Na segunda semana de fevereiro a revista inglesa Lancet apresentou um artigo sobre a microcefalia e os riscos do vírus zika, de pesquisadores brasileiros liderados pelo professor César Gomes Victora – da Universidade Federal de Pelotas, que tem longa tradição na realização de estudos epidemiológicos relacionados à infância e maternidade. No texto “Microcephaly in Brazil: how to interpret reported numbers?”, o abrasquiano Victora demonstra que as estimativas de casos de microcefalia poderiam variar de 600.000 a apenas 3.000, se o ponto de corte fosse reconsiderado. O critério que se está usando, hoje em dia, superestimaria, ao menos, em 20.000 o número de casos em potencial.
Para o site da Abrasco, Victora alerta – “Creio que não há mais dúvidas de que o virus Zika causa anencefalia em fetos expostos no início da gestação. Teorias sobre larvicidas, vacinas e outros agentes químicos ou biológicos são infundadas, por serem incompativeis com a distribuição da microcefalia na população. No artigo do Lancet, mostramos que os critérios de definição de casos suspeitos estão incluindo muitas crianças normais cujo perímetro cefálico é pequeno. Estas crianças são “falsos positivos”, o que traz um alto custo emocional para suas famílias, e também sobrecarrega o Sistema Único de Saúde – SUS com exames desnecessários como tomografias computadorizadas”.
Desde maio de 2015, o Brasil enfrenta seu primeiro surto do vírus Zika. Em outubro do mesmo ano, o Ministério da Saúde registrou um aumento nos casos de microcefalia em recém-nascidos, particularmente na região Nordeste. Isso levou a uma grande repercussão na mídia sobre a possível epidemia de microcefalia causada pelo vírus Zika.
Embora fortemente suspeita, a relação causal entre a exposição intrauterina à Zika e microcefalia ainda não foi estabelecida. A possibilidade de que o número excessivo de casos suspeitos de microcefalia reportados entre meados de 2015 e janeiro de 2016 seja decorrente da busca ativa e de sobre-diagnóstico foi levantada pelo Estudo Colaborativo Latino Americano de Malformações Congênitas (ECLAMC) em dezembro de 2015.
O aumento temporal nos casos suspeitos de microcefalia poderia também estar sendo afetado pelas mudanças nas definições de microcefalia durante este período, todas estas com a recomendação de um ponto de corte fixo de circunferência cefálica em crianças a termo. Um recente comentário publicado na revista Lancet mostra que a especificidade do ponto de corte de 33 cm, adotado inicialmente, era de 79%, ou seja, 21% dos recém nascidos normais seriam triados para investigação.
A redução do ponto de corte para 32 cm aumentou a especificidade para 94%, mas mesmo assim cerca de 180 mil crianças por ano seriam encaminhadas, considerando que no País ocorrem aproximadamente 3 milhões de nascimentos anuais, o número de crianças que poderão ser classificadas como casos suspeitos e derivadas para diagnóstico é elevado. Isso é bastante preocupante, pelos custos e pela dificuldade de acesso a meios diagnósticos de alta complexidade no SUS. Assim, não chama a atenção de que do total de casos suspeitos de microcefalia identificados nos últimos meses, 77% ainda estão sob investigação.
Frente a essas dificuldades, foram propostas as seguintes recomendações pelos autores do comentário:
1) usar critérios diagnósticos de suspeita de microcefalia que sejam sexo e idade gestacional específicos tanto em recém-nascidos a termo como em pré-termos. As curvas prescriptivas de InterGrowth, obtidas com técnicas padronizadas, preenchem todos os requisitos e podem ser empregadas;
2) utilizar um ponto de corte de 2 desvios padrões (DP), o que reduzirá de forma importante o número de recém-nascidos derivados para investigação diagnóstica – este ponto de corte tem sensibilidade de 85% e especificidade de 98%;
3) medir a circunferência cefálica em todos os recém-nascidos usando técnicas antropométricas padronizadas e registrar a medida em mm; e
4) evitar relatar casos suspeitos e acelerar a investigação para informar casos confirmados com evidência de laboratório e/ou de imageologia.