Entre os todos os pontos do pacote de medidas apresentado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, e batizado de “Agenda Brasil”, a cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda a partir do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) suscitou as mais diversas reações da sociedade brasileira. A mobilização das entidades que compõem o movimento pela Reforma Sanitária, que por meio da Carta à Presidenta Dilma assinalam total contrariedade a qualquer tentativa de derrubada da universalidade do sistema público de saúde e contrários à limitação do direito à Saúde, surtiu efeito e acarretou na retirada do ponto em um segundo encontro político, realizado em 14 de agosto. Com o movimento do recuo dos interesses privatistas e todas as cartas na mesa, diversos veículos de imprensa aproveitaram a pauta política para debater as reais condições do financiamento público da saúde.
O Diário do Nordeste, principal jornal do estado do Ceará e um dos impressos de maior alcance na região, foi um desses veículos. Redigida pela repórter Julianna Sampaio, a matéria Financiamento do SUS vira alvo da equipe econômica traz a opinião de lideranças do movimento pela Reforma Sanitária brasileira sobre a centralidade da universalidade para a manutenção e a ampliação de políticas públicas para o setor.
Publicado no último domingo, 23 de agosto, o texto expõe o tamanho do corte que o setor sofreu na neste ano de 2o15: a marca de R$ 11,77 bilhões contingenciados em nome da “crise”. Além da Agenda de Calheiros, tramita lentamente na Câmara dos Deputados a PEC 451/2014, de autoria do presidente do Congresso, Eduardo Cunha. O projeto quer obrigar as empresas a oferecer planos de saúde a seus empregados. Ambas as propostas, além de inconstitucionais, têm objetivo claro: acabar com a universalidade, princípio básico do Sistema Único de Saúde, o SUS.
“Cobrar de alguns pelo atendimento em saúde, pela vacinação, pelo tratamento do HIV/Aids, pelo transplante, pela urgência e emergência, dentre tantos exemplos, é aniquilar políticas que só deram certo porque são universais. Graças à ampla e firme reação do Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira, além da crítica do atual ministro da Saúde e de dois ex-ministros, ocorreu um recuo”, avaliou Nilton Pereira Júnior, vice-presidente da Abrasco, e um dos entrevistados.
Professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (DSC-Famed/UFU), Pereira Júnior destacou que, enquanto o governo não entender que são os gastos com saúde que qualificam o sistema e garantem retorno econômico, as ações na pasta e em demais áreas sociais continuaram a ser inconclusivas e/ou de baixa eficiência e de eficácia.
“Temos que entender que as políticas sociais, incluindo a saúde, não são custos para os governos, mas sim investimento. Diversos estudos demonstram que para cada R$ 1,00 investido na saúde pública, há um retorno de mais de R$ 2,00 para a economia nacional. Quanto mais serviços públicos de saúde qualificados e resolutivos, mais desenvolvimento social e econômico para o país”, ressaltou Pereira Júnior, que ainda criticou os interesses privatistas instalados no interior da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Também foram entrevistados outros dois militantes do movimento sanitarista: Ana Costa; presidente do Centro Brasileiro dos Estudos da Saúde (Cebes), e Jurandi Frutuoso, secretário-executivo do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O ex-secretário de saúde do estado do Ceará destacou a validade do projeto de iniciativa popular apresentado em 2013 pelo Movimento Saúde + 10, convertido no rito legislativo no PLP 321/2013 e, logo depois, arquivado pela legislatura passada. “O Congresso tem que se debruçar sobre o ‘Saúde + 10’ que exige 10% das receitas correntes brutas ou equivalente e votar um financiamento definitivo e sustentado para o sistema de saúde. Proposta de cobrança no SUS é um retrocesso”, afirmou Frutuoso. Leia abaixo a primeira parte da matéria.
Financiamento do SUS vira alvo da equipe econômica
Publicado no jornal Diário do Nordeste em 23 de agosto (domingo), página 18
Por Julianna Sampaio
Para analistas, medidas como a Agenda Brasil colocam em risco a universalização do Sistema Único de Saúde.
O quadro do sistema público de saúde brasileiro é grave já há alguns anos. Em tempos de crise, o setor sofre um novo baque com a falta de recursos e o ajuste fiscal do governo federal, que trouxe um corte de R$ 11,77 bilhões no orçamento da área em 2015. Para sanar o problema do subfinanciamento, avaliado pelos especialistas como a principal demanda do Sistema Único de Saúde (SUS), surgem propostas, muitas vezes controversas, no Congresso Nacional, as quais em vez de trazer a cura podem levar o cenário para a UTI.
Numa tentativa de debelar a crise e retomar o crescimento do País, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), lançou, no último dia 10, a Agenda Brasil, que, entre outros pontos, chegou a cogitar a cobrança de serviços no SUS para brasileiros com alta faixa de renda. Alvo de críticas de setores do governo e da sociedade civil, o peemedebista recuou.
“Ao tomar conhecimento da proposta cheguei a pensar que estava delirando. Nada mais retrógrada. A reação foi tamanha que o senador retirou-a em menos de 48 horas. De positivo, o reconhecimento, agora definitivo, do subfinanciamento do SUS”, criticou o secretário executivo do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e ex-secretário estadual da Saúde do Governo Lúcio Alcântara (2003-2006), Jurandi Frutuoso.
Na avaliação do ex-secretário estadual da Saúde do Governo Cid Gomes (2007-2010), João Ananias, a taxação dos serviços do SUS rediscute a Constituição Federal, que determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado, com acesso universal e igualitário. “Na hora que se propõe cobrar, estamos amputando o princípio basilar dos eixos prioritários que nortearam a criação do SUS que é a universalidade”, afirmou.
O vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (DSC-Famed/UFU), Nilton Pereira Junior, considera que a possibilidade de cobrança de cidadãos assistidos pela rede pública de saúde, de acordo com a faixa de renda, ampliaria as diferenças de qualidade dos serviços e resultaria na completa segmentação do já desigual sistema de saúde brasileiro.
“Cobrar de alguns pelo atendimento em saúde, pela vacinação, pelo tratamento do HIV/Aids, pelo transplante, pela urgência e emergência, dentre tantos exemplos, é aniquilar políticas que só deram certo porque são universais. Graças à ampla e firme reação do Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira, além da crítica do atual ministro da Saúde e de dois ex-ministros, ocorreu um recuo”, avaliou.
Apartheid: A presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), Ana Costa, compartilha da mesma opinião, observando que a proposta penalizaria os mais pobres e criaria um apartheid na assistência. Apesar da reação contrária à medida, ela diz não ter a ilusão de que o projeto seja esquecido. “Sabemos que essa proposta retornará a qualquer tempo. Ela está no manual do Banco Mundial, no manual do liberalismo que orienta que a saúde é mercado, é negócio e não direito coletivo”, afirmou.
Abortada pelas polêmicas, Renan Calheiros substituiu a ideia de cobrança pela defesa da regulamentação do ressarcimento pelos associados de plano de saúde, dos procedimentos realizados pela rede pública. Esta segunda proposta, na opinião do vice-presidente da Abrasco, parece inócua, já que já existe a normatização sobre a contrapartida para o SUS. “O que é preciso ocorrer é a sua efetivação por parte da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que é controlada politicamente por representantes das seguradoras privadas de saúde e, por isso, não tem interesse em efetivar o ressarcimento ao SUS”, defendeu o professor.
Médico sanitarista e mestre em saúde coletiva, Jurandi Frutuoso observa que a proposta do presidente do Senado nasceu numa fase de ataque constitucional ao SUS. Como exemplos, ele citou a promulgação da Emenda Constitucional do Orçamento Impositivo (EC 86/2015), a qual estabelece que o valor mínimo a ser aplicado pela União, em saúde, seria de até 15% da receita corrente líquida. Na prática, isso pode reduzir os valores atuais, calculados com base na fórmula que leva em conta o orçamento do ano anterior para o setor mais a variação nominal do PIB de dois anos anteriores. O secretário do Conass avaliou, ainda, como retrocesso a Lei 13.097/2015, que introduz o capital estrangeiro na assistência à saúde, e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 451/2014, que objetiva dar planos de saúde para trabalhadores rurais e urbanos, “aumentando a renúncia fiscal, demolindo as bases do sistema definitivamente”.