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“Garantir o direito à saúde nas prisões significa diminuir o número de pessoas cumprindo pena privativa de liberdade” – Entrevista com Martinho Silva e Luciana Boiteux

A velocidade do contágio e a letalidade do vírus SARS-CoV-2 vêm mobilizado diversos atores sociais para tentar evitar o que pode ser um verdadeiro genocídio: a disseminação em massa da Covid-19 entre homens e mulheres privados de liberdade. Desde 17 de março, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Recomendação nº 62/2020 , na qual orienta a magistratura de todo o país a adotar uma série de medidas preventivas à propagação da infecção, como aplicação preferencial de medidas socioeducativas em meio aberto; revisão e reavaliação de prisões provisórias e medidas socioeducativas a adolescentes; concessão de prisão domiciliar a todas as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto, semiaberto e as que compõem os grupos de risco: idosas, gestantes, pessoas com doenças crônicas, imunossuprimidas, portadores de doenças cardíacas, respiratórias e outras, como diabetes, tuberculose, doenças renais e HIV que possam levar a um agravamento do estado de saúde caso contaminadas pelo novo coronavírus. O documento indica também que apenados com diagnóstico suspeito ou confirmado de Covid-19 deveriam ser transferidos para o regime domiciliar, mediante a relatório da equipe de saúde. A justificativa é clara: a ausênciade espaço de isolamento adequado nos estabelecimentos penais – realidade do país com a terceira maior população carcerária do mundo.

No entanto, a decisão foi bombardeada por Sergio Moro, ministro da Justiça, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 30 de março. Com o título “Prisões, coronavírus e ‘solturavírus’“, e coassinado com Fabiano Bordignon, diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional, Moro declarou como suficientes a suspensão de visitas e a segregação de casos suspeitos dentro das próprias unidades, desconsiderando a Recomendação nº  62/2020, do CNJ. Ao fim, afirmou que “não é motivo, no momento, promover a libertação generalizada dos presos, o que nos faria ter que enfrentar, concomitantemente aos desafios decorrentes da pandemia e de suas consequências econômicas, uma crise na segurança pública”.

No entanto, em 8 de abril, o Ministério da Justiça teve de assumir os primeiros casos de Covid-19 em penitenciárias, e no último dia 15 a primeira morte foi confirmada no Instituto Penal Cândido Mendes, unidade para idosos no centro do Rio de Janeiro, fora todo um conjunto de notícias apontam que o novo coronavírus está prestes a estourar em todo o sistema prisional nacional.

A Abrasco posicionou-se no último dia 17 por meio da nota Coronavírus no cárcere: cuidado e custódia caminhando juntos, na qual ressalta que a saúde é direito de todos e dever do Estado, e que há 25 anos, a epidemia de HIV/Aids suscitou as primeiras normativas federais no sentido de garantir o direito à saúde nas prisões, desdobrando-se no Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário e na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional, políticas integrantes do nosso Sistema Único de Saúde, o SUS. “A atual pandemia, envolvendo outra doença infectocontagiosa, pode ser uma ocasião para que não só setores como também poderes pactuem em defesa da vida” finaliza a nota.

Outras entidades do universo jurídico e da saúde também têm se mobilizado. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) juntamente com as defensorias públicas dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, a Conectas Direitos Humanos, e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) entraram ainda no final de março com um requerimento de medida cautelar incidental no bojo da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 347, no qual apontaram para as degradação do sistema prisional e ressaltaram a adoção obrigatória da Recomendação do CNJ por todas as varas de execução penal do país. O pedido foi indeferido pelo Ministro Marco Aurélio de Mello no início de abril.

O Departamento de Endemias Samuel Pessoa, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (DENSP/ENSP/Fiocruz) lançou a nota técnica “Garantir o direito das pessoas presas ao acesso à assistência e medidas de prevenção preconizadas para a população geral do estado”, na qual aborda a inexistência Plano de Contingência para enfrentamento da pandemia pela Covid-19 no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro e aponta algumas ações minimamente necessárias e que podem e deveriam ser adotadas. Ainda no campo da saúde, o IBCCRIM do Distrito Federal lançou nota técnica elaborada por dois infectologistas da Universidade de Brasília (UnB) que também reforça a sugestão para adoção de medidas para descontenção de pessoas em situação de prisão, ou em outras formas de institucionalização, para a garantia da saúde de cada um e cada uma e para manutenção do funcionamento do sistema de saúde no DF.

Para ampliar esse debate, a Comunicação da Abrasco conversou com Martinho Silva, docente do Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj) e integrante do Grupo Temático Violência e Saúde da Associação; e Luciana Boiteux, professora da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ) e integrante do IBCCRIM. Na entrevista entremeada com respostas dos dois pesquisadores eles expõem avanços e limitações das políticas de saúde voltadas ao sistema penitenciário.

Abrasco:  Como os serviços de assistência à saúde dos encarcerados são estruturados no SUS?

Luciana BoiteuxEspecificamente em relação às medidas de saúde na prisão, o acesso da população carcerária a ações e serviços de saúde está prevista na Lei de Execuções Penais (n. 7.210/84) e pela Constituição Federal, bem como pela Lei do SUS nº. 8142/1990. que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde. Temos em vigor o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, instituído pela Portaria Interministerial nº. 1.777, de setembro de 2003, o qual define competências e regula as ações de saúde nas penitenciárias, seguindo as diretrizes da integralidade, intersetorialidade, hierarquização, humanização e participação social. Assim como a Portaria Ministerial nº. 1, de janeiro de 2014, instituiu a política nacional de atenção integral à saúde das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional no âmbito do SUS. Em tese, essas orientações gerais são muito importantes, mas na prática a efetivação dessas orientações de saúde não têm sido suficiente.

Abrasco: No artigo “Covid-19 e o sistema prisional: crônica de muitas mortes anunciadas”, você e demais operadores do direito criticaram a postura do Ministro da Justiça, que reafirmou a detenção como medida única para os casos de Covid-19 nas unidades penitenciárias. Agora já há uma morte confirmada. Você espera mudanças nesta postura do ministro Sergio Moro?

Luciana Boiteux: A posição do Ministro da Justiça, desde o início, foi a de se colocar contra a Recomendação nº 62 do CNJ, que determina medidas (penais e de saúde pública), para a proteção da vida e da saúde de presos e presas, magistrados e agentes penitenciários e do socioeducativo, diante da pandemia de Covid-19. Ao recusar qualquer medida desencarceradora, o ministro se limitava a indicar a proibição de visitas e de saídas de presos como medida e a adoção de separação entre os internos dentro das prisões, o que é impossível de ser realizado na maior parte dos estabelecimentos no país, superlotados e insalubres. O Ministro inicialmente alegava que nenhum caso concreto havia sido detectado. No momento atual, contudo, as evidências mostram que a propagação da epidemia nos presídios já está em curso. Além de Belém do Pará, Rondônia já teve o primeiro caso de agente confirmado com coronavírus e, em Brasília, 14 presos e 19 servidores testaram positivo. Na quarta-feira, dia 15, foi confirmada a primeira morte no país de um preso por Covid-19, no Rio de Janeiro. E ele era idoso e, portanto, grupo de risco. Se a recomendação do CNJ tivesse garantido a ele a prisão domiciliar ele poderia não ter sido contaminado. Se não temos mais confirmações de contaminação é porquê não tem sido realizada testagem. Diante disso, a preocupação de pesquisadores e da sociedade civil é enorme, pois estamos diante de uma perspectiva alarmante de contaminação e morte de milhares de pessoas sob a tutela do Estado, diante da rapidez com que essa contaminação possa se dar nas instituições prisionais, e a ausência de acesso à saúde, que hoje já é precária.

Abrasco: Na perspectiva do direito à saúde, como o Poder Judiciário historicamente se colocou?

Luciana Boiteux: A administração das prisões no Brasil é, na maior parte, de responsabilidade dos governos estaduais, com exceção dos presídios federais, administrados pela União. Porém, a decisão de manter ou soltar pessoas das prisões é do Poder Judiciário nos estados, a quem cabe tomar as decisões, com recursos para os tribunais superiores, em última instância pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O CNJ, que aprovou a referida Resolução, é um órgão fiscalizador do Poder Judiciário. Em tese, temos orientações gerais muito importantes sobre as condições de saúde no sistema prisional e o papel do SUS nas penitenciárias e unidades de custódia, como já referidas pelo Martinho, mas na prática a efetivação dessas orientações de saúde não têm sido suficientes.

O Poder Judiciário pouco tem interferido na questão da saúde no sistema penitenciário, e as poucas intervenções não têm sido eficazes. Temos notícia de uma Ação Civil Pública interposta pelo Ministério Público do RJ, que ainda não foi julgada, pedindo medidas contra a tuberculose nas prisões, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 no STF o qual, em medida cautelar, declarou a situação das prisões brasileiras como “estado de coisas inconstitucional” e solicitou providências em 2015, mas até agora pouco alterou a realidade e a violação de direitos humanos nesses espaços de privação de liberdade.

Abrasco: Pelo que você tem visto há alguma mudança no Poder Judiciário diante da gravidade imposta pelo novo coronavírus?

Martinho Silva: Iniciativas como o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAIPJ-MG, desenvolvido há mais de 20 anos no estado de Minas Gerais, é uma das experiências locais que inspirou a política nacional para atendimento de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei de 2014.  Esse programa ilustra bem como a saúde penitenciária não demanda apenas articulação entre setores – saúde, justiça e segurança – como também de poderes – Executivo e Judiciário – para garantir o direito à saude. Juízes e desembargadores trabalharam junto com psicólogos e assistentes sociais para favorecer que a medida de segurança não fosse sinônimo de internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, encaminhando muitas pessoas para atendimento ambulatorial, fora de estabelecimentos penais e de hospitais psiquiátricos também, dentro dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em convergência tanto com a Lei de Execução Penal de 1984 quanto com a Lei nº 10.216, de 2001, a lei antimanicomial.

Abrasco: Do ponto de vista dos direitos humanos, que ações deveriam ser minimamente tomadas com essa coletividade vulnerabilizada diante dos riscos da pandemia?

Luciana Boiteux: No IBCCrim, pensamos que não há condições de prevenir a contaminação e a potencialização da epidemia nos presídios brasileiros sem um mínimo de desencarceramento, que deve ser iniciado pela concessão de prisão domiciliar para os grupos de risco, que é o mais urgente para a proteção dos direitos humanos das pessoas encarceradas. No sistema socioeducativo, nossa recomendação é a substituição da medida de internação por medidas em meio aberto, em especial para crimes sem violência ou grave ameaça.

É urgente e necessário que o Poder Judiciário se sensibilize para as condições degradantes do sistema penitenciário e que reduza ao máximo o contato entre presos em celas lotadas e insalubres, enviando para prisão domiciliar ou liberdade provisória quem se encaixar nas condições estabelecidas pelo CNJ. Entendemos ainda ser necessário impedir que novos presos ingressem no sistema, somente sendo encarcerados aqueles que praticaram crimes com violência ou grave ameaça a pessoa. Quase 40% dos presos no Brasil hoje estão lá pelo crime de tráfico de drogas, praticado sem violência, são jovens pobres e negros, presos com baixa quantidade de drogas e sem importância para o crime organizado, que estão ocupando vagas que deveriam ser destinadas a presos acusados de crimes mais graves como homicídio, feminicídios e outros crimes violentos.

Abrasco:  O que a sociedade deveria aprender com a pandemia e modificar no sistema prisional ?

Martinho Silva: A gravidade imposta pelo novo coronavírus poderia ser uma oportunidade de fortalecer a parceria entre os poderes Executivo e Judiciário, diminuindo a superpopulação e também o superencarceramento. Garantir o direito à saúde é diminuir o risco de adquirir agravos e doenças, não só aumentar o acesso às ações e serviços de saúde, de maneira que garantir o direito à saúde nas prisões significa diminuir o número de pessoas cumprindo pena privativa de liberdade em celas insalubres, mal ventiladas e superlotadas, através de medidas já em curso de aplicação da prisão domiciliar para aqueles que não cometeram crimes violentos.

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