O estado do Rio Grande do Sul enfrenta uma crise humanitária devido às chuvas intensas que assolam a região. Nas últimas semanas, as precipitações têm causado inundações generalizadas, resultando em danos materiais significativos, deslocamento de comunidades inteiras e, agora, sérios desafios para a saúde pública.
Embora a população e as autoridades tenham feito esforços para responder a esses eventos extremos, a magnitude das chuvas excedeu as expectativas, destacando lacunas nos sistemas de alerta e preparação para desastres. A falta de infraestrutura adequada e o planejamento urbano deficiente exacerbaram os impactos das inundações, deixando muitas áreas vulneráveis à destruição.
Uma tragédia anunciada
Os relatórios científicos, como o publicado pelo Observatório do Clima em 2015, alertam para os riscos iminentes para a saúde da população em meio a esse cenário de crise. As condições insalubres resultantes das inundações aumentam o risco de doenças infecciosas, como gastroenterites e leptospirose, devido à contaminação da água potável e ao contato com esgotos a céu aberto.
Para Carlos Machado, integrante do Conselho Deliberativo da Abrasco e pesquisador especialista em Problemas Ambientais e de Saúde, o cenário demanda urgência em restabelecer as capacidades do SUS em responder aos problemas e necessidades de saúde da população. “Temos que olhar para as consequências sobre a saúde de modo conjunto, pois um evento como este significa a sobreposição de riscos, doenças e agravos”, reflete.
Os danos à infraestrutura de saúde dificultam o acesso aos cuidados médicos essenciais, incluindo tratamentos para doenças crônicas e serviços de emergência. A escassez de pessoal médico e recursos adiciona pressão ao já sobrecarregado sistema de saúde, comprometendo ainda mais a capacidade de resposta às necessidades da população afetada.
Impactos na Atenção Básica e na saúde da população
No cenário atual estima-se que 2/3 das unidades de Atenção Básica estejam comprometidas e muitos dos profissionais de saúde que atuam nos serviços de saúde (incluindo farmácias e laboratórios) tiveram familiares e residências afetadas. Este cenário demanda urgência em restabelecer as capacidades do SUS em responder aos problemas e necessidades de saúde da população.
Para Carlos, os impactos da chuva e do contato com a água contaminada podem ser observados em diversos aspectos. “Em primeiro lugar vemos o aumento das doenças infecciosas e transmissíveis. Temos as relacionadas à qualidade da água, pois redes de abastecimentos e fontes alternativas são contaminadas, contribuindo para elevação de casos de diarreias e gastroenterites”, afirma o pesquisador.
Outra preocupação imediata é com o contato com a água pela população e trabalhadores de resgate e socorro, com risco de elevação de casos de leptospirose. A devastação causada pelas enchentes também traz impactos à saúde mental das mais de 160 mil pessoas desalojadas. “As chuvas afetaram de modo imediato as pessoas que perderam entes queridos, suas casas, seus modos de vida e sustento”, afirma Carlos. O pesquisador aponta que em situações como essa há o risco de elevação de casos de violência doméstica e do consumo de álcool e outras substâncias.
Esta semana, entidades do Rio Grande do Sul denunciaram, ao Ministério das Mulheres, casos de violência sexual cometidos contra mulheres e meninas em abrigos. Para Debora Diniz, integrante do GT Bioética da Abrasco, desastres naturais como esse precisam ser olhados, também, pelas lentes de gênero. “No meio do caos, as meninas e mulheres são corpos vulneráveis à violência e é urgente que o Ministério das Mulheres trace um plano de proteção e cuidado das necessidades de meninas e mulheres afetadas pelo desastre climático das enchentes”, afirma a pesquisadora.
Para Carlos, além de planos de contingência específicos para cada um destes eventos é fundamental que estados e municípios desenvolvam planos de gestão de riscos de desastres envolvendo os diferentes setores e atores da sociedade. “Estes planos devem envolver não só as medidas de preparação e respostas aos desastres, mas também de Prevenção de riscos futuros a itigação dos riscos existentes, além de políticas de reabilitação e reconstrução baseadas no princípio do Marco de Sendai de reconstruir de modo melhor e mais seguro.“, afirma o pesquisador.
A região sul, historicamente, é a região onde os índices de insegurança alimentar em todos os níveis, leve, moderada e grave, são menores ao longo da nossa série histórica. Mas para Elisabetta Recine, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e integrante do GT Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva da Abrasco, as enchentes mudam drasticamente esse cenário.
“Centenas de milhares, acho que podemos dizer até milhões de pessoas foram levadas à pobreza do dia para a noite, perderam suas casas, perderam tudo que conseguiram conquistar ao longo da sua vida. Muitos deles, no caso dos agricultores, perderam repentinamente o seu canal de trabalho, a sua plantação, o seu maquinário, e mesmo nas cidades, com o comprometimento de toda a infraestrutura, enfim, certamente os níveis de pobreza vão aumentar e, consequentemente, os níveis de insegurança alimentar.”, conclui Elisabetta.
Para Carlos Machado, pra reconstruir é preciso reavaliar os cenários e redimensionar os riscos. “Assistimos todos os anos e em diferentes tipos de desastre, após a comoção inicial, a situaçao de risco anterior ser recomposta, com habitações, hospitais e escolas nos mesmos locais; com populações continuarem a viver nas mesmas condições de vulnerabilidade que já estavam antes. Todo desastre é uma atualização de cenários de riscos existentes. Reconstruir do mesmo modo anterior ao desastre é manter as mesmas condições de riscos. Precisamos urgentemente passar das políticas e ações reativas aos desastres para políticas e estratégias prospectivas e preventivas.”, conclui Carlos.
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