“Nunca vi esse auditório tão cheio”. Esta frase foi repetida por diferentes pessoas, de diferentes idades, histórias e representatividades, de docentes a sindicalistas, de estudantes a profissionais. “É o chamado do SUS”, definiu Gulnar Azevedo, diretora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), ao agradecer a presença do público que compareceu em peso, ocupando as cadeiras, os corredores e as laterais do auditório 11 no debate “UERJ em Defesa do SUS”, realizado na quarta-feira, 28 de setembro. Iniciativa que compõe uma série de eventos já realizados e futuros, a atividade reuniu grandes nomes do debate sobre o Sistema Único de Saúde (SUS): Gastão Wagner de Souza Campos, presidente da Abrasco e professor da FCM/Unicamp; Reinaldo Guimarães, abrasquiano integrante do Comitê de Assessoramento em Ciência e Tecnologia em Saúde e vice-presidente da A Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA); Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, e Alexandre Gil, diretor do Conselho Federal dos Psicólogos (CFP) e integrante do Conselho Estadual de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (CES/RJ).
Visivelmente emocionado ao ver o auditório lotado de jovens, Gastão Wagner expôs com eloquência e força o sentimento que abarca boa parte dos militantes da Reforma Sanitária. “Estamos perplexos, mas estamos ativos. Tenho dito que a esperança na defesa do SUS somos nós mesmos. O que fazer, então? Unir pessoas e instituições que defendam a democracia”, frisou de forma enfática.
Após prestar uma homenagem ao IMS, instituto central para a formulação e criação do SUS, Gastão centrou suas críticas ao Projeto de Emenda Constitucional 241 (PEC 241), que prevê o congelamento dos gastos constitucionais com as políticas sociais de Saúde, Educação e Assistência Social por 20 anos. Para ele, somente mentes que fazem cálculos frios poderiam propor tal medida, uma verdadeira sentença de morte por doenças e agravos de saúde que poderiam ser evitados. Ele acredita que só valorizando a dimensão humana da saúde em todas as áreas, do atendimento na ponta até a concepção de gestão é possível fazer um sistema de saúde digno e cidadão. “Temos de criticar o cinismo e a desvalorização do ser humano contido nessa PEC. A racionalidade não pode ser só eficiência fiscal”.
SUS Brasil sem OS: Ele expôs as principais ideias do que chama de projeto SUS Brasil, a criação de uma autarquia formada pelos entes federados que repense centralmente os modelos de atenção e gestão na Atenção Básica e Reabilitação, constituindo regiões de saúde com efetivo poder de gestão de seus equipamentos e de política de pessoal, com metas de esvaziamento e fim das Organizações Sociais (OSs). “Não tivemos nenhum governo nesse país comprometido em estabelecer de fato o SUS. Acho que está na hora de abrir a conversa com os políticos de que queremos sim um sistema público de saúde que não tenha OS. A luta contra a OS é a luta contra os modelos fast food de gestão”, sentenciou o docente, convidando a todos fazerem pelo SUS o melhor trabalho que pudermos. “Temos de acreditar na nossa capacidade de se recompor. Que a gente continue lutando para elevar os limites éticos e políticos de nossa ação profissional”, ressaltou Gastão.
Reinaldo Guimarães foi o segundo a falar, e iniciou sua participação remontando à homenagem feita pelo povo inglês ao National Health Service (NHS), o sistema público de saúde da Grã-Bretanha, na abertura das Olímpiadas de 2012. O orgulho dos ingleses pelo sistema de saúde é entendido por Guimarães como a expressão viva do espírito da época de seu lançamento, no ano de 1945, quando aquela sociedade ansiava por projetos coletivos e pela consolidação da democracia. “O SUS é o nosso NHS e também nasceu do espírito de uma época em que a sociedade brasileira clamava por mais democracia. Era esse o nosso espírito de 1985. Estabelecemos uma transição pactuada por cima, lutamos e conseguimos a mola propulsora do SUS que foi a lei 8.080. No entanto, logo após a promulgação da Constituição, o centrão tomou conta do governo Sarney e matou o espírito de 1985”. Desde então, para Reinaldo, o SUS manteve-se nas cordas do ringue do embate social, soerguido constantemente pelas lideranças da Reforma Sanitária. “O Novo Regime Fiscal proposto pela PEC 241 quer derrubar o SUS por nocaute”.
Além da PEC 241, o professor apontou quatro elementos centrais, que mesmo ainda não votados nem implementados pelo Ministério da Saúde, configuram a tendência deste governo anti-SUS: a proposta dos “planos populares”; possibilidade de gastos para pagamento das Organizações Sociais autorizado sem compor os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); a possibilidade de ressarcimento dos serviços prestados não ao Fundo Nacional da Saúde, mas diretamente destinado à unidade prestadora; e a mudança no perfil dos profissionais do Programa Mais Médicos. Por meio de gráficos, mostrou as perdas sensíveis que o Brasil pode vir a sofrer causo o mesmo ideário já estivesse aplicado hoje, uma garfada em um pouco mais do que a metade do que foi investido nos últimos quinze anos. “Apesar de entender que estamos num ambiente acadêmico que deve ser marcado pela reflexão e pelo ponderamento, tenho certeza que a gravidade dos fatos exige de nós militância em defesa do SUS”, complementou.
A PEC 241 e o retrato de Dorian Gray: A procuradora Élida Graziane fez uma enfática defesa da necessidade de articulação dos universos jurídico e sanitário para o atual momento de enfrentamento. Fatos e dados não faltaram na apresentação da procuradora. Desde a sua criação, a Desvinculação das Receitas da União (DRU) já se encontra em sua oitava reedição. “Como pode haver um dispositivo transitório que já alcança quase 30 anos? O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) tem se comportado como uma imagem horrenda e cínica da nossa realidade, enquanto o texto constitucional permanente segue formalmente belo e atraente em suas promessas civilizatórias de dignidade da pessoa humana”, disse Élida parafraseando o escritor inglês Oscar Wilde, autor da obra O Retrato de Dorian Gray, mote de recente artigo da procuradora – clique e leia.
A pós-doutora em Direito apresentou outros mecanismos legais pelos quais União deixa de investir no SUS. É o caso dos Restos a pagar, o que, na prática, já efetiva um financiamento regressivo, com rubricas acumuladas no Ministério da Saúde desde 2003. Tal cenário foi classificado pela procuradora como a ‘precatorização dos direitos sociais’. “Enquanto acatarmos calados essa regressividade de investimentos, esses mecanismos continuarão sendo utilizados e continuaremos perdendo. Ou defendemos o SUS a cada fronte de disputa orçamentária ou seguiremos perdendo posições e direitos”.
Diretamente sobre a PEC 241, Élida foi taxativa ao destacar que a proposta que quer instituir um crescimento real nulo pelo próximos 20 anos tem grandes fragilidades jurídicas, e sua motivação não se justifica em um cenário recessivo que já aponta sinais de melhora. No entanto, esta clareza não é suficiente no atual cenário de embates. “Não nos deixemos capturar pelo argumento de que é obrigatória a contenção de despesas primárias. Diversos países se desenvolveram por meio da dívida pública em outros momentos”, disse ela, destacando que a Lei de Responsabilidade Fiscal em nenhum trecho exige que as operações do Estado fechem em zero.
Um estado que caiba o povo e o SUS: Ela frisou a necessidade de a sociedade ter ânimo, força e coragem de promover este debate de todas as formas possíveis, seja por e-mails aos parlamentares, em artigos e cartas à imprensa, redes sociais, debates e eventos, visando exercer o contraditório no Judiciário em relação às propostas de ajuste fiscal que constranjam os direitos fundamentais, o que qualificou como uma ‘judicialização da saúde’ em nome dos macro-ordenamentos constitucionais sistematicamente descumpridos pelo Executivo e que devem ser exigidos por todo e qualquer cidadão. “A política fiscal é tão política pública quanto as demais e temos de entendê-la assim”. Ao final, foi enfática ao dizer que, “para os arautos do “Estado não cabe no orçamento, temos de defender que o orçamento só é legítimo a luz da Constituição”. Acesse a apresentação da Procuradora.
Alexandre Gil, psicólogo, dirigente do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e integrante do Conselho Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (CES/RJ), encerrou a mesa ressaltando, sem papas na língua, que o caráter civilizatório do SUS que tanto incomoda as elites do país traz elementos do pensamento socialista, e que é este caráter público e estatal o ânimo do SUS que dá certo.
Ele fez um rápido exercício de análise conjuntural, ressaltando que o governo Temer irá tentar implementar a agenda regressiva de direitos sociais por meio do choque e do terror, como a Blitzkrieg do III Reich. A consternação com que a sociedade civil vê tais fatos é fruto do esvaziamento dos sentidos mais nobres da política social; da desmobilização das organizações populares; e do reforço de mecanismos ideológicos como argumentos religiosos e individualistas vistos nos últimos anos do governo Dilma Rousseff. Como pontos positivos, destacou a própria efetivação das prática dos conselhos, que mesmo enfrentando contradições na própria constituição, tem em boa parte do país conseguido pautar os debates de suas cidades e estados, e que efetivam em sua existência esse SUS capilarizado, forte e popular, que mobiliza tantos corações e mentes reunidos no lotado auditório da Uerj e em tantos outros atos e atividades que se seguirão em sua defesa e resistência.