Nas intenções expressas em textos ou apenas em discursos de novos projetos para o Brasil, a saúde só aparece de banda. Ora é um gasto a ser cortado, ora um benevolente programa de inclusão social. A conexão entre as ações assistenciais e seus resultados medidos em saúde quase desapareceu, levando junto a razão de ser do SUS universal. O objetivo do SUS é prolongar e melhorar o transcorrer da vida da população. Outros propósitos, tais como a premência da oferta de serviços sociais básicos para pobres, a obtenção de retornos de investimentos privados e a busca de votos, deveriam ser orientados pela progressiva e permanente ampliação do direito à saúde. O que era para ser meio virou fim. O par corrupção-sonegação, sempre presente nas explicações sobre o que era para ser mas não é, não captura a totalidade da perda do sentido original de um sistema de saúde para todos. Existem cordas esticadas para demarcar o uso particular de bens teoricamente comuns, consideradas lícitas. Ocorrências extravagantes, mas amparadas pelas leis, contribuem para a transformação do público em privado. As mais recentes podem ser lidas nas linhas ou entrelinhas das restrições e oportunidades da recessão econômica.
Em diversas negociações coletivas de servidores públicos o aumento nos valores do reembolso de planos privados de saúde foi muito superior ao dos salários. O governo federal prevê o pagamento em 2016 de R$ 145 (aumento de 22,6%) para cada funcionário da administração direta e seus dependentes. Os gastos orçamentários com saúde para quem trabalha no Legislativo e Judiciário variam desde o ressarcimento integral de qualquer despesa, ou pagamento integral ou parcial de planos privados à organização de redes credenciadas. Portarias e Instruções Normativas nos âmbitos do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça regulamentam o valor da devolução do plano privado, que pode ser integral ou 80% de limites por faixa etária (mais de mil reais, acima de 59 anos).
A Caixa Econômica Federal, especificamente a Caixa Seguradora, começou a comercializar planos privados de saúde falso-coletivos. Uma empresa estatal, responsável por programas sociais, em um país que tem SUS, decidir investir na privatização da saúde já é esquisito. Seguir o caminho da venda de produtos que são semirregulamentados (reajustes das mensalidades e a rescisão dos contratos ainda são decididos unilateralmente pelas empresas) torna-se espantoso. O mínimo esperado por uma seguradora com participação expressiva de fundos nacionais seria contribuir para cessar um processo de captação de dinheiro que promete planos relativamente baratos na compra e entrega serviços de difícil acesso e má qualidade, e tende a expulsar idosos e doentes graves no médio prazo.
Passando por fora da rota esperada para o desembarque do capital estrangeiro no setor saúde, uma grande empresa americana comprou um hospital filantrópico em São Paulo. A aquisição de hospitais, especialmente a troca de natureza filantrópica pela lucrativa, em países desenvolvidos não é usual. Uma instituição de saúde costuma incorporar em sua estrutura societária a construção de longa duração dos direitos sociais, que por definição não estão à venda. A aquisição de um estabelecimento, que desde os anos 1950 se beneficiou de isenções fiscais, ocorreu como se não houvesse história. As contribuições e impostos não pagos aos cofres públicos desapareceram na transação. Reaparecem, porém, nas pretensões da sociedade filantrópica de seguir abrigada sob o manto da proteção tributária para realizar novos investimentos, inclusive na saúde, que asseguram ganhos financeiros. Inesperadamente, mas sempre com total amparo legal, o que era caridade, dedicação humanitária, transformou-se em plataforma assistencial de empresa de planos de saúde e mais um fundo de privatização da saúde.
Todos sabem que corrupção tem efeitos e custos negativos para a sociedade. No entanto, as vias legais para destinar recursos públicos para finalidades não universais ainda são encaradas como desígnios naturais. A “parlamentarização” do Poder Executivo desdobra-se na compreensão sobre o SUS no baixo e alto clero dos servidores públicos. Sindicalistas de esquerda que supõem ter “conquistado” plano privado de saúde deixando “de favor” o SUS para os pobres e discussões da magistratura sobre se madrasta e padrasto podem ser dependentes do plano pago pelo governo expressam o afastamento da burocracia pública do público. As franquias para que empresas de saúde, inclusive estatais, imponham ao Brasil uma privatização ampla, porém seletiva, em relação as demandas e procedimentos de maior lucratividade não ficam atrás. Nas apresentações de escritórios de advocacia especializados em atrair, facilitar inversões na assistência privada, a legislação brasileira favorável ao transito de empresas e capitais e a piora do SUS é um sinal positivo para a atração de empresas e capitais.
São ilusórias ideias, propostas, projetos que atribuem o desmonte da saúde pública apenas a desvios ilegais. Seu enquadramento entre as áreas na qual reina a ineficiência alocativa e irresponsabilidade fiscal requer uma reflexão escrupulosa. Ver a si mesmo como outros o veem, independente do quão certo se esteja, é um santo remédio. O uso particular e particularizado de fundos públicos para categorias profissionais, a atuação de empresas estatais e a liberalização de normas para ampliar mercados privados seriam ilegais ou no mínimo considerados antidemocráticos em outras sociedades. A estabilidade institucional não é ameaçada apenas pela corrupção. A redução da desigualdade, dessa imensa desigualdade nas chances de adoecer e viver, é um desafio incontornável para o correto e honesto exercício do poder político.
(Artigo originalmente publicado no jornal O Globo, em 11 de abril de 2016)