O cenário da pandemia faz com que muitas questões sejam levantadas a fim de buscar uma resposta definitiva e rápida para a situação de emergência, como, por exemplo, uma vacina. Diante dessa expectativa que toma conta de muitos, como orientar as pesquisas na busca pela vacina, tratamentos e medidas sanitárias? É possível mudar requisitos éticos por conta da “pressa” da sociedade em sair desse cenário? Para responder tais perguntas e dialogar com a sociedade de maneira geral, o Observatório Covid-19 da Fiocruz criou um Grupo de Trabalho de Bioética para refletir sobre tais pontos.
O GT é coordenado pelo professor Sergio Rego, que também coordena o Grupo Temático de Bioética da Abrasco, e produziu uma série de textos com temas pertinentes sobre os vários problemas morais levantados diante do cenário de pandemia. Além de reflexões sobre ética na pesquisa, os artigos também falam de questões relacionadas aos segmentos que vivem em situação de vulnerabilidade no país, pois como afirmou Sergio, a “saúde pública tem um compromisso específico em proteger aqueles membros da sociedade que se encontram vulnerados ou com maior vulnerabilidade”. Os textos também foram republicados na página do GT de Bioética da Abrasco.
Por conta desse extenso e relevante trabalho, entrevistamos o professor Sergio Rego para que o professor falasse sobre a importância desse tema no atual cenário de emergência.
Confira a entrevista.
Abrasco: Em primeiro lugar, gostaria que o senhor destacasse como surgiu a ideia do GT de Bioética elaborar textos para debater as questões da pandemia e qual a importância deste trabalho?
Sergio Rego: O grupo de trabalho surgiu a partir da constatação de que haviam vários problemas com relevância moral associados com a pandemia. Com a criação do Observatório Covid-19 da Fiocruz, entendemos que poderíamos oferecer essas reflexões objetivas, com recomendações, para a sociedade em geral. Para isso, convidamos os membros do GT de Bioética da Abrasco, membros da diretoria da Sociedade Brasileira de Bioética, da unidade do Rio de Janeiro da rede internacional da cátedra da Unesco em bioética em Haifa, docentes do Nubea/UFRJ e docentes do Programa de Bioética, ética aplicada e saúde coletiva que congrega docentes da Fiocruz, UFRJ, UFF e UERJ. O que fazemos é estar atentos aos acontecimentos relacionados com a Covid-19 e avaliar aqueles que adquirem uma relevância ética importante, que debatemos e tentamos elaborar recomendações viáveis e razoáveis para a solução dos problemas.
Os problemas que abordamos são, a nosso ver, de grande importância, já que estão relacionados a questões práticas no contexto da pandemia, por exemplo: “Existe o dever de falar a verdade?”, “Existe o direito de dizer não?”, “É possível minimizar os critérios éticos para a realização de pesquisas no contexto de uma emergência sanitária?”, “Como enfrentar o falso dilema salvar vidas e salvar a economia?”, “O que seriam as boas práticas para a realização de pesquisas em comunidades?”e por aí vai.
Abrasco: A expectativa por uma solução rápida que “acabe” com a pandemia faz com que muitos pensem em soluções para pesquisas quebrando alguns requisitos éticos para “agilizá-las”. Qual a importância de reafirmar tais princípios nesse momento de emergência mundial?
Sergio Rego: Há sempre a expectativa de que em situações de emergências seria possível abrir mão do respeito a certos princípios em nome da “emergência”. Abrir mão do respeito a direitos básicos dos seres humanos e dos animais não-humanos não é moralmente justificável, especialmente para aqueles que serão os “pacientes” que perderão os direitos. Na prática essa ideia de que se pode abrir mão do respeito a direitos individuais e/ou coletivos é considerada apenas para ser aplicada aos mesmos indivíduos e coletividades que sistematicamente são desprovidos de seus direitos, ou seja, as comunidades faveladas, negras, indígenas e pobres em geral. Mas claro que é dito que isso é feito em nome do benefício de muitos. Algumas pessoas dirão, por exemplo, para um paciente quando incapaz de se manifestar pela concordância ou não em participar de uma pesquisa, por estar em respiração assistida ou condição semelhante, seria possível abrirmos mão do processo de esclarecimento para a obtenção de um consentimento. Sim, seria impossível obter um consentimento formal de alguém que não está consciente. Mas existem alternativas que precisam ser pensadas previamente. Em um hospital ou qualquer outra unidade de saúde onde pesquisas são realizadas deveria ser incorporada para suas rotinas de internação o pedido para o paciente indicar quem ele deseja que seja seu decisor substituto no caso dele estar incapaz de se manifestar, a exemplo do que já é feito no contexto desta pandemia no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ.
O respeito às normas éticas para a realização de pesquisas foi também um tema abordado por nós em uma recomendação explícita sobre a impropriedade de se relativizar os princípios éticos
Uma outra questão que começa a ser debatida internacionalmente está relacionada ao teste de futuras vacinas. A pergunta que a OMS tem proposto é: quais os requisitos que deveriam ser indispensáveis para que se possa contaminar deliberadamente uma pessoa para avaliar sua resposta imunológica a uma vacina que tenha sido produzida? Nós também vamos debater esse tema e apresentar nossos argumentos que sustentem uma posição ética.
Abrasco: Muitos entendem que a ciência seria algo descolado da realidade social, como se ela fosse neutra. Nos textos produzidos vocês abordaram questões como a Renda Básica e a importância do crescimento do sentimento de solidariedade. Qual a relevância de se falar disso no campo da pesquisa científica?
Sergio Rego: Devemos entender que leis da física ou da química, por exemplo, possuem universalidade exatamente porque, em condições semelhantes de temperatura e pressão, são reprodutíveis. Mas mesmo as ciências básicas já reconhecem que um grande desafio hoje é o de garantir a reprodutibilidade de experimentos, que sofrem influência até da forma como um recipiente é agitado, para dar apenas um exemplo mais banal. Nada, efetivamente, é neutro no campo da pesquisa científica, desde a elaboração da pergunta norteadora da pesquisa, a escolha dos métodos de pesquisa, dos participantes da pesquisa, etc. Não devemos confundir, todavia, com a chamada falácia naturalística, que seria a “confusão” entre fatos e valores. Ou seja, não é possível deduzir um valor a partir de um fato, ou ainda, é impossível deduzir o que deve ser a partir do que é. Da mesma maneira, não sendo neutra a ciência também não é correto ignorar a ciência em nome de seus próprios valores.
No campo da saúde, entretanto, a compreensão de que os determinantes sociais da saúde existem e que são efetivamente importantes nos fenômenos observáveis não é nova. Compreender essa influência e procurar elucidar e propor estratégias para o enfrentamento dos agravos à saúde é, portanto, essencial para uma resposta adequada às necessidades sanitárias.
Abrasco: Por fim, qual a importância do debate que vocês levantaram para os setores mais vulneráveis de nossa sociedade, especialmente na pandemia?
Sergio Rego: Devemos entender que, como preconizam os professores Roland Schramm e Miguel Kottow, a saúde pública tem um compromisso específico em proteger aqueles membros da sociedade que se encontram vulnerados ou com maior vulnerabilidade. Esse compromisso precisa ser assumido claramente como uma tarefa intrínseca à prática da saúde pública. Nesse sentido, nossa ação precisa ser essencialmente justa e considerar todas as injustiças estruturais que precisam ser enfrentadas para que tenhamos algo próximo a uma ação justa com resultados efetivos. Lembrando que a ciência em si não é boa nem má, ou seja, tome-se como exemplo a energia nuclear. Ela, em si, não é boa nem má, mas seu uso poder ser bom ou não. Nosso papel nesta discussão é de tornar visíveis os valores que estão sustentando decisões técnicas e questionar se elas são efetivamente boas ou justas, ou não. Boaventura de Souza Santos foi bastante feliz ao descrever a existência de uma linha abissal, separando os que pertencem a segmentos sociais mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico e que são invisibilizados. É preciso identificarmos os valores que estão ocultos em diversas decisões políticas ou técnicas que são tomadas também no âmbito dessa pandemia e denunciá-los, já que os discursos que promovem a discriminação usualmente são expressos sem que seus fundamentos sejam declarados. Um exemplo dessa discussão pode ser encontrado no texto que nosso GT elaborou sobre a necessidade da renda básica e o que destaca a necessidade de políticas sensíveis às questões de gênero e raça.