Apesar do pouco debate social durante sua elaboração e inúmeros questionamentos sobre importantes aspectos referentes aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), as mudança no modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde foram oficialmente publicadas na Portaria nº 2.979, de 12 de novembro, e lançadas em forma de programa, batizado “Previne Brasil“. As alterações não passaram pelo espaço do controle social, e o posicionamento das entidades do movimento da Reforma Sanitária brasileira repercutem na imprensa.
O critério de transferência de recursos que leva em conta o número de pessoas cadastradas e o cumprimento de indicadores de saúde ao invés do universo de habitantes dos municípios e regiões de saúde foi apresentado pelo governo no final do mês de julho e aprovado em reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) na tarde de 31 de outubro.
Desde que começou a ser aventada a proposta, em julho deste ano, a Abrasco e demais entidades do movimento sanitário fizeram um esforço de debater as significativas mudanças em diversos espaços, como em mesas temáticas específicas, como a realizada em setembro, no Rio de Janeiro, e em atividades no 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (8ºCBCSHS), ocorrido no final de outubro, em João Pessoa (PB) – veja também aqui.
As entidades tentaram sensibilizar o ministro Luiz Henrique Mandetta em carta aberta divulgada antes da CIT, sem sucesso. Presente à sessão tripartite, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) destacou o debate feito pelas entidades do controle social tanto na 16ª Conferência Nacional de Saúde como no Seminário Nacional de Orçamento e Financiamento do SUS, e deixou registrado que a mudança deveria passar pelo Fórum que reúne gestão, profissionais de saúde e usuários do SUS.
Ainda houve outra manifestação pública de questionamento às mudanças fruto do I Encontro regional de Saúde do Nordeste, no qual, os secretários estaduais presentes reafirmaram a necessidade do aumento dos recursos da União para o SUS e o movimento sanitário convocou a urgência de um debate mais amplo a ser feito diretamente por prefeituras, parlamentares e sociedade civil. Nenhuma dessas manifestações rendeu efeitos e significativas mudanças no princípio da universalidade do SUS ganharam lustrosa embalagem.
Em nota, o CNS desaprovou publicação de portaria, reafirmando que o controle social não pode ser invalidado de suas atribuições constitucionais e que tomará as medidas legais e cabíveis; e seu presidente, Fernando Pigatto registrou a crítica em vídeo, iniciando a convocação de um amplo debate, previsto para o dia 5 de dezembro.
As críticas apontadas pela carta das entidades do movimento sanitário repercutiu na imprensa. Em matéria assinada por Lígia Formenti, setorista de saúde de O Estado de S.Paulo, consta que os R$ 2 bilhões apontados pelo Executivo como incentivos são ilusórios. “Às vésperas das eleições municipais de 2020, não é justo impor aos profissionais do SUS nos municípios sobrecarga ainda maior de trabalho para operacionalizar as mudanças da portaria, sem que os problemas reais da gestão sejam de fato considerados e equacionados”, diz o documento.
A matéria ouviu também Gastão Wagner de Sousa Campos, professor da Unicamp e presidente da Abrasco 2015 – 2018, que pontuou a aparente vantagem dos indicadores pode na verdade ser mais uma estratégia de desmonte do Estratégia Saúde da Família. “Algumas cidades não têm condições de fazer o cadastramento. Sem equipes, como isso poderá ser feito?” Leia a reportagem na íntegra abaixo.
Sob críticas de entidades, Bolsonaro muda lógica de financiamento a atenção primária no SUS
Sob críticas de entidades ligadas à saúde pública, o governo Jair Bolsonaro apresentou nesta terça-feira, 12, uma nova lógica para financiar a atenção primária no Sistema Único de Saúde (SUS). O formato, formulado com a anuência de secretários estaduais e municipais, levará em conta o número de pessoas cadastradas e o cumprimento de indicadores de saúde. Quanto mais pessoas inscritas e quanto melhores os resultados, maiores serão os valores. Hoje, o pagamento é feito com base em dados populacionais.
A mudança na forma de repasse não será imediata. A ideia é que, ao longo de 2020, monitoramentos sejam realizados e capacitações ofertadas para que municípios consigam fazer o cadastramento. O acompanhamento dos dados será feito a cada quatro meses. Resultados começarão a ser aferidos em agosto do próximo ano.
Ao anunciar a nova política, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou não haver risco, no curto prazo, de haver redução nos repasses para municípios. Ele disse ainda que o novo formato não aumentará as desigualdades. De acordo com ele, os indicadores determinados são simples e podem ser atendidos tanto por municípios de pequenas cidades quanto das maiores.
“O indicador vai trazer um ciclo virtuoso”, afirmou. Hoje, não há nenhum mecanismo para controle de atendimento ou resultados e os municípios recebem independentemente da sua forma de atuação. “É muito melhor olhar para o problema do que deixá-lo varrido debaixo do tapete”, disse. Para poder impulsionar a mudança, o Ministério da Saúde prevê um incentivo de R$ 2 bilhões.
Pelos cálculos do ministério, cerca de 50 milhões de pessoas que deveriam estar cadastradas no SUS não são acompanhadas. “Boa parte delas são as mais necessitadas. Pessoas que já recebem benefícios como o Bolsa Família”, disse o secretário do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde(Conasems), Mauro Junqueira.
Um levantamento feito pelo Conasems mostra que, pelos novos critérios, 1.070 municípios perderiam recursos se os parâmetros agora definidos pelo governo fossem imediatamente colocados em prática.
“Acreditamos que isso não vá acontecer. Isso porque, com as novas regras, todos vão se adaptar. E, além disso, há um tempo para que os problemas sejam resolvidos”, afirmou Junqueira.
Em um primeiro momento, serão sete indicadores de saúde. Com o tempo, esses indicadores serão ampliados até chegar a 21 em 2022.
Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Abrasco (2015-2018), Gastão Wagner afirma que a existência de parâmetros poderia ser bem-vinda, desde que fosse adotada no médio prazo. “Algumas cidades não têm condições de fazer o cadastramento. Sem equipes, como isso poderá ser feito?”, questionou.
Em um manifesto assinado por 12 associações ligadas à saúde pública na semana passada, especialistas alertam que a nova lógica rompe com o princípio de saúde como direito de todas as pessoas e inviabiliza a aplicação de recursos de acordo com a necessidade de saúde e territórios.
O manifesto observa ainda que os R$ 2 bilhões de incentivos são ilusórios. “Às vésperas das eleições municipais de 2020, não é justo impor aos profissionais do SUS nos municípios sobrecarga ainda maior de trabalho para operacionalizar as mudanças da portaria, sem que os problemas reais da gestão sejam de fato considerados e equacionados”, diz o documento.
Para Wagner, o novo formato será usado, no futuro, para reduzir o repasse para municípios, sobretudo os de médio porte. “Cidades maiores não têm condições de fazer o registro. E sem funcionários, sem possibilidade de contratação, esses números não serão atingidos. E aí, o maior risco é de que cortes sejam de fato realizados.”