Emma Rawson – Te Patu em encontro com o presidente da Fiocruz, Mario Moreira, e o presidente da Abrasco e coordenador do CEE-Fiocruz, Rômulo Paes de Sousa. Foto: Peter Ilicciev Emma Rawson – Te Patu em encontro com o presidente da Fiocruz, Mario Moreira. Foto: Peter Ilicciev Emma Rawson – Te Patu no Redes da Maré. Foto: Peter Ilicciev Emma Rawson – Te Patu com a equipe da Abrasco. Foto: Letícia Maçulo Emma Rawson – Te Patu com a equipe da Abrasco. Foto: Letícia Maçulo
Nos dias 24 e 25 de julho deste ano, a Fiocruz, através do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz), e a Abrasco receberam a presidente da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública – The World Federation of Public Health Associations (WFPHA) – Emma Rawson – Te Patu. Pesquisadora, promotora da saúde, ativista e originária do povo maori, Emma é a primeira indígena a ocupar esta posição.
Durante a visita, acompanhada pelo presidente da Abrasco e coordenador do CEE-Fiocruz, Rômulo Paes de Sousa, Emma conheceu o Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), reuniu-se com o presidente da Fiocruz, Mario Moreira, e visitou o Complexo da Maré, recebida por dirigentes do projeto Redes da Maré, formalizado em 2007, voltado à garantia dos direitos da população residente, de mais de 140 mil pessoas.
A presidente da WFPHA ainda concedeu uma entrevista ao Canal Saúde da Fiocruz e conversou com a equipe de Comunicação, Relacionamento e Marketing da Abrasco. No bate-papo, a ativista abordou a importância de medidas decoloniais para a saúde pública, as contribuições que o Brasil e o Sistema Único de Saúde (SUS) podem levar ao mundo e a luta pelo direito dos povos indígenas e minorias sociais.
A entrevista está disponível em inglês e português.
Confira!
Traduzida e adaptada (Português/Brasil)
ABRASCO: Um perfil publicado em dezembro do ano passado na revista científica The Lancet menciona que a sua prioridade como presidente da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública – The World Federation of Public Health Associations (WFPHA) – é congregar esforços para decolonizar globalmente a saúde pública. Você pode nos explicar a importância das ações decoloniais no nesse âmbito?
Emma Rawson: Então, como profissional de saúde pública e alguém que trabalha nessa área há muito tempo, e como a maioria da nossa comunidade entende, saúde pública tem a ver com equidade e com garantir que todos recebam o que precisam, como precisam, quando precisam e onde precisam. Assim, quando pensamos em equidade e observamos a população mundial, aqueles que são mais afetados pela desigualdade são as populações indígenas, as comunidades indígenas. E sabemos disso porque temos as evidências, temos as pesquisas, temos os números.
500 milhões de pessoas no planeta são indígenas, milhões delas são da região da Ásia-Pacífico, de onde eu venho, e metade desse número não é reconhecida nos países de onde vieram. Portanto, é realmente importante, em primeiro lugar, reconhecer as populações indígenas e, em seguida, abordar as desigualdades que elas continuam a enfrentar e estão aumentando.
A razão para enquadrar e optar por avançar com a ideia e as ações de decolonização da saúde pública é muito simples. Não há lugar em nosso planeta que não tenha sido afetado de uma forma ou de outra pela prática da colonização. E a colonização ocorre quando um grupo exerce poder sobre outro e efetivamente impede esses outros grupos de viverem suas vidas da maneira que vieram a este planeta. Então, a parte importante desta conversa é que precisamos reconhecer que a colonização aconteceu, da forma que aconteceu, nos territórios em que foi imposta. O que, como eu disse antes, foi em basicamente todos os lugares do planeta, de formas e meios diferentes.
E muito consciente disso, sabendo que sou da Nova Zelândia e que essa é uma outra forma de colonização. E aqui estamos no Brasil, o que é uma história completamente diferente. E isso é de fundamental importância para a razão pela qual, na saúde pública, é importante que entendamos e definamos o que significa decolonizar a saúde pública em termos de reconhecimento da opressão e de que ela impediu acessos na saúde.
Então, como podemos, enquanto comunidade, viver nossas responsabilidades e obrigações? Como entender o que significa decolonizar a saúde pública, de forma a reconhecer o lugar dos povos indígenas no planeta? Porque, se não reconhecermos os povos indígenas, não estaremos trabalhando pela equidade desde o início.
E, portanto, estamos sempre começando em algum lugar no meio da história, o que significa que nunca abordaremos as desigualdades plenamente da maneira que podemos. A outra razão para reconhecer e compreender a descolonização da saúde pública é, de fato, destacar a riqueza e a beleza do conhecimento e das práticas indígenas. E, como você sabe, os povos indígenas têm vivido em simbiose com o planeta desde o início e têm assumido as responsabilidades de guardiães do planeta porque entendemos que, sem que o planeta esteja saudável, não seremos capazes de ser saudáveis como populações humanas no planeta.
Portanto, a riqueza do conhecimento e a riqueza da coesão social e do coletivismo, de uma perspectiva indígena, são um presente absoluto para o resto do planeta que, eu diria, se esqueceu desse modo de vida. Portanto, a descolonização é realmente importante para mim como líder de uma organização que tem muita influência, não apenas em nossas próprias comunidades, mas também nos Estados-membros, por meio do assento que temos no conselho executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), o que nos permite dar e incentivar as ações corretas e as práticas de tomada de decisão corretas em relação a todas as populações.
Novamente, voltando às comunidades indígenas como as mais afetadas, a decolonização da saúde pública nos ajuda a entender o que queremos dizer com priorizar as desigualdades da saúde indígena e como podemos ser melhores profissionais em todos os aspectos como uma comunidade de saúde pública.
ABRASCO: O Brasil tem o maior sistema público e universal de saúde do mundo – o SUS – que cuida de mais de 200 milhões de pessoas. Quais contribuições o Brasil e a Abrasco podem trazer para a saúde pública global?
ER: Bem, em primeiro lugar, posso dizer que é muito impressionante, em um país desse tamanho, ter um sistema universal de saúde que, para todos os efeitos, está trabalhando para cumprir suas obrigações e obter os resultados necessários para a população. Não é uma tarefa fácil. Mas o que eu diria é que, na verdade, o Brasil e a Abrasco já estão dando uma contribuição muito boa globalmente para a saúde pública.
Não estou dizendo que não há mais a fazer, mas, quando digo isso, vou falar de duas coisas que eu mesma conheço: o sistema de agentes comunitários de saúde (Atenção Primária à Saúde e Estratégia Saúde da Família) que vocês têm, e que tem sido, para todos os efeitos, muito bem-sucedido em garantir que as pessoas comuns tenham acesso aos serviços de que precisam, da maneira que precisam, onde precisam e quando precisam.
Recentemente, estive em Londres para uma reunião com o secretário de Estado da Saúde do Reino Unido, o Honorável Wes Streeting, e havia representantes do Brasil lá para falar. Ouvir o professor Luiz Augusto Facchini compartilhar sobre o sucesso do sistema de agentes comunitários de saúde e ver que agora o Reino Unido, em seu plano decenal, incluiu isso como modelo para suas reformas na atenção primária à saúde. Então, como vocês sabem, esse não é um esforço pequeno. Esperamos que o Reino Unido consiga assumir isso, executá-lo e torná-lo bem-sucedido. E a segunda coisa que quero falar, e que também sei que o Brasil defende, é a resolução da OMS sobre saúde indígena.
E, novamente, isso não é algo pequeno. Há, como eu disse antes, muitas partes afetadas por não ter isso como prioridade. E essa foi uma resolução enorme para superar os limites. Agora, o que precisa acontecer é garantir que a OMS tenha um plano de ação realmente sólido sobre como implementar as recomendações dessa resolução. Então, eu adoraria ver o Brasil e a Abrasco, em particular, defendendo essa resolução em todos os lugares possíveis para garantir que as ações corretas sejam incluídas, especialmente no plano de ação global. Mas não apenas isso, mas também liderar como implementá-la.
Então, essas são duas contribuições incríveis e possibilidades para futuras iniciativas sobre as quais posso falar. Mas, certamente, estar aqui, visitar a Fiocruz e observar as oportunidades e a maneira como a Fiocruz escolheu trabalhar em colaboração com a comunidade.
Então, é governo, advocacy, ativismo, de certa forma, pelo que eu vejo, se unindo de uma maneira que vai além dessas, sabe, quando digo, fronteiras tradicionais, fronteiras de saúde pública, na tentativa de criar uma ação coletiva melhor para alcançar resultados de saúde pública. Então, você está compartilhando isso, eu acho, de forma mais ampla com o mundo, de uma forma que o mundo possa se envolver, absorver e ser encorajado.
Esse é um dos maiores problemas que temos como comunidade de saúde pública: continuar trabalhando separados. Mesmo que muitas pessoas tenham boas intenções, a competição por recursos continua nos mantendo isolados. Então, ser mais criativo na forma como trabalhamos juntos como uma comunidade é definitivamente algo que eu promovo. Porque não se trata apenas de produzir conhecimento científico. É preciso envolver a comunidade em relacionamentos.
ABRASCO: Você é uma conhecida pesquisadora, promotora da saúde e defensora dos direitos indígenas e de minorias sociais. Infelizmente, estamos testemunhando uma escalada de ataques aos direitos dessas populações em todo o mundo, inclusive no Brasil. Como podemos coordenar esforços globais para garantir a manutenção dos direitos desses grupos, particularmente o direito à saúde?
ER: É uma ótima pergunta e eu meio que abordei isso na última resposta. Trata-se realmente de priorizar o tempo para se ter melhores relacionamentos e coordenar esforços. Sabemos como nos coordenar e sabemos como ter movimentos sociais, mas os movimentos sociais ainda não estão se coordenando bem o suficiente globalmente.
Então, na verdade, é algo que também estou priorizando no intuito de avançar na criação de um tipo diferente de movimento social. E, então, estamos no processo de descobrir como podemos fazer parte, eu acho, reunindo todas as redes com as quais estamos dialogando mais em tempo real e, de fato, compartilhando nossos recursos, nossos esforços e nossa energia além das fronteiras dos países. Porque, no fim das contas, não temos muito controle sobre os governos e as decisões que eles tomam.
Mas, se pudermos demonstrar maneiras diferentes de nos comportarmos uns com os outros, isso significa que estamos compartilhando o espaço de forma diferente, pensando de forma diferente. E quando digo isso, penso na decolonização como filosofia e pensando na mudança de mentalidade das pessoas.
Original (English)
ABRASCO: A profile published last December in The Lancet, mentions that your priority as president of The World Federation of Public Health Associations is to make efforts to decolonize public health globally. Can you explain to us the importance of decolonial actions for public health?
Emma Rawson: So, as a public health practitioner, as a person who’s worked in this arena for a long time, and as most of our community understands, public health is about equity and ensuring everybody gets what they need, how they need it, when they need it, where they need it. And so when we think about equity and we look at the population of the globe, those who are most affected by inequity are indigenous populations, indigenous communities. And we know this because we have the evidence, we have the research, we have the numbers
500 million people on the face of the planet are indigenous, millions of those are from the Asia Pacific region where I come from, and half of that number are not recognised in the countries that they came from. And so it’s really important in the first instance to recognise indigenous populations and then to address the inequities that they continue to face and are increasing.
The reason for framing and choosing to move forward with the idea and the actions of decolonising public health is really simple. There isn’t anywhere on our planet that hasn’t been touched in one way, shape or form by the practice of colonisation. And colonisation is where one group holds power over another and effectively prevents those other groups from living their lives in the way that they arrived on this planet to do. And so the important part of that conversation is that we need to recognize that colonisation occurred in the way that it occurred in the places that it occurred in, which, as I said before, is pretty much everywhere on the planet in different ways and forms.
And very conscious of that, knowing that I’m from New Zealand and that’s one face of colonisation. And then here we are in Brazil, which is a whole other story. And so this is centrally important to why in public health, it’s important that we understand and define what decolonising public health means in terms of recognising the oppression and recognising that it has prevented access to the social determinants of health that we like to talk about so much in public health.
So how can we, as a community, live our responsibilities and our obligations to one, understanding what it means to decolonise public health, which recognises the place of indigenous people on the planet. Because if we don’t recognise indigenous people, then we’re not working on equity from the beginning.
And so therefore we’re always starting somewhere in the middle of the story, which means we will never be addressing inequities fully in the way that we can. The other reason for recognising and understanding decolonising public health is to actually highlight the richness and the beauty of indigenous knowledge and indigenous practices. And, you know, indigenous people have been living symbiotically with the planet since the beginning and have lived the responsibilities of guardianship of the planet because we understand that without the planet being healthy, we will not be able to be healthy as human populations on the planet.
So the richness of knowledge and the richness of social cohesion and collectivism from an indigenous perspective, is an absolute gift to the rest of the planet that has, I would say, forgotten that way of living. So decolonising is really important to me as a leader of an organisation that has a lot of influence, not only in our own communities, but to member states through the seat that we have on the executive management board of the World Health Organization (WHO), enables us to give and encourage the right actions and the right decision making practices in regards to all of the populations. Again, going back to indigenous communities being those most affected, decolonising public health helps us to understand what we mean by prioritising indigenous health inequities and how we can be better practitioners across the board as a public health community.
ABRASCO: Brazil has the largest universal health system in the world. SUS, the Unified Health System, that takes care of more than 200 million people. What contributions can Brazil and Abrasco make to global public health?
ER: Well, firstly, I may say it is very impressive in a country of this size to have a universal health system that for all intents and purposes, is working to meet its obligations and get the outcomes that are needed for the population. It’s not an easy task at all. But what I would say is that actually Brazil and Abrasco are already making a really good contribution globally to public health.
I’m not saying that there isn’t more to do, but when I say that, I’m going to speak to two things that I know myself, and that is the community health care worker system that you have, and that has been, for all intents and purposes, very successful in terms of ensuring that everyday people get the access to the services that they need, the way that they need it, where they need it, when they need.
And so I recently was in London at a meeting with the State Secretary in the uk, the Honourable Wes Streeting, and there were representatives from Brazil there to speak. And to hear professor Luiz Augusto Facchini share about the success of the community health workers system and to see that now the UK has, in their ten year plan, included this as a model for their primary healthcare reforms. So you know, that’s not a small effort. So we hope that the UK will be able to take that up and run with it and make it successful. And the second thing that I want to speak about that I also know that Brazil has championed is the WHO resolution on indigenous health.
And so that is, again, not a small thing. There are, as I said before, many parts that are affected by not having that as a priority. And so that was a huge resolution to get over the line. Now what needs to happen is we need to make sure that the WHO has a really sound action plan on how to implement the recommendations from that resolution. So I would love to see Brazil and Abrasco particularly taking up the championing of that resolution in all of the places possible to ensure that the right actions are included, particularly in the global action plan. But not only that and leading out how to implement.
So those are two amazing contributions and possibilities for further contribution that I can speak to. But certainly being here and visiting Fiocruz and looking at the opportunities and the way in which Fiocruz has chosen to work collaboratively with the community.
So it’s government, community advocacy, activism, sort of, as I can see it anyway, coming together in a way that’s working past those, you know, when I say traditional borders, public health borders silos to try to create a better collective action towards achieving public health outcomes. So you’re sharing that, I think more broadly with the world in a way that the world can engage with that and absorb that and be encouraged.
Because that is one of the biggest issues we have as a public health community is continuing to work in silos. Even though a lot of people, a lot of good intent, you know, resource competition continues to keep us staying in those silos. So being more creative about the way we work together as a whole community is definitely something that I promote. Because it’s not only about producing scientific knowledge. You need to engage the community in relationships.
ABRASCO: You are a well-known researcher, health promoter, and defender of indigenous and minority rights, and we are unfortunately witnessing an escalation of attacks on these people’s rights around the world, including in Brazil. How can we coordinate global efforts to ensure the rights of these populations, particularly their right to health?
ER: It’s a great question and I sort of touched on it in the last answer. It really is about prioritising time to have relationships and to have more coordinated efforts. We know how to coordinate and we know how to have social movements, but the social movements still are not coordinating well enough together globally.
So actually it’s something I’m also prioritising in terms of trying to move forward in terms of creating a different kind of social movement. And so we’re in the process of figuring out how we can be part of, I guess, bringing together all of the networks that we are talking together more in real time and actually sharing our resources and sharing our efforts and sharing our energy across country borders. Because at the end of the day, there is so much control we do not have over governments and the decisions that they make.
But if we can demonstrate different ways of behaving with one another, that means that we’re sharing space differently, thinking differently. And when I say this, thinking about decolonising as a philosophy and thinking about people’s mindsets shifting and if you like going back to a more traditional way of operating societally, then we might get.