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Enchentes no RS e população negra: caminhos equânimes para a reconstrução – Artigo de Elaine Oliveira Soares

 

Como as enchentes no Rio Grande do Sul têm atingido de maneira desproporcional, no que tange ao dado objetivo e sensível – das vivências, persistências de violações de direitos e desamparo social -, as pessoas negras no estado gaúcho? Quais paradoxos representam a realidade deste território em que os esforços para mover políticas de embranquecimento marcaram décadas inteiras no século passado, e como resistência compõe o estado com mais terreiros de matriz africana, com uma expressiva concentração de comunidades quilombolas e fundador do 20 de Novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra?

O Rio Grande do Sul tem enfrentando durante o mês de maio de 2024 uma situação de calamidade pública, climática e social jamais vista. Os estragos causados são considerados sem precedentes e impactam grande parte do estado gaúcho. São 469 municípios atingidos dentre os 497 que compõem a geografia local; 2.342.460 pessoas afetadas dos 11,3 milhões habitantes do estado; cerca de

12.440 animais resgatados e 163 óbitos humanos confirmados. A água corre de lado a lado do estado atravessando a Laguna dos Patos e destruindo o que encontra no caminho.

Sociedade civil de dentro e fora do estado, embarcações, aeronaves, viaturas, ajuda internacional e diversos setores da gestão pública e privada estão envolvidos no resgate de vidas diretamente atingidas pelas enchentes, nas situações de emergências e adjacências e nos primeiros, entre tantos, passos de reconstrução de vidas, lares, comunidade e do estado como um todo. A mobilização solidária e institucional que tem unido esforços, doações e ações em torno dessa tragédia é constantemente assolada pelo ininterrupto alerta de mais chuva, tempestades e frio. Abrigos de gestão pública e por iniciativa comunitária acolhem como podem pessoas e animais em risco.

A água que percorre o estado atinge de maneira quase integral o número de municípios do Rio Grande do Sul. De maneira generalista, pode-se dizer que o estado como um todo foi atingido e precisará de longos anos para recuperar-se. Por seu turno, a lente universal impede que as particularidades, sobretudo, as causadas

pela desigualdade, que marca e funda a realidade brasileira e sul riograndense, apareçam relevando revitimizações dentro da tragédia, a exemplo as denúncias de racismo dentro dos abrigos emergenciais.

Na saúde pública, o princípio da equidade refere-se justamente à necessidade de considerar as desigualdades na oferta do cuidado, equiparando, assim, injustiças estruturais e sistemáticas, bem como especificidades que posicionam os sujeitos de maneira desigual em relação ao acesso, à prevenção e promoção da saúde. Isso significa dizer que o SUS procura atender prioritariamente as pessoas que mais precisam, considerando suas condições frente à sociedade e as barreiras que possam enfrentar para acessar os serviços.

Segundo o Observatório das Metrópoles de Porto Alegre, os bairros mais atingidos pelas enchentes nos municípios de Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Guaíba têm uma concentração maior de habitantes negros. O racismo ambiental está intrinsecamente ligado a estruturas sociais mais amplas de desigualdade, discriminação e injustiça. Ele reflete e perpetua disparidades raciais e socioeconômicas que marginalizam grupos raciais negros e indígenas na sociedade, negando-lhes o direito a um ambiente seguro e saudável. Essas desigualdades ambientais estão relacionadas à distribuição desigual de benefícios e riscos ambientais, como poluição, falta de saneamento básico, exposição a substâncias tóxicas, degradação ambiental, acesso inadequado a recursos naturais.

Sabe-se que historicamente a população negra é relegada dos espaços que apresentam melhores condições de vida, de acesso à saúde, educação, segurança, lazer e cidadania de maneira geral. O racismo produz e reproduz segregações espaciais mesmo que com linhas invisíveis. Na Saúde a falta de preenchimento do quesito raça/cor nos prontuários e formulários faz com que o dado do racismo seja invisibilizado, mesmo sendo ele um importante determinante do processo saúde-doença. Desse modo, o racismo segue perpetuando de maneira violentamente silenciosa uma série de violações de direitos, privações e diversas formas de violência. Em momento de crise, a sociedade vivencia de maneira generalizada tais questões, contudo, as populações negras, indígenas, imigrantes e vulnerabilizadas têm suas mazelas intensificadas por falta de um olhar equânime.

Vale lembrar a disparidade racial na incidência e mortalidade na pandemia de COVID-19, indicando como a população negra foi desproporcionalmente afetada pela doença e como o racismo expõe sistematicamente as populações não brancas a diversos riscos. Essa constatação, corroborada pela CPI da Pandemia, aponta para fatores socioeconômicos e estruturais que contribuem para a desigualdade racial brasileira, incluindo acesso limitado a cuidados de saúde, condições de trabalho precárias e moradias superlotadas. O Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC-Rio concluiu que enquanto 55% de negros morreram por covid, a proporção entre brancos foi de 38%. Dados também mencionam que a taxa de vacinação entre pessoas negras e brancas não foi proporcionalmente equivalente.

O apagamento da presença negra no estado gaúcho em detrimento da supervalorização da migração italiana e alemã marcam o modo como o Brasil enxerga esse estado. Em quesitos raciais, 73,62% da população na capital gaúcha se autodeclara branca, 26% se autodeclara negra (sendo 13,38 pardos e 12,62 pretos) e 0,2% da população se autodeclara indígena. Apesar disso, ou justamente como forma de resistência frente à persistência da lógica colonial, segundo o Censo 2022, o Rio Grande do Sul é o 13º estado brasileiro com mais pessoas declaradas quilombolas, somando um total de 17.496 pessoas dessa população distribuídas em cerca de 134 comunidades quilombolas. Em Porto Alegre existem 9 territórios quilombolas e aproximadamente 2.900 quilombolas.

Destaca-se, também, a presença expressiva de terreiros de matriz africana no estado rio grandense, sendo em torno de 60 mil e com 1,47% da população adepta da Umbanda e do Candomblé, o estado com maior proporção nacional de adeptos dessas religiões. Infelizmente, essa resistência do povo negro e a produção e preservação cultural de modos de vida diversos não é valorizada socialmente, tampouco considerada digna de atenção pelas gestões locais.

Em meio às enchentes, comunidades quilombolas, movimentos de mulheres negras, movimentos sociais negros e terreiros de matriz africana no município de Porto Alegre e demais regiões têm se unido para apoiar umas às outras e a população como um todo. Na contramão de tal ação, a negligência frente aos processos de racismo ambiental, estrutural e institucional segue presente na realidade cotidiana gaúcha, expondo a população negra aos mais diversos riscos.

Podemos exemplificar com a representação feita no Ministério Público contra o condomínio de luxo, na cidade de Pelotas, por instalar um duto para drenar o alagamento do condomínio direcionando a água para área da comunidade Passo dos Negros, no bairro Navegantes (grande maioria população negra). Por conseguinte, resta à própria população negra, constantemente afetada, organizar-se ao longo da história para mitigar riscos, criar estratégias de enfrentamento e soluções às questões que o racismo lhe impõe.

Encaminhando para o fim dessas reflexões que racializam a tragédia socioambiental vivenciada pelo estado do Rio Grande do Sul, evidencia-se a necessidade de um olhar através da equidade, das políticas públicas intersetoriais, da escuta das vozes e experiências negras gaúchas, movimentos de mulheres negras, movimentos sociais negros, comunidades quilombolas e de matriz africana, que não somente existem, mas, sobretudo, constituem parte fundamental da história desse estado. Esse compartilhamento de ideias precisa servir para influenciar estratégias equânimes de reparação frente ao despedaçamento de um estado inteiro.

Para que os caminhos de reconstrução de lares, famílias, do estado e da história brasileira não reproduzam desigualdades e negligências é necessário que se mude a rota, evitando que mais uma vez a população negra seja fatalmente a última a acessar formas de reparar danos causados pela própria estrutura social racista. Para que a história, como a da COVID-19 e tantas outras, não se repita, é fundamental que toda mobilização de resgate, apoio e reconstrução seja repensada através de uma lógica de justiça sociorracial e, que mesmo apoiada pela solidariedade e comoção social, seja uma responsabilidade dos governantes das três esferas de gestão. Nós comunidade negra, seguiremos, garantindo nossa existência para continuar resistindo.

* Elaine Oliveira Soares é mulher negra ativista, gaúcha, enfermeira, mestre em saúde coletiva, expertise em gestão em saúde da população negra e políticas de equidade, integrante de ACMUN – Associação Cultural de Mulheres Negras do RS, GT Racismo e Saúde da ABRASCO, GTs de saúde da população negra:COREN RS(Conselho Regional de Enfermagem), SBMFC(Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre


Referências

FAUSTINO, Deivison Mendes. Os condenados pela Covid-19: uma análise fanoniana das expressões coloniais do genocídio negro no Brasil contemporâneo. Combate Racismo Ambiental, 2020.

GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Situação nos Municípios. Recuperado de https://sosenchentes.rs.gov.br/situacao-nos-municipios

IBGE. (2022). Censo Demográfico 2022. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

NÚCLEO DE OPERAÇÕES E INTELIGÊNCIA EM SAÚDE DA PUC-RIO. (Data não fornecida). Diferenças sociais confirmam que pretos e pardos morrem mais de Covid-19 do que brancos, segundo NT11 do Nois. Centro de Tecnologia e Ciências da PUC-Rio. Recuperado de https://www.ctc.puc-rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-pardos-morrem-mais-de-covid-19-do-que-brancos-segundo-nt11-do-nois/

OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES DE PORTO ALEGRE. Núcleo Porto Alegreanalisa os impactos das enchentes na população pobre e negra do Rio Grande do Sul, 2024. Acesso em: 23 de maio de 2024. Recuperado de: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/nucleo-porto-alegre-analisa-os-is-impactos-das-enchentes-na-populacao-pobre-e-negra-do-rio-grande-do-sul/.

OBSERVA POA. Perfil da Cidade Porto Alegre, 2024. Acesso em: 23 de maio de 2024. Recuperado de:https://prefeitura.poa.br/smpae/observapoa/cidade#perfil_cidade.

SOARES, Elaine. Gestão das Políticas de Equidade Étnicorracial em Saúde em Porto Alegre in Equidade étnicorracial no SUS : pesquisas, reflexões e ações em saúde da população negra e dos povos indígenas [recurso eletrônico] / organizadores: Daniel Canavese … [et al.] – 1.ed. – Porto Alegre: Rede UNIDA, 2018a.

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