A falta de equipamentos de proteção individual (EPI) tem sido alvo constante de protestos por parte dos profissionais de saúde. Sem esses itens, muitos médicos e enfermeiros têm contraído a doença. Por conta desse problema, o Nexo Jornal entrevistou o vice-presidente da Abrasco, Reinaldo Guimarães, sobre a situação da indústria da saúde no país.
Embora a pandemia tenha pegado o mundo todo de surpresa, criando uma necessidade inédita por itens hospitalares chineses, parte da crise vivida no Brasil atualmente no combate à epidemia do novo coronavírus se agrava devido à dependência do país em adquirir equipamentos, produtos farmacêuticos e insumos de fora. Apesar de o país contar com o SUS, um sistema criado na redemocratização do país e que dá atendimento universal e gratuito à população, o subfinanciamento dificulta cada vez mais o trabalho dessa rede e também afeta e o problema da indústria de saúde vem de muito tempo, mais precisamente de 1996 com a mudança na lei de patentes.
Para entender melhor este contexto, leia a íntegra da entrevista de Reinaldo Guimarães ao Nexo Jornal.
Nexo: Por que os materiais médicos estão em falta?
Reinaldo Guimarães: É necessário que a gente separe dois cenários diferentes. Neste cenário da pandemia, a maior parte das coisas teve que ser importada — ou ainda está sendo importada — porque ninguém imaginava que a demanda por esses itens alcançasse a escala que alcançou. Não é só o Brasil que está importando máscara; os Estados Unidos também está. Acontece da mesma forma com todas as outras coisas fundamentais, como respiradores. A Itália, a Espanha, todo mundo importou da “fábrica do mundo” que é a China. Por quê? Porque a demanda foi uma coisa inteiramente fora de previsão. Não há nenhuma originalidade ou singularidade brasileira por não dispor desses equipamentos a tempo.
Hoje, as coisas mais simples já estão inclusive sendo feitas aqui. Tem empresas que estão se convertendo em fabricantes de máscaras, dedicando parte de sua produção de outras coisas para fazer isso. Com os próprios respiradores, em São Paulo o Hospital das Clínicas está tentando reviver um antigo e excepcional equipamento chamado Takaoka, que foi desenvolvido no Brasil, no HC, na década de 1960, mas que deixou de ser fabricado porque outros avanços tecnológicos foram feitos.
Neste momento que precisa muito, está sendo feito. Esse é o cenário da pandemia. Mas fora desse cenário, mesmo em situações normais, nós temos algumas deficiências, principalmente no campo industrial, que são muito graves. O cenário muda para cada tipo de produto.
Em relação aos respiradores, não vejo maior dificuldade na capacidade instalada da indústria brasileira de produzir isso. Imagino até, que neste momento, já haja uma certa mobilização para algumas indústrias nacionais estarem produzindo os equipamentos, não aqueles que eu falei antes, mas equipamentos de última geração. Não creio que haja problema. Problema é a demanda. Algumas dessas empresas brasileiras que eu acho que já estão começando a se mexer para produzir isso têm que ver o que fazer com o investimento depois. Porque a demanda vai diminuir. Mas acho importante que se faça isso. De maneira geral, a situação é essa.
Em relação às máscaras, o Brasil não tem dificuldade. Produz máscaras, luvas, equipamentos de proteção, aventais, toucas, sapatos. Tudo é produzido. O problema se colocou porque a demanda era 10 e passou a ser 10 mil. E não foi só no Brasil, isso aconteceu no mundo todo. Os Estados Unidos estavam quase que sequestrando avião para ter esses equipamentos. O que quero dizer é que não existe nenhuma dificuldade tecnológica, tem empresas brasileiras que produzem luvas, máscaras. Quando a demanda sobe de um jeito exponencial como subiu, não tem jeito, tem que importar.
Nexo: Além da produção de equipamentos, qual a situação da indústria de saúde no Brasil?
Reinaldo Guimarães: A indústria farmacêutica brasileira, não a indústria multinacional que importa medicamentos para cá, mas a brasileira que fabrica aqui, é uma indústria que, depois da lei de patentes de 1996, só veio a começar a se recompor a partir do ano 2000, com a lei dos genéricos. E ela cresceu muito durante essa primeira década do século 21 e hoje é uma indústria bastante pujante. Agora, ela é muito centrada em medicamentos genéricos. Os mais complexos são, na maioria, importados e protegidos por patentes. Essa indústria farmacêutica sobreviveu extremamente bem até o final de 2019. Ela só está começando a sentir os efeitos da crise econômica brasileira agora, por conta do dólar. Isso é o que mais impacta a indústria farmacêutica brasileira.
É preciso entender que os medicamentos são feitos de três coisas: o primeiro, que é o princípio ativo. Segundo, há um conjunto de coisas que envolve o princípio ativo, chamados de incipientes. E, terceiro, tem o invólucro. O problema é que a indústria brasileira de medicamentos hoje em dia importa cerca de 90% de todos os insumos que entram na fabricação de medicamentos feitos aqui no país. Importa da Índia e da China, principalmente. No caso da pandemia, como a Índia fechou as suas portas para a exportação e a China também, durante um tempo fechou muitas plantas industriais, ficou faltando gente para fornecer para o Brasil esses princípios ativos. Quando o Brasil teve que comprar, teve que procurar em outros países da Europa que eventualmente fabricam alguns, aí o dólar foi a mais de R$ 5. Isso está sendo muito complicado para a indústria farmacêutica brasileira. Mas acho que ela sobreviverá. Tem muitas empresas grandes e acho que ela vai sobreviver.
Já a indústria de insumos, que se chama indústria farmoquímica, foi arrebentada na abertura comercial lá atrás, nos governos do Fernando Collor e do Fernando Henrique Cardoso. Foi exatamente o momento em que a China e a Índia entraram como players globais nessa área de insumos farmacêuticos. Por isso que a gente importa hoje 90% dos insumos que usa. Na verdade, a indústria farmoquímica brasileira que produz insumos farmacêuticos é muito débil. E eu não vejo muita possibilidade, ao menos a curto prazo, de ela se recuperar. Vai ser preciso um esforço muito grande, muita ajuda do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), muito financiamento, se é que os planos para reviver uma indústria farmoquímica boa vão ser para valer e se não forem só retórica.
Agora, o Brasil tem uma situação no campo de vacinas que é extremamente original e singular no mundo para um país grande como o nosso. A maior parte das vacinas que o SUS (Sistema Único de Saúde) usa é produzida no Brasil por dois laboratórios públicos: Bio-Manguinhos, da Fiocruz, e o Butantã, do governo do estado de São Paulo. A maioria das vacinas do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde vem desses dois laboratórios. Não existe nenhum fabricante internacional de vacinas instalado no Brasil. Isso aconteceu porque tanto o Butantã quanto o Bio-Manguinhos, há muitos anos, praticam uma política de compra e transferência de tecnologias. E hoje eles dominam uma boa parte da tecnologia para a produção de vacinas.
Eles utilizaram um mecanismo que hoje está bastante na moda, mas, quando começaram a fazer isso, há 40, 50 anos atrás, nem existia o nome. São mecanismos de compensação tecnológica. Eles compravam a vacina de um fabricante estrangeiro com uma cláusula que dizia que a tecnologia tinha que ser paulatinamente repassada. Nós só temos alguns problemas, tanto no Butantã quanto no Bio-Manguinhos, no campo de vacinas mais complexas, que têm muitos antígenos, muitos componentes, aí a gente está patinando e não sei se quem detém a tecnologia dessas vacinas vai querer vender. Mas a situação das vacinas é bastante original. Isso é assim porque o grande comprador de vacinas no Brasil é o SUS, pelo Programa Nacional de Imunizações, que compra praticamente a totalidade de Bio-Manguinhos e a quase totalidade do Butantã, que vende também muita coisa para a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
Nexo: Como se chegou ao contexto atual da indústria de saúde?
Reinaldo Guimarães: O ponto de inflexão foi o ano de 1996, quando foi a editada a nova lei brasileira de patentes, que substituía uma lei de 1970. Até 1996, o Brasil não reconhecia patentes de medicamentos. Tinha um medicamento e por engenharia reversa fazia o medicamento aqui. Existia uma indústria farmacêutica nesses termos. Em 1994, houve o acordo tríplice, no âmbito da OMC (Organização Mundial de Comércio), que impôs uma regra única para todos os países da OMC para patentes. E, nessa regra, foi obrigatório para o país pertencer à OMC ter que respeitar a regra de reconhecer patentes de medicamentos. Isso matou a indústria que a gente tinha. Porque não era uma indústria muito competitiva. Era uma indústria de fazer cópia por engenharia reversa. Quando houve a lei de patentes, o que passou a acontecer é que a proteção de patentes matou inteiramente o que existia de indústria.
Só a partir de 2000, quando foi sancionada a lei dos genéricos, é que essa indústria começou de novo a rodar. Por que genéricos? Porque eles não são protegidos por patentes. Então começaram a fazer genéricos e constituir musculatura econômica e financeira para fazer medicamentos um pouco mais complexos. Isso foi feito com a indústria farmacêutica. Com a indústria farmoquímica, ela não conseguiu ter escala, porque aí a Índia e a China produziram para o mundo inteiro. A quantidade de farmoquímicos que eles têm não permitem competitividade. Não só do Brasil. Os americanos importam também a maior parte dos farmoquímicos de medicamentos produzidos lá. A indústria farmoquímica atrofiou no Brasil.
A farmacêutica não, por causa dos genéricos, do aumento das faixas populacionais, principalmente durante os dois governos Lula, que ampliaram com o Bolsa Família e com aumentos reais do salário mínimo a demanda por medicamentos, na maioria dos casos fabricados aqui localmente por empresas brasileiras. Essa indústria cresceu muito, mesmo na crise do final do governo Dilma para cá. Durante todo esse período, a indústria farmacêutica ficou muito bem. Só entrou em sofrimento agora que o dólar foi para o espaço. Isso para ela é mortal, mesmo com a diminuição dos juros.
Nexo: Que mudanças a pandemia pode causar nessa indústria?
Reinaldo Guimarães: O impacto [da pandemia] sobre o Brasil vai ser muito grande, não só sobre os produtos de saúde. Vai ser um impacto econômico brutal. Em termos de desemprego, de fechamento de empresas. Não tenho nenhuma ilusão otimista da saída, como dizer que o país vai ser mais solidário. Isso tudo é conversa fiada. Vamos sofrer muito.
Com relação ao campo da saúde, a indústria privada só investe se houver demanda. Mas o Brasil tem uma originalidade. Ele tem um sistema público de saúde que é um grande comprador. Hoje, cerca de 30% do mercado total de medicamentos é comprado pelo SUS. Como você tem o sistema público de saúde comprando, você vai ter uma sustentação. Agora, com o dólar lá em cima, vai ter sofrimento para as empresas nacionais. Além do mais, a questão da lei de patentes continua em vigência. A lei de patentes não só protege o inventor mas também tira os concorrentes de fora. Eu não creio que a gente vá virar uma Índia ou uma China em termos de fabricação de medicamentos. A gente tem um mercado grande, mas não é um mercado que seja um bilhão de pessoas. Não vai ser um grande mercado exportador, como são o da China e principalmente o da Índia.
Nexo: O país é capaz de ajudar a desenvolver uma vacina no caso do coronavírus ou vai depender de fora?
Reinaldo Guimarães: Vai depender do que for feito lá fora. Hoje, temos 75 candidatos de vacina sendo desenvolvidos pelo mundo afora. A maior parte delos é na China. Mas não apenas, Estados Unidos também, alguns países da Europa. Desses candidatos, 70 ainda estão sendo testados ou em laboratório ou em animais. Cinco candidatos estão sendo testados em humanos. Nenhum desses 75 candidatos conta com a participação de empresas brasileiras, nem do Butantã nem do Bio-Manguinhos. Muito embora eles tenham relação com algumas empresas internacionais de vacinas que estão entre essas 75. Se aparecer uma vacina não vai ser uma vacina do Butantã ou Bio-Manguinhos. Nossa luta tem que ser para que, aparecendo uma vacina, haja por parte da OMS (Organização Mundial da Saúde) uma política de promover o licenciamento voluntário. O descobridor da vacina vai licenciar a produção dessa vacina por outros laboratórios em outros países voluntariamente. Isso é algo que a OMS vai poder fazer se tiver disposição para isso.