita brasileira como um artifício lícito para fazer a disputa. Então, nós precisamos atuar de uma forma esclarecedora e, a partir da comunidade que a gente mobiliza, produzir alternativas que possam interessar a política pública brasileira.
Estamos em uma posição privilegiada, mas manter essa relevância não é simples. É necessário sermos interlocutores com credibilidade, comunicando-nos de forma ampla, não apenas para um público restrito.
Essa disputa é crucial, pois, no contexto atual, a ciência, os cientistas, a saúde pública, a saúde coletiva, a pós-graduação, têm sido contestadas. Então a forma com que nós temos para enfrentar esse contexto complexo não é clamando pelo respeito à nossa autoridade, mas sim sermos competentes na comunicação e articulação social, para que as alternativas mais racionais ganhem credibilidade e consigam trânsito junto à sociedade.
Comunicação Abrasco: outro braço forte de atuação da Abrasco são os eventos e este ano temos o 14° Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva em Brasília. O Abrascão é o congresso da Abrasco. Como estão os preparativos, quais são as perspectivas e o que os congressistas podem esperar desta edição?
Rômulo: já temos a data e o local definidos: o Abrascão será em Brasília, de 28 de novembro a 3 de dezembro. Nossa expectativa é grande, e temos a expectativa de receber entre 7 mil e 8 mil congressistas, e estamos nos preparando para isso. Estabelecemos uma parceria abrangente no Distrito Federal, envolvendo todas as instituições que oferecem cursos de saúde coletiva, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Também firmamos uma parceria sólida com o Ministério da Saúde. Além disso, estamos trabalhando na ampliação dessa rede de apoio, com a inclusão de outros ministérios e instituições.
No momento, está em andamento uma chamada interna para que os GTs, as comissões, comitês e fóruns indiquem os membros da Comissão Científica e em breve definiremos o tema que irá guiar o Congresso. As primeiras discussões apontam que os destaques serão para pautas que estão na ordem do dia, como a justiça climática, a equidade e a democracia. Além disso, pretendemos fazer também uma convergência de várias iniciativas que a Abrasco trabalha regularmente, queremos convergir as carreiras, a produção científica, produção de conhecimento, os periódicos, as pós-graduações e graduações em saúde coletiva.
Comunicação Abrasco: você gostaria de deixar alguma mensagem para os abrasquianos?
Rômulo: A mensagem que gostaria de deixar é que nós precisamos fortalecer a nossa instituição. É fundamental mantermos a participação nas atividades, nas discussões e também manter a anuidade em dia. Há um esforço grande da diretoria para realizar um trabalho de relevância e escala, mas é fundamental a mobilização e participação permanente e cotidiana nas ações da instituição, não somente durante os congressos.