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Um auditório repleto de pesquisadores, estudantes e gestores concentrou-se na no Grande Debate Estado Democrático e Gestão Pública da Saúde, realizado na noite de 30 de julho durante o 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o Abrascão 2015.

Antes da composição da mesa oficial, a homenagem feita ao pesquisador e comunista italiano Giovanni Berlinguer, falecido em abril deste ano, reuniu históricos militantes do campo, como Sonia Fleury, Gastão Wagner, José Carvalheiro e Heleno Correia, que prestaram homenagens àquele que, pela primeira vez na história do pensamento da saúde, sistematizou as relações da exploração capitalista com a vida dos homens e das mulheres ao longo de uma profícua carreira, abordando desde as condições dos trabalhadores das fábricas até as relações de domínio e de direito sobre os corpos – Confira aqui a matéria.

Na sequência, o professor aposentado da UFG Itami Campos conduziu o Grande Debate, passando a palavra para André Vianna Dantas, professor e pesquisador da Escola Politécnica em Saúde José Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e membro do Fórum de Saúde do Rio de Janeiro.

Vianna Dantas trouxe conceitos da luta de classes numa perspectiva de retomar um debate esquecido e relegado pelas esquerdas ao longo dos últimos anos, segundo ele, por ter-se apostado na ocupação dos espaços na estrutura do Estado e deixado de lado a organização da classe trabalhadora e suas mobilizações de base, o que abriu caminho para formas de privatização do Sistema Único de Saúde (SUS), e das políticas públicas sociais como um todo.

As táticas e estratégias que as classes trabalhadora e médias têm se utilizado para fazer valer seus interesses têm se apoiado, na análise de Vianna Dantas, unicamente na disputa da democracia formal. “Essa tática não parte do nada, de indivíduos ou pequenos grupos, mas sim está enraizada na realidade social. A concepção que embasa está na noção de um Estado como máquina, um local físico de poder na qual o mais competente poderia trocar a pele desse Estado e transformá-lo a seu bel prazer”, criticou, mostrando que, dentro do quadro de crise estrutural do capitalismo, esse tipo de análise perde a validade.

Após passar pela discussão dos autoritarismo de esquerda e de direita que marcaram a vida política brasileira nas décadas de 1970 e 1980, o pesquisador reforçou a ideia de que o movimento pela democratização falhou por acreditar que o Estado democrático, sucessor do regime militar confirmaria a tese de a democracia ser um valor universal, ou seja, acima das classes sociais. No entanto, para Vianna Dantas, isso não se confirmou para a classe trabalhadora. “Abrimos mão de democracia e supervalorizamos o papel do Estado como mediador da nossa emancipação, uma noção de ocupação de espaço que demonstra caduquice. O nosso estranhamento com o cenário atual resulta da falta de ferramentas teórico-políticas para reagir a este estado de coisas”.

O pesquisador não negou o avanço da construção democrática na sociedade brasileira, mas frisou que ela não pode ser vista como um objetivo tido como alcançado. “A tática do reformismo precisa ser superada, pois ela carrega a crença de que podemos reformar o capitalismo e melhorá-lo, o que está na base do Estado de Bem-Estar social, ainda alimentado como esperança por parte dos setores de esquerda”. Na atual configuração, o pesquisador vê um duplo movimento: ao mesmo tempo em que se entrega o fundo público para financiamento privado, a política deixa de ser a mediadora da gestão, que passa a ser gerida por uma lógica empresarial, na qual transforma usuários de direitos em clientes de serviços.

Esse mecanismo, para Vianna Dantas, precisa sair das amarras colocadas por interesses empresariais e reencontrar os valores e posicionamentos da classe trabalhadora. Em sua vez, para dar este passo, os trabalhadores devem retomar uma série de questionamentos para acabar de vez com a crise em que se encontram as esquerdas desde o fim do dito socialismo real. “A valorização universal dessa democracia mais nos fez avançar ou nos imobilizou? A fé na conquista do Estado logrou a emancipação que pretendíamos? Ou no mínimo está indicando que caminhamos para isso? Continuamos a alimentar esperanças por esse capitalismo democrático, reformado, ou um quimérico Estado de Bem-Estar social? As nossas antigas lideranças de classe ainda podem ser consideradas dignas de confiança? São perguntas que indicam que precisamos rever nossas práticas”.

Democracia e ação regulatória do Estado: Inês Rugani, pesquisadora e atual diretora do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (INU/Uerj) e integrante do Grupo Temático Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva (GT ANSC/Abrasco) iniciou sua fala marcando o campo e o local de fala de onde partiria: a relação público-privada e os conflitos daí decorrentes, principalmente no campo da Alimentação e da Nutrição, fruto das reflexões que faz junto à Frente  pela Regulação da Relação Público-Privada em Alimentação e Nutrição.

A apresentação percorreu três temas: a relação público-privado e os conflitos de interesse; elementos e desafios do cenário brasileiro, e a relação entre democracia e a ação regulatória do Estado. Em todas elas, Inês pontuou a necessidade de “deixar claro quais recortes que orientem nossa ação política, e não aqueles que nos leve a um imobilismo por conta de abordagens academicistas e relativistas”.

A pesquisadora demarcou que nem sempre o interesse público é sinônimo de práticas governamentais. “Quando falamos de interesses públicos, dizemos dos valores e princípios expressos em políticas públicas e em mecanismos legais de proteção e garantia de direitos. Além disso, nos referimos aos princípios presentes na ação política de defesa dos interesses coletivos, como independência, transparência, equidade e soberania”.

No entanto, os interesses públicos estão em constante disputa com os mais diversos atores sociais, numa complexa rede que entrelaça a atuação de instâncias dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, passando por grandes empresas de capital nacional e internacional; pequenos e médios produtores agrícolas e varejistas até chegar à Academia, às organizações científicas e não governamentais dos mais variados tipos.

+ Confira a apresentação de Inês Rugani

Em particular no sistema alimentar, a atuação das indústrias e das empresas é muito diversificada, indo de insumos agrícolas a máquinas; da criação de fórmulas alimentares e produtos farmacêuticos à produção e à comercialização de alimentos in natura e ultraprocessados. Ao proceder unicamente a favor de seus interesses comerciais, destacou Inês, essas empresa comprometem a segurança alimentar e nutricional da população e a soberania alimentar do país, conformando um sistema alimentar pautado num modelo concentrador de poder e de renda e altamente dependente de corporações multi e transnacionais.

Para além dessas atividades-fim, a pesquisadora listou as ações desenvolvidas por essas empresas que influenciam o setor público por meio de uma série de mecanismos extremamente naturalizados em nossa sociedade.  “Essas organizações prestam serviços para os governos; participam de processos decisórios na formulação de políticas públicas; firmam acordos voluntários; estabelecem campanhas educativas; interferem na produção de conhecimento; financiam campanhas eleitorais; criam organizações não-governamentais ao mesmo tempo em que são objeto de ações regulatórias pelos mesmos governos. A lista de exemplos é infinita”.

De acordo com Inês Rugani, o grande desafio posto é a definição da relação institucional e política a ser estabelecida entre o Estado e os segmentos do setor privado cujas as práticas ferem os princípios das políticas públicas e, por outro lado, as relações com os segmentos privados nas atuações convergentes com os mesmos princípios.  “Quando pensamos na tríade Estado-Mercado-Sociedade é muito importante termos noção desse contexto: das empresas atuando de maneira avassaladora, promíscua com o Estado, e muitas vezes se travestindo de sociedade civil por meio de organizações não governamentais e outros mecanismos, usando da base da discussão e do acúmulo que temos sobre os direitos. Isso fica muito claro no debate sobre a regulação da publicidade, que atualmente vem com o discurso do direito à expressão comercial ao invés de utilizar os nomes corretos: publicidade e estratégias de venda”.

Numa teia assimétrica de relações e influenciada fortemente pelo poder econômico, a democracia encontra-se ameaçada, na visão da debatedora, que recorreu a trechos de José Saramago e Vladimir Safatle para apontar que, mesmo com as falácias do mercado que legitimam a plutocracia, ou seja, o governo das elites, apenas o Estado é a estrutura social capaz de prover regulação, garantir a manutenção das políticas públicas sociais e proteger segmentos fragilizados. “Nesse sentido, percebemos que quando a ação regulatória do Estado está alinhada aos interesses públicos, ela é fundamental para a defesa da democracia e de seus valores. Basta ver o nível de resistência dos setores econômicos a qualquer forma de regulação de suas práticas”.

Ampliar o debate social, desmascarar discursos tecnicistas, de parcerias e de acordos voluntários em temas antagônicos, investir em práticas de advocacy junto aos órgãos legisladores e judiciários, e afirmar o modelo de sociedade que queremos são alguns dos caminhos apontados por Inês Rugani. “A sociedade civil tem de querer a regulação, vocalizar seus interesses e aprofundar o debate nas nossas instituições, como a implantação de códigos de conduta sobre a relação público-privado na produção e difusão de conhecimento, e na defesa da agenda regulatória com a participação dos movimentos sociais”, concluiu ela, retomando Saramago para afirmar a necessidade de reinventar a democracia.

As subjetividades em jogo na construção da gestão pública da saúde: A reinvenção da democracia foi o ponto de partida de Gastão Wagner. “Não há estado que consiga representar o interesse público sem movimentos sociais fortes e sólidos que, nas suas práticas, tragam essa reinvenção”, iniciou ele, articulando a luta da Reforma Sanitária brasileira a da implementação do SUS como pilares dessa perspectiva.

A capacidade das forças anticapitalistas e das forças capitalistas em fazer política norteou a fala do professor da Unicamp, que citou Karl Marx ao destacar que pouco se atenta à perspectiva dialética e política de sua principal obra, O Capital, e que o exercício de relacionar as estruturas econômicas e sociais em sua dimensão histórica precisa ser recuperado.

“É através da política que vamos conseguir democratizar e fazer do Estado e dos governos instrumentos de defesa do interesse público. Na perspectiva dos dominados e explorados, é a política que pode expandir as condições para construir bem-estar e justiça social, dignidade humana, defender a vida e a natureza”, explicitou Gastão Wagner.

Na sequência, Gastão Wagner discorreu sobre a natureza do capitalismo como uma representação simbólica da riqueza acumulada pelas sociedades, seus meios de produção e circulação, e gerida pelos sujeitos em ação política, cada vez mais interessados em ampliar essa acumulação e, por conta disso, mobilizadores de ações cada vez mais agressivas, o que também reflete a capacidade das forças da democracia em ameaçar a hegemonia do Capital. Ele reforçou que o modo capitalista não impede que existam produções e resistências anticapitalistas, mas que, em seu estágio atual, produz modalidades e racionalidades cada vez mais sofisticadas e híbridas, que carregam dentro de si, valores muitas vezes contraditórios.

Dentre os tipos, ele destacou quatro subjetividades. A primeira é a subjetividade comunitária, alicerçada nas pautas e ideários comunais ao longo da história com a perspectiva da construção coletiva e defesa daqueles que reconhece como iguais e que, na gestão, implementam uma “cogestão revolucionária e democrática de todas as instituições”.

Já a subjetividade empreendedora é a antípoda da anterior: “Enquanto a filosofia base da comunitária era as visões de esquerda, o humanismo, as visões socialistas, a filosofia que mantém essa visão empreendedora contemporânea é o liberalismo, um estímulo a que cada indivíduo, corporação e empresa busque seus próprios interesses, mesmo que para isso tenha de haver a aniquilação do outro. Sua arena é o mercado, o Estado Mínimo, a noção do mérito do mais apto”, explicou Gastão Wagner, que percebe este discurso, restrito às elites empresariais até a década de 1950, ser propagado hoje como uma visão ideológica massificada, que inventa diferentes formas de gestão que negam os direitos a priori e que leva a lógica concorrencial para dentro de quaisquer instituições privadas e públicas. “É a lógica da gestão por resultados que impera em nossos programas de pós-graduação; é a tentativa de desconstruir o que essa mentalidade capitalista não conseguiu desregulamentar como lei. É a linha da privatização do SUS no Brasil”, sentenciou.

As duas últimas são as subjetividades disciplinar, voltada para os trabalhadores e baseada em princípios moralistas e de controle dos corpos e das mentes para formar sociedades disciplinares; e hedonista, que busca no consumo desenfreado formas de dar sentido e significado à vida. “Essas formas de subjetividades estão presentes no cotidiano e explicam em grande parte as dificuldades da sociedade civil em repensar as nossas estratégias. Particularmente, porque as estratégias de construção do espírito comunitário tenderam a opor o coletivo ao desenvolvimento do indivíduo, tenderam a assumir visões moralistas”, argumentou.

Para Gastão Wagner, o desafio é reconstruir, nos movimentos sociais e nas entidades comprometidas com a sociedade civil, o reforço dos valores comunitários e criar possibilidade de convivência para essas subjetividades heterogêneas no que elas têm de melhor. O melhor exemplo, para ele, é a própria construção do SUS. “Não é possível analisar a hegemonia capitalista sem examinar o que foi feito em nosso nome, em nome da esquerda, e o que conseguimos reproduzir nos espaços de não-mercado. […] Ao analisar as inovações gerenciais na saúde nos últimos 100 anos, percebemos que 80% dessas práticas surgiram em espaços anticapitalistas”, exemplificou o docente, referindo-se à invenção da Atenção Primária, à Reforma Psiquiátrica, aos Centros de Referência em Aids/HIV e aos espaços multiprofissionais.

A sofisticada cultura dos sistemas públicos de saúde, no Brasil, foi enriquecida pela cultura da democratização da gestão, da democratização do Estado, e nesta senda que Gastão, já adiantando suas posições como novo presidente da Abrasco, abordou os desafios da gestão pública do SUS. “Temos de abandonar o complexo de vira-lata e valorizar a efetividade e a eficácia dos sistemas públicos de saúde. Mostrar que produzimos saúde numa relação custo-benefício superior às praticadas pelo mercado”, pontuou, criticando as estratégias de enfrentamento ao discurso privatista e sinalizando nas propostas de uma nova racionalidade de gestão a melhor estratégia para a garantia da universalidade e integralidade em saúde.

“Tenho criticado a forma de enfrentar a privatização no movimento sanitário por ser muito mais de crítica e protesto do que de proposição de uma outra racionalidade, um outro Estado, uma outra forma de gestão anticapitalista, baseado na democracia e na regulação do interesse público. O que queremos no lugar das OS? Proponho que o SUS seja um sistema unificado de fato, que a gente faça uma reforma na gestão pública, voltada para a gestão democrática e que descontrua em três, cinco anos, todas as organizações sociais e fundações privadas”, afirmou.

O rico patrimônio da saúde, para Gastão, é o maior valor do Movimento da Reforma Sanitária, e deve abarcar a riqueza dos demais movimentos sociais e transformar as subjetividades que compõe a sociedade, bem como a nossa própria prática. “A vitalidade da racionalidade comunitária passa por respeitar a cultura da festa, da sexualidade livre e singular. Esse exercício da solidariedade passa pela gentileza, pela capacidade de escutar o outro e demonstrar no cotidiano que não fazemos só competição. Isso implica no efeito-demonstração: Como está hoje a nossa relação professor-aluno? Qual é a relação diretoria da Abrasco com os associados? Qual é a relação da Abrasco com outras entidades? Qual é a relação da Abrasco com a maioria de não-associados? A construção dessa utopia concreta passa pela transformação dessas relações, bem como das práticas dos movimentos sociais”.

No encerramento, Gastão articulou o conjunto das ideias de sua fala, convocando os presentes a abraçar as novas racionalidades já em curso, racionalidades que são construções da própria história do movimento sanitário e que devem nortear a ação da Associação nos próximos anos na sua intervenção sobre o papel do Estado e da gestão pública de saúde.

“Temos de reinventar a democracia para nós mesmos. Com isso, nossa legitimidade social aumenta; com isso, a gente derrota essa ideologia do empreendedorismo individual, mostrando que a iniciativa individual é fundamental para a construção de sentidos e significados para as pessoas, mas que deve ser a mais coletiva possível, valorizando as instituições que a representam. O Estado democrático é o Estado no qual o controle da sociedade civil é cada vez maior, não só por meio das eleições, mas através das regulações, da forma de gestão participativa. Chamamos de Programa Aberto nossa proposta de gestão para a Abrasco. Temos ainda dúvidas, como na condução das políticas de Ciência e Tecnologia e outras, mas temos um rumo. É o rumo da Reforma Sanitária; é o rumo do Direito Universal à Saúde; é o rumo da ampliação das políticas públicas e da transformação das cidades em espaços solidários”.

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